sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Capitalismo zumbi e a esquerda pós-Obama


Vijay Prashad


6/10/2011, Vijay Prashad, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


“Antigamente, zumbis eram entidades cuja vida e trabalho eram capturados por meios mágicos. Os velhos zumbis trabalhavam sem descanso, dia e noite. Os zumbis contemporâneos não encontram trabalho de tipo nenhum. Vagam pelo mundo, esperando a morte.” [Junot Diaz [1]]


Ver também

30/9/2011 – Chris Hedges, Commondreams, #OccupyTogether: Eles são os melhores de nós 
29/9/2011, DJ Pangburn The Occupy Wall Street Journal

2/10/2011 – Adbusters-  #OccupyWallStreet (A primeira convocação - 13/7/2011)




Dia 4 de julho de 1965, Martin Luther King, Jr., subiu ao púlpito na Igreja Batista Ebenezer em Atlanta, Geórgia, e disