Pepe Escobar |
18/10/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
“... se o inimigo vencer, nem os mortos estarão salvos. E esse inimigo ainda não parou de vencer”.
[Walter Benjamin, Sobre o conceito de História, 6] [1]
Uma Internacional dos Indignados manda no mundo. A tocha passou, da Praça Tahrir no Cairo (Primavera Árabe) à Porta do Sol em Madri (a Primavera Espanhola), para a Praça Liberdade em New York (Occupy Wall Street) e daí, no sábado passado, para a Rua Mundo: 951 cidades em 82 países.
Todas as idades, todas as classes sociais – mas principalmente homens e mulheres jovens e valentes que denunciam a queda, em húbris, de grandes porções do mundo num abismo geopolítico trespassado por crise social, financeira, monetária e estratégica sem precedentes.
Nada mais natural que “nós somos os 99%” ter-se tornado global – porque o movimento denuncia especificamente a desgraça provocada em todo o mundo pelo mito da globalização neoliberal, aplicada por esse Deus das trevas, o Mercado. Mesmo assim, o 1% – e suas ogivas, da imprensa-empresa – ainda não se deram por vencidos (ou zombam) e tentarão esmagar qualquer reação e remediar o total fracasso do neoliberalismo.
O 1% não pode absolutamente entender a fúria de uma geração “sem futuro”, nem a fúria dos que jogaram o jogo pelas regras e acabaram sem nada – a fúria coletiva dos que já não podem absolutamente confiar em instituições políticas e financeiras falidas.
E ainda vai piorar. Os bancos não estão emprestando nem reativando a economia sobretudo porque nos EUA, só quatro gigantes – Goldman Sachs, JP Morgan Chase, Citigroup e Bank of America – controlam hoje 95% dos derivativos norte-americanos, um pesadelo de 600 trilhões de dólares, esperando para acontecer. Os derivativos foram cruciais na derrubada da economia global, com todas as suas terríveis consequências sociais – e pode acontecer tudo outra vez.
Enquanto isso, o 1% prossegue no processo de assaltar violentamente os direitos históricos das classes trabalhadora e médias – mesmo ao preço de perder o que lhe resta de legitimidade política e social (nunca ligaram para isso). Como diz Minqi Li, ex-prisioneiro político chinês e professor de economia na Universidade de Utah: “Como no período 1968-
Criar uma nova linguagem política
E agora? Daqui, vamos para onde? Onde encontrar o poder de fogo intelectual para continuar a luta?
No Parque Zuccotti – quartel-general de Occupy Wall Street na baixa Manhattan – há uma biblioteca pública gratuita, com livros doados por quem queira doar. Um bom primeiro passo seria mandar para lá um bom número de cópias de The Beach Beneath the Street [A praia por baixo da rua], de McKenzie Wark[3], apaixonante história dos Situacionistas – grupo conceitual chave, liderado por Guy Debord, no coração de maio de 1968.
Wark também escreveu ensaio clínico detalhado de como, em vez de ocupar uma abstração – Wall Street – o movimento ocupou outra abstração, “uma praça mais ou menos pública aninhada na paisagem do centro, cercada de prédios gigantes, não muito longe do velho World Trade Center” e dali, avançou para ocupar “o espaço virtual da mídia social”.
Wark conclui: “A abstração que é a ocupação é então dupla ocupação, ocupação de um local, mais ou menos perto da Wall Street real; e a ocupação do vetor da mídia social, com slogans, imagens, vídeos, estórias. “Sigam ocupando!” não seria um mau slogan. Para nem falar de inventar a linguagem real para uma política no espaço da mídia social”.
Não surpreende que os 1% estejam confusos. Occupy Wall Street já está criando uma nova linguagem política, detonando as velhas categorias de causa e efeito, usando, por exemplo, o que Guy Debord descrevia como “deriva”[4] – uma técnica de mover-se como raio por diferentes cenários (do físico ao virtual, ou da baixa Manhattan para a praça Washington Square e Times Square).
Já estão ampliando o conceito de “rizoma” de Gilles Deleuze e Felix Guattari – polindo uma máquina de guerra simbólica, interdisciplinar, subterrânea.
