segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Egito: “Não pagaremos as dívidas da tirania”


Wael Gamal

Wael Gamal وائل جمال 
 Traduzido para o português pelo pessoal da Vila Vudu

Na transição de uma oligarquia ou tirania para uma democracia (...) acontece de as pessoas negarem-se a cumprir contratos e quaisquer outras obrigações, porque são contratos e obrigações contraídas pelo tirano, não pelo Estado. 
Aristóteles, Política, livro III [1]

O Egito deve cerca de 35 bilhões de dólares (ou 210 bilhões de libras egípcias) de dívida externa, o que impõe aos egípcios carga anual de cerca de 18 bilhões de libras egípcias. São dívidas que se acumular durante o regime anterior seguindo as prioridades políticas e econômicas daquele governo. Pagamos aquela dívida de nosso próprio bolso, dinheiro que poderia ser gasto em serviços sociais, saúde ou educação. 

Por isso, organizações e ativistas sociais no Egito e no exterior decidiram que o dia 31/10/2011 seja declarado Dia Mundial para o Cancelamento da Dívida do Egito. 

É o início de uma campanha popular para tirar essa carga dos ombros do povo egípcio, que não foi nem é de modo algum responsável pelas decisões de assumir aquelas dívidas, nem jamais foi consultado sobre como se gastou aquele dinheiro, e ao qual o antigo governo jamais prestou contas.

Cancelar a “dívida odiosa”

“Dívida odiosa” [2] é conceito jurídico cunhado pelo teórico Alexander Sack, que teria sido ministro das Finanças da Rússia em 1927, no período posterior à Revolução Russa. O conceito prega que se aplique a contratos firmados pelo governo um princípio jurídico que rege os contratos privados. Por esse princípio, para que uma dívida continue a ser legalmente vinculante ela deve servir a fins legítimos. Nesse contexto, entende-se que são “odiosas” as dívidas contraídas por ditador ou governo ilegítimo em nome da nação, mas para enriquecer o governante (quer dizer, para engordar as contas bancárias pessoais do tirano e de seus herdeiros) ou para financiar a repressão contra os cidadãos (para, por exemplo, a compra de gás lacrimogêneo ou armas a serem entregues a francos atiradores, como as armas utilizadas para assassinar os mártires da revolução).

“Dívidas odiosas” associam-se frequentemente ao saque financeiro em vários âmbitos, como o financiamento de projetos falidos (como Toshka, o projeto de fosfatos de Abu Tartour, o projeto de ferro de Assuã etc.); o apoio a projetos de desenvolvimento viciados por corrupção (como a privatização de terras públicas e a contratação de empresas privadas, por Estado ilegítimo e corrupto); e ao controle dos recursos do Estado, movimentados a serviço dos “sócios” do tirano – empresas e empresários “amigos”, à custa do sacrifício do povo.

“Dívida odiosa” é dívida contraída por regime que não representa o povo e que – com pleno conhecimento do credor – serve para fins que em nada beneficiam o povo nem visam ao bem público. Por tudo isso, muitos definem como “dívida odiosa” a dívida que enriquece os tiranos e empobrece a sociedade. A nação é obrigada, nesses negócios, a canalizar todos os seus recursos para pagar dívidas já existentes – o que limita a capacidade da sociedade para desenvolver-se. 

Apoiados nessa lógica propôs-se a ideia de que a dívida odiosa do Egito fosse cancelada no momento em que fosse derrubada a ditadura endividada – como no caso do Iraque depois da queda de Saddam Hussein [3], e da África do Sul, depois de derrubado o regime do apartheid. 

A Dívida do Egito escraviza os egípcios
Do ponto de vista legal, o conceito de “dívida odiosa” aplicado às dívidas de ditaduras depostas implica um desafio a um velho princípio do direito internacional – que exige que aquelas dívidas sejam pagas, mesmo que assumidas por regimes ditatoriais já inexistentes. Apesar do desafio, o conceito de “dívida odiosa” foi invocado em vários casos históricos. Alguns remontam ao século 19, sobretudo uma sentença da Suprema Corte dos EUA, que confirmou a legalidade do não pagamento das dívidas de Costa Rica aos credores Grã-Bretanha e Canadá, por serem dívidas contraídas sob regime ditatorial. E o Equador é exemplo ainda mais recente de modelo que prosperou.

Durante a década dos 1970s o Equador, como muitos outros países do Terceiro Mundo, caíram na armadilha do endividamento externo a baixas taxas de juros que, contudo, imediatamente depois começaram a subir muito. Assim, pelo aumento das taxas de juro cobradas por bancos norte-americanos (de 6% em 1979, para 21% em 1981), a dívida externa do Equador aumentou mais de 12 vezes a partir do valor inicial: de 1,174 bilhão de dólares em 1970, para 14,250 bilhões de dólares em 2006. E só 14% da dívida externa contraída entre 1989 e 2006 foram usados para projetos novos; todo o restante foi comprometido para pagarem-se dívidas antigas. 

Logo no início da greve geral que derrubou o presidente Lucio Gutiérrez em 2005, formou-se uma comissão para auditar a dívida do país. Essa comissão ofereceu ao governo do Equador os fundamentos legais e políticos nos quais se baseou para decidir não pagar as dívidas odiosas em novembro de 2008. Em junho de 2009, o Equador obteve um acordo pelo qual sua dívida externa foi reduzida em mais de dois terços. Por acordo firmando com 90% dos credores internacionais, o Equador teve de pagar apenas 35 centavos por cada dólar da “dívida odiosa” – com o que o país livrou-se daquela carga. De fato, o valor dos títulos já caíra drasticamente depois da greve geral e da deposição do presidente por movimento popular, o que levou a pagamentos ainda menores do que os devidos antes. 

