sexta-feira, 14 de outubro de 2011

De Hartford Ocupada: “Ao vivo, de Obamaville”

Vijay Prashad

14/16/10/2011, Vijay Prashad, Counterpunch (ed. fim de semana)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

I. Hooverville

Pobre Herbert Hoover [1]. Multimilionário aos 30 anos, dos vastos lucros da mineração de ouro, Hoover abraçou o serviço público como aposentadoria. Seu trabalho administrativo inicial visou à agricultura, mas viveu a maior parte de sua carreira no Departamento de Comércio. Em 1925, Hoover advertiu Calvin Coolidge [2] sobre a perigosa especulação em Wall Street. Coolidge não se interessou (pouco ligava para a economia, e disse uma vez que “quando muita gente é demitida, o resultado é o desemprego”). Seria cruz de Hoover que a quebradeira geral de 1929 acontecesse em seu governo. É triste lembrar que, pouco antes da quebradeira geral em Wall Street, dia 20 de outubro, Hoover disse ao país: “Estamos hoje nos EUA mais perto do triunfo final contra a pobreza do que jamais antes da história de qualquer terra”.

Hooverville, 1932
O triunfo final nunca aconteceu. Em 1933, a taxa de desemprego chegou a 25%. Em maio de 1932, 17 mil veteranos que haviam lutado na Primeira Guerra Mundial reuniram-se em Washington para uma “Marcha pelos Bônus”. Estavam fartos. Amigos e parentes haviam morrido pelo caminho, e todas as promessas foram traídas. Às margens do Potomac, de frente para o poder em Washington, o “Exército dos Bônus” construíram um acampamento. O acampamento logo passou a ser conhecido como Hooverville [cidade de Hoover] e rapidamente foi imitado por todo o país.

Hoover mandou para lá o general Douglas MacArthur (antes das guerras na Ásia) para negociar com o pacífico Exército dos Bônus. MacArthur atacou com tanques e gás lacrimogêneo. O pessoal das Hoovervilles fincou pé e continuou.  


 II. Hartford

O acampamento de Occupied Hartford [3] tem uma vista impressionante. Se se pára no meio das barracas do acampamento, na esquina de Broad e Farmington, pode-se ver a sede do governo do estado (o Governo), o viaduto que atravessa a cidade e vários prédios dos escritórios das grandes empresas de seguros (as Corporações), o prédio do Hartford Courant, o mais antigo jornal ainda em circulação nos EUA (a Mídia) e o Arsenal do Estado de Connecticut (os Militares). Todo o conjunto do poder está no campo de visão dos manifestantes.


Como o poder, também se vê dali a impressionante miséria que já envolve toda a cidade (a taxa oficial de desemprego na região é de 33%, a mais alta de todo o país).

Perguntei a um grupo de Ocupantes se haviam criado ali a Obamaville, a Hooverville do século 21. Olharam-me com ar de quem não entendera a pergunta. Brian foi o primeiro a responder: “Não estou aqui a favor de nenhum político. Sou contra todos os partidos políticos. Os políticos são o problema”. Circularam por aqui boatos de que o movimento Occupy teria sido cooptado pelo Partido Democrata. A ideia foi rapidamente rejeitada. “Não estamos aqui a favor de Obama” – acrescentou Dave. “Nossa luta é contra as grandes empresas, as corporações.” 

Ouvi praticamente a mesma frase também em Wall Street. Ninguém dá sinais de interesse em ajudar Obama.

O que une todos os Ocupantes é que são raros os que participam de manifestações pela primeira vez. Aqui na Ocupação em Hartford, a maioria vem dos setores mais pobres da cidade, os mais sacrificados, das comunidades que lutam diariamente contra as tentações da economia da droga e contra os dedos invasivos do departamento de polícia. Muitos dos que falaram convivem com a realidade da pobreza e da desigualdade, muitos desesperaram, antes de descobrir que podiam trabalhar juntos em grupos como “Food Not Bombs” [Comida, não bombas], organizações antiguerra e em grupos mais ou menos informais que defendiam os direitos de sobrevivência de diferentes comunidades. “A luta é nossa terapia”, como cantavam o RAPeiros de Dead Prez (na campanha pró-Obama). A história de vários Ocupantes é semelhante.