Netos de maio de 68 e dos Situacionistas, Occupy Wall Street só poderia ser radical. Quer ir além da política, do poder das grandes corporações e do nepotismo corporativo. Não podem ser comprados – razão chave da zombaria nervosa de que são alvo, pelos interesses corporativos (quem se preocupa com as corporações gigantes Time Warner e a News Corporation de Rupert Murdoch? Occupy os fará apodrecer na irrelevância). É essencialmente uma rebelião coletiva do povo – nem direita nem esquerda, mas, com certeza não é conservadora – que se recusa a ser cooptada (e deve-se esperar que tratem oportunistas como Al Gore, Warren Buffett e George Soros como praga).
O que querem? Querem que o bem comum seja acessível para todos – não privatizado até a morte ou explorado por castas políticas corruptas. O modo como o bem comum – a água, as florestas, as redes de comunicação, as fábricas, as redes de transporte, os hospitais – deve ser usado, deve ser decidido pelos cidadãos de cada local, Ágora (local da assembleia popular grega) contemporânea. Isso significa, essencialmente, pôr o povo antes de tudo – exatamente a antítese da mercantilização da vida.
É agenda utopista e – o que faz enlouquecer a direita atlanticista – é apelo direto ao comunismo utópico. Titus Levi, professor no United International College em Zhuhai, sul da China, chama a isso “commonism”[5]; reflete sobre como “ter uma economia da biologia e da humanidade vira de cabeça para baixo o atual sistema: usar a economia como ferramenta a favor da humanidade, não reduzindo a humanidade a zero, para servir os imperativos econômicos”.
Occupy World Street com certeza deseja que as florestas não sejam arrasadas, que o ar não seja poluído, que os bancos não passem a perna nos clientes, e que os cidadãos engajem-se completamente no comando da vida pública (e não se resignem a só votar, sob leis eleitorais repressivas, a cada quatro ou cinco anos). Isso implica que se aprovem leis sensíveis, a serem aplicadas por gente honesta. Não é o que se vê acontecer – e, daí, que as fileiras da Internacional dos Indignados só fazem aumentar.
Jovens, olhem para o sul
Occupy Wall Street também poderia usar um manual de “empurra-que-vai” da política radical, como Hermeneutic Communism [6], de Gianni Vattimo, professor de filosofia na Universidade de Turin, e Santiago Zabaleta, professor pesquisador na Universidade de Barcelona [7].
Em 140 páginas carregadas de ação – mais muitas notas – Vattimo e Zabaleta afastam-se do comunismo soviético histórico e do modelo chinês contemporâneo, e elogia os atuais governos da América do Sul, democraticamente eleitos, “determinados a defender os interesses dos cidadãos mais fracos”.
Estão com certeza certos, ao acreditar que “essa região do mundo é a que mais bem representa o comunismo do século 21, que, como disse Eric Hobsbawm, tem de ser, mais, e antes de tudo, uma crítica do capitalismo”; ou uma defesa do que o grande Walter Benjamin chamou de “a tradição dos oprimidos”.
Vattimo e Zabaleta produzem crítica devastadora de nossa “democracia enquadrada”, na qual os 1% “buscam a verdade pela via da imposição (violência), da conservação (realismo) e do triunfo (história). Esses sistemas metafisicamente enquadrados defendem que a sociedade deva reger-se conforme a verdade (o paradigma existente), quer dizer, a favor dos fortes contra os fracos”.
Vattimo e Zabaleta evidentemente destroem toda a falácia do “fim da história”, e demonstram “como, dentro do sistema das democracias metafisicamente enquadradas, a mudança é quase impossível”. A única alternativa que resta hoje está no espaço latino e, especialmente, sul-americano onde, para citar Noam Chomsky, “as pessoas levam a democracia mais a sério que no Ocidente; com certeza, mais a sério que nos EUA”.
Por imperfeitos que sejam os diferentes experimentos nacionais, do Brasil à Venezuela, da Bolívia à Argentina, os novos governos sul-americanos têm sido, pelo menos, mais representativo de seus povos, porque “vêm-se separando, não só das imposições neoliberais mas, também, da presença militar de plantão, quer dizer, do capitalismo armado”.
Assim sendo, Occupy the World tem muito a ganhar se analisar os diferentes experimentos políticos em andamento na América do Sul. Paralelos com a Europa também são muito iluminadores. Comparem-se, por exemplo, a Argentina – onde, nas próximas eleições dia 23 de outubro, Cristina Kirchner ganhará seu terceiro mandato pós-neoliberal, como Dilma Rousseff, no Brasil – e a Espanha, terra dos Indignados, onde, acreditem ou não, é altamente provável que o Partido Popular, reacionário quase-fascista, vença as eleições de 20/11/2011.