O Equador conduziu suas negociações com boa informação e prudência, o que gerou esperanças para todos os países do Terceiro Mundo que manifestem vontade política para livrar-se do peso morto da “dívida odiosa”. 

Atualmente, a sociedade civil e os movimentos populares na Irlanda e na Grécia organizam comissões populares de auditagem da dívida e já pressionam para que se constituam comissões oficiais. Túnis já tem uma comissão para auditar as dívidas odiosas contraídas pelo governo de Zine Abdine Ben Ali e trabalha para que sejam canceladas. 

Com isso, temos nós, no Egito, boa margem de manobra para pressionar, coordenar esforços e mobilizar as pessoas na direção de conseguir que se cancelem também as dívidas do regime de Mubarak. 

Adam Hanieh, professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, diz que, apesar de o Egito já ter pago 24,6 bilhões de dólares entre 2000 e 2009, a dívida aumentou cerca de 15% durante o mesmo período. Em artigo sobre as transformações em curso na economia egípcia depois da revolução, Hanieh acrescenta: “Essas cifras deixam à vista a surpreendente realidade de que a relação financeira entre o Egito e os credores da economia global opera na direção de extrair a riqueza dos pobres do Egito e de redistribuí-la entre os bancos mais ricos dos EUA e da Europa”. 

A “dívida odiosa” não é só um inimigo do passado que atenta contra nossa vida e nosso sustento; é também uma carga que ameaça nosso futuro. Livrar-se dela é imperativo econômico, moral e legal. Apesar disso, é pouco provável que a batalha se decida nas instituições financeiras internacionais e nos bancos: muito provavelmente exigirá também confrontação interna. 

A dívida egípcia: “Todos os olhos atentos à dívida”

“Abre os olhos! O dinheiro para pagar a dívida sai do teu bolso” – é o lema da Campanha Popular pelo Cancelamento das Dívidas do Egito, a ser lançada dia 31/10/2011, para livrar nossa revolução de um peso acumulado por um governo que nunca representou os egípcios – peso que continuar a pesar sobre nossos salários, nosso nível de vida e sobre nossas oportunidades de futuro. 

A Dívida do Egito esmaga  os egípcios
A campanha será posta em marcha simultaneamente com iniciativas que também começam em Londres e Berlim, das quais participam movimentos da sociedade civil e organizações da Grã-Bretanha e da Alemanha. O lema acima indica que criar comissão independente para auditar a dívida externa, associada a campanha popular que pressione para o cancelamento da dívida não é o fim do caminho. É, antes, o começo de uma mudança radical no modo de fazer a gestão da política econômica no Egito. 

O problema não está só em o Egito estar pagando juros a credores internacionais em volume que supera o que o país gasta em bem-estar social para os 85 milhões de egípcios, por exemplo, na área da saúde. O problema mais grave é a orientação das políticas econômicas do país, a falta de transparência na formulação de políticas econômicas e a nenhuma oportunidade garantida aos cidadãos para que participem da formulação daquelas políticas, para atender seus próprios interesses. 

Cancelar a dívida do Egito com credores da União Europeia foi a primeira proposta apresentada por Samir Radwan, que serviu como ministro da Economia depois da revolução. Essa reivindicação, contudo, foi apagada poucas semanas depois, substituída por proposta para que se fizesse o contrário: mais pagamentos às instituições internacionais. Adiante, decidiu-se congelar as dívidas externas, mas num preço alto demais para os pobres e para a economia; principalmente sob um orçamento de austeridade que privilegiava os interesses dos ricos, tanto em termos de impostos como em termos da prioridade dada aos subsídios distribuídos pelo governo. Esse fato mostra que uma coisa é certa: se tivermos de pagar as prestações da dívida de nosso próprio bolso, no futuro a decisão de tomar empréstimos de instituições nacionais ou internacionais deve ser submetida a amplas supervisões, nas quais a sociedade civil tenha papel mais importante, incluídas as organizações de direitos civis, ONGs, grupos de proteção ao consumidor, sindicatos e o público em geral. Esse exemplo deixa claro que o cancelamento das dívidas odiosas da ditadura não acontecerá sem confronto contra a ordem econômica que herdamos, confronto que não terá êxito sem a participação da maioria dos interessados. 

Portanto, a auditoria da dívida deve ser verdadeira porta de entrada para uma economia mais democrática, que reflita as necessidades das pessoas, antes que a necessidade de lucrar, de uns poucos. Pode ter função importante no movimento para enfrentar a elite rica que se esconde nas trincheiras que protegem a economia da ditadura e os tecnocratas leais que servem àqueles interesses. Pode fazer frente à liderança política, que usa o pretexto da dívida do regime de Mubarak para ocultar e justificar a supressão de nosso direito a salário justo, a empregos adequados, a melhores serviços de saúde e de educação, e que continua a repetir o mesmo slogan fracassado: “E de onde querem que tiremos dinheiro para tudo isso?”




Notas dos tradutores

[1] Em inglês, Aristotle's Ethics and Politics, tr. by J. Gillies, p. 169. ARISTÓTELES, Política, pode ser baixado, gratuitamente, em português. 
 
[2] Odious Debts: Loose Lending, Corruption, and the Third World's Environmental Legacy , Cap. 17: “The Doctrine of Odious Debts.

[3] “Em 2004, o chamado Clube de Paris, para favorecer os interesses ianques perdoou em 80% o valor da dívida atribuída ao Iraque porquanto, como foi concluído, tinha sido obra iníqua de Saddam Hussein e, como assim, os novos ocupantes não queriam despender somas demasiado excessivas por factos cuja responsabilidade enjeitaram” (A viagem dos Argonautas, português europeu).

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