Hartford luta pela sobrevivência. O desemprego crônico, o colapso das instituições do estado que não conseguem pagar salários decentes, somam-se ao aumento da repressão (violência policial e violência nas prisões) e à ideologia consumista. Vê-se exatamente o mesmo quadro ao longo da estrada interestadual 91, de Hartford a Springfield a Holyoke. O futuro ao longo da Freeway está entregue a umas poucas famílias e comunidades resilientes e às economias marginais (legais e ilegais). Michaelann Bewsee, do movimento Arise for Social Justice [Levante pela Justiça Social] de Springfield, chama essa área de “uma lata de lixo econômico”.

Angelo, nascido em Hartford, de pais portoriquenhos que trabalhavam numa fábrica e na cantina de uma escola no setor norte da cidade, foi criado na pobreza, mas conheceu alguma dignidade social. O pai tem raízes no socialismo de Porto Rico, e há fotos de Fidel Castro nas paredes da casa onde mora, fotos que Angelo herdou do pai. Com sete anos, Angelo acompanhou o pai pela primeira vez numa manifestação em porta de fábrica. Passaram-se anos antes que Angelo conseguisse organizar essas lembranças e começar a acredita que alguma mudança seria possível (o computador ajudou, ele conta: “abriu o mundo para mim”).

Victoria, nascida em Albuquerque, New Mexico, encontrou a esperança na igreja. Mas não bastou. Um dia, assistindo a uma entrevista dos membros da banda Me Without You, um dos músicos falou de um livro (Irresistible Revolution: Living as an Ordinary Radical [Revolução irresistível: a vida de um radical comum], de Shane Clairborne). Victoria leu o livro, que narra a história de Clairborne numa casa comunitária de fé radical nas vizinhanças de Kensington, na Filadélfia, chamada “Uma Saída Simples”. A casa ficava no mesmo bairro onde funciona a Organização de Direitos de Bem-Estar de Kensington, cuja presidenta há muito tempo, Cherie Honkala, concorre à eleição para xerife da Filadélfia, com plataforma Verde, e projeto declarado de combater os despejos [4]. Visitando a casa “Uma Saída Simples” e outras comunidades confessionais, Victoria veio para Hartford para unir-se a um movimento que prega a adoção dessa modalidade de vida comunitária (há uma Casa do Operário Católico no setor norte de Hartford, mantida pelo conhecido Brian Kavanagh, deputado estadual que trabalha pela moradia popular e que já deve ter uma cela na cadeia de Hartford batizada com seu nome).

Jeffrey Harris perdeu recentemente o emprego e, pouco tempo depois, sua esposa morreu. Voltando do hospital para casa, de ônibus, Jeffrey viu as barracas da Ocupação. Desceu do ônibus, andou um pouco por ali e ficou. A epidemia de despejos em toda a cidade preocupa Jeffrey e o entristece. Mas ele parece suportar com dignidade as tragédias de sua vida. “É uma loucura”, diz ele, sobre as desigualdades na cidade. “Aquela gente é lixo, a elite das grandes empresas. Mais dia menos dia, terão de ceder alguma coisa. É uma loucura. Se o sistema não funciona, é preciso consertar.”

Esse é um sentimento quase generalizado nos acampamentos das Ocupações que visitei. John Pitman, ao lado de Jeffrey concorda. “As pessoas que estão aqui e por aí, estão na rua para retomar o país, contra as grandes empresas”, diz. Perguntei o que lhe dá esperança, em toda essa agitação. “Esperança?”, diz ele. “Não é esperança. É luta pela sobrevivência. Quero de volta o que nos pertence”. 

III. Bancos

Dia 31/8, George Magnus, principal assessor econômico de UBS em Londres, escreveu ao Financial Times, carta que o jornal publicou sob o título “O capitalismo está passando por uma crise muito marxista” [5]. Magnus diz que “Marx analisou e explicou detalhadamente o modo como o capitalismo sucumbiria ante crises recorrentes e, sobretudo, ante crises gigantes, depois de uma explosão no crédito.” À luz dessa análise, Magnus, de seu poleiro no alto das torres de vidro da Finsbury Square, escreveu que “É hora, pois, de um desligar-reiniciar intelectual, como Sir Samuel sugere, mas para pensar em como enfrentar uma crise muito marxista do capitalismo; para começar, é hora de criar empregos, alinhar os impostos e dar atenção ao Produto Interno Bruto”. É reflexão interessante, mas estranha, saída do mesmo prédio onde, num gabinete da Delta One, armam-se as mesmas negociações que geraram, para os banqueiros, um grave problema de imagem.