Jose Maria Aznar, reptiliano ex-primeiro-ministro espanhol, descreveu os Indignados como “movimento marginal, não representativo”, exatamente como qualquer âncora do canal Fox News.
Que ninguém se engane[8]: o poder intelectual de fogo, para canalizar a fúria global já está aí, de Vattimo e Zabaleta a Deleuze e Guattari, de Debord e Benjamin a David Harvey e Eric Hobsbawm, de Alan Badiou e Slavoj Zizek a Minqi Li e Wang Hui, de Atílio Borón ao vice-presidente da Bolívia Alvaro García Linera.
Não é revolução (global) – ainda é (lenta) evolução. A maioria pós-política silenciosa com certeza não é estúpida: é só descrentemente conformada. O desafio é arrancá-la de suas almofadas e controles remotos e trazê-la para a rua – para termos 99% em ação.
Isso obriga a pressionar a favor de algumas políticas chaves: taxar a riqueza e o sistema financeiro, mais fundos para a educação pública, assistência pública decente à saúde e fim do Império da Bases dos EUA viciados em Pentagonização. No que tenha a ver com os EUA, a maioria dos norte-americanos é favorável a essas políticas.
Assim sendo, the answer, my friend, está e continuará a soprar das ruas[9]. Todo o poder à Internacional dos Indignados. É hora de remixar “Martha and the Vandellas” [10] para o início do século 21. Que se pergunte a todo o mundo, por aí a fora: você está pronto para uma nova pegada, completamente nova?
Notas dos tradutores
[1] Pode ser lido em português, em: 1940. In BENJAMIN, Walter, Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.
[3] Ver: The Beach Beneath the Street: Tha Everyday Life and Glorious Times of the Situationist International [em inglês].
[4] O ensaio de Debord pode ser lido (em francês) e há uma espécie de resumo, com trechos traduzidos ao português, , trad. de Amélia Luisa Damiani.
[5] A oposição “comunism” (ing.) versus “commonism” (ing.) perde-se na tradução para o português, que traduz as duas palavras como “comunismo”. “Commonism” é neologismo criado em inglês, a partir de “common”, que significa “de todos”, sem qualquer dos traços pejorativos que há em “comum” [port. do Brasil], semanticamente contaminado por traços de “vulgar”, “sem requinte”.
[7] VATTIMO, Gianni e ZABALA, Santiago, Hermeneutic Communism: From Heidegger to Marx, Columbia University Press, 264 p., outubro 2011, ISBN: 978-0-231-15802-2. Na página da editora, lê-se: “Enquanto Michael Hardt e Antonio Negri convocam a uma volta da esquerda revolucionária [o que é falso!], Vattimo e Zabala temem que isso leve apenas a mais violência e às mesmas políticas fracassadas. Em vez disso, adotam uma posição antifundacionista, que extraem do pensamento hermenêutico de Martin Heidegger, Jacques Derrida e Richard Rorty”.
[8] Orig. “Make no mistake”. É expressão de alta frequência nos discursos de Obama. Segundo o Global Language Monitor, é o bordão que Obama mais usa: 2.924 vezes, desde que assumiu o mandato, até 28/3/2011.
[9] Orig. “The answer, my friend, is (...) blowing in the wind”. É verso imortal de Bob Dylan. Se se procura pelo nome “Bob Dylan”, pelo Google, recebe-se agora uma mensagem que diz: “Infelizmente ocorreu um erro. Uma equipe de macacos especialistas altamente treinados foi designada para cuidar do problema” (em português). E “If you see them, show them this information (em inglês [“Se você os vir, mostre a eles a seguinte informação]): 5NHtGMYtF... e mais uma infinidade de letras.
[10] “Martha and the Vandellas” é um trio de cantoras negras, que gravaram vários discos na Motown, nos anos 60s. Se se procura pelo nome “Martha and the Vandellas”, pelo Google, recebe-se agora uma mensagem que diz: “Infelizmente ocorreu um erro. Uma equipe de macacos especialistas altamente treinados foi designada para cuidar do problema” (em português). E “If you see them, show them this information (em inglês [“Se você os vir, mostre a eles a seguinte informação]): 5NHtGMYtF... e mais uma infinidade de letras. Via link acima ouve-se um trechinho de “Heat Wave”.
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