Publicado
em 27/10/2011 por Urariano
Motta
O
aniversário de Graciliano Ramos, nascido em 27 de outubro, serve de gancho para
lembrar um episódio histórico, no qual ele julgou e não aprovou um livro de
Guimarães Rosa. Ainda que este colunista não se inclua entre os admiradores
incondicionais do escritor mineiro, vamos ver se pelo menos mantém aparências de
imparcialidade ao lembrar o julgamento de Graciliano Ramos sobre Guimarães
Rosa.
O
fato é que, em 1937, Rosa escreveu a primeira versão de Sagarana, que então
possuía o nome simples de Contos, e o inscreveu sob pseudônimo de Viator (que
nome!) no prêmio Humberto de Campos. Em 1938, na última sessão de julgamento, o
corpo de jurados se dividiu entre dois concorrentes. Um finalista era Maria
Perigosa, de Luis Jardim, outro, o Contos, de Guimarães Rosa. Graciliano Ramos,
presidente do júri, deu o voto de desempate, em favor de Maria Perigosa, por
razões que veremos a seguir.
Antes
que os fervorosos de Rosa apedrejem Graciliano, é bom saber que o Sagarana
apresentado ao concurso de contos não era o mesmo livro publicado muitos anos
depois. Transcrevo as palavras do mestre de todos os escritores brasileiros, que
explica o seu julgamento em linhas jamais contestadas por Guimarães Rosa:
“Aborrecendo-me
assim, abri um cartapácio de quinhentas páginas grandes: uma dúzia de contos
enormes, assinados por certo Viator, que ninguém presumia quem fosse. Em tais
casos rogamos a Deus que o original não preste e nos poupe o dever de ir ao fim.
Não se deu isso: aquele era trabalho sério em demasia. Certamente de um médico
mineiro, lembrava a origem: montanhoso, subia muito, descia – e os pontos
elevados eram magníficos, os vales me desapontavam. Admirei um excelente
feitiço, a patifaria de Lalino Salatiel e, superior a tudo, uma figura notável,
dessas que se conservam na memória do leitor: seu Joãozinho Bembém. Por outro
lado enjoei um doutor impossível, feito cavador de enxada, o namoro de um
engenheiro com uma professorinha e passagens que me sugeriam propaganda de soro
antiofídico...
Em
fim de 1944, Ildefonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-me J. Guimarães
Rosa, secretário de embaixada, recém-chegado da Europa.
—
O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
—
Como era o seu pseudônimo?
—
Viator.
—
Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando.
Ildefonso
Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem
rápida com o secretário de embaixada.
—
Sabe que votei contra o seu livro?
—
Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.
Achando-me
diante de uma inteligência livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que
guardara na memória. Rosa concordou comigo. Havia suprimido os contos mais
fracos. E emendara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e à
crítica. [...]
Vejo
agora, relendo Sagarana, que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e
muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três
histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As partes boas se
aperfeiçoaram: O Burrinho Pedrês, A Volta do Marido Pródigo, Duelo, Corpo
Fechado, sobretudo Hora e Vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa
dedicar-se ao romance.
(Conversa
de Bastidores)
E
concluo rápido, para situar o mestre e julgador Graciliano
Ramos.
Erros
de avaliação possuem casos que fizeram história na literatura. Podemos lembrar
precedentes mais graves e ilustres que a rejeição a Sagarana. Como, por exemplo,
a de André Gide aos originais de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Ou mesmo
a miopia de Lukács em ver o gênio fundamental de Kafka. Mas nem por isso devemos
crer que todas as recusas a obras-primas do mundo se reuniram para coroar a
recusa de Graciliano Ramos a Guimarães Rosa. Nisso haveria um pouco de excesso,
digamos. Sagarana deve ser um pouco menor que A Metamorfose, A Colônia Penal, ou
Sodoma e Gomorra.
Nos
limites de nossa experiência, no gancho do nascimento de Graciliano Ramos,
preferimos chamar a atenção para um livro e autor que cresceram anos depois da
leitura honesta do seu julgador. O juiz, autor clássico de Memórias do Cárcere,
se achava em posição impossível de melhor avaliação. Seria como, se nos permitem
uma comparação plebeia, julgar Pelé o maior jogador do mundo quando ele possuía
apenas 13 anos. Antes, portanto, que ele pudesse escrever obras mais belas que
Sagarana. Ele, Pelé, queremos dizer. Com o devido respeito à glória de Guimarães
Rosa.
*Urariano
Motta
é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor de
Soledad
no Recife
(Boitempo,
2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em
1973, e
Os
corações futuristas
(Recife,
Bagaço, 1997).
Enviado por Direto
da Redação
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirO que há de bacana na nota comemorativa do centenário do Grande Graça é essa inserção da integridade do Urariano na do Mestre Alagoano. Neste outono frígido norte-coreano, só faz bem leitura assim, a ponto de a gente ir reabrir São Bernardo... para esquentar?
Abraços do
ArnaC