Magnus não é banqueiro diferente de outros muitos. De fato, muitos já recolheram as principais bandeiras, tentando salvar-se da atual tempestade e sobreviver, pelo menos, até que seus navios cheguem novamente às calmarias dos “Negócios São Negócios e Isso é Normal”.

Saindo de Hartford, rio acima, até Springfield, encontrei uma interessante coalizão de ativistas comunitários e sobreviventes de despejos chamada “No One Leaves” [6][Ninguém sai (de suas casas)], que conseguiu criar e manter movimento amplo e coordenado. Os banqueiros estão pulando miudinho, ante os recursos e apelações juridicamente bem formulados, e já não são tão rápidos em despachar força policial para arrancar famílias de suas casas. Dentre as novas ideias, conseguiram aprovar lei estadual que criou um programa de mediação legal e bônus de 10 mil dólares, que permite que os proprietários conservem os direitos de propriedade das casas das quais são despejados por falta de pagamento. Esse é o tipo de inovação que as organizações comunitárias estão conseguindo inserir no sistema, e é o tipo de política que se espera que seja implantada pelos candidatos locais, como Amaad Rivera [7], de Springfield e Luis Cotto [8], da comunidade porto-riquenha de Hartford.

Não que os bancos estejam conformados, aceitando tudo isso. A Associação dos Banqueiros de Massachusetts enviou documento de sete páginas à prefeitura, denunciando procedimentos ilegais do Conselho Municipal. O Banco Florence Savings, um dos signatários do documento, está conseguindo implantar-se localmente na região, com o slogan “Não nos culpe. Somos banco local.” O que, contudo, não impediu que a instituição, em Northampton, entrasse na luta contra os moradores de Springfield. Dia 17 de outrubro, 2ª-feira, a organização No Ones Leaves e o Conselheiro Rivera farão manifestação pública e passeata contra a manobra dos banqueiros, na praça em frente à prefeitura de Springfield.

“Acho que somos o principal movimento contra a lei dos despejos em todo país” – disse o Conselheiro Rivera (candidato à reeleição, e que, claro, precisa de todos os apoios que consiga reunir). Pelo que vi, ele não exagera. O Movimento No One Leaves  já Ocupou Springfield.

IV. E aí vem a contrarrevolução  

A Polícia de Boston, sob o pretexto de proteger as flores, já declarou ilegal o movimento Occupied Boston e prendeu vários manifestantes. A Ocupação fincou pé.

O prefeito de New York ameaçou remover os ocupantes de Occupied Wall Street para “limpar a área”. Há hoje mobilização de emergência, para defender a Praça Liberty.

A paciência das elites está sendo testada. As elites querem que o país delas seja devolvido a elas.

Em 1786, os fazendeiros do oeste de Massachusetts enfureceram-se porque lhe fora negado o direito de votar em sua própria nova república, e pelo descaso com que estavam sendo tratados os veteranos das guerras revolucionárias. Um fazendeiro, Daniel Shays, liderou um grupo de veteranos e fazendeiros até Springfield, onde desfilaram tocando tambores e cornetas, para impedir que os juízes ouvissem as acusações contra os fazendeiros amotinados. 

O movimento de Shays marchou depois para Boston, onde o presidente do Senado, Sam Adams, assinou contra eles a lei Riot Act e mandou o general Benjamin Lincoln quebrar pernas e cabeças. Em Northampton, onde moro, foram julgados alguns dos rebeldes capturados, vários dos quais foram condenados à morte e executados.

De Paris, onde era embaixador dos EUA, Thomas Jefferson escreveu ao presidente James Madison, sobre a revolta de Daniel Shays: “Entendo que um pouco de revolta, vez ou outra, é bom e tão necessário no mundo político quanto às tormentas no mundo físico”.



Notas dos tradutores

[1] Presidente dos EUA, de 1929 a 1933.
[2] Presidente dos EUA de 1923 a 1929.
[3] Imagens de Hartford Occupied capital do estado de Connecticut.
[4] Ver em “Cheri Honkala 
[5] Orig. Capitalism is having a very Marxist crisis”,  [em inglês].
[6] Ver em: “No One Leaves” 
[7] Ver em “Elect Amaad Rivera” 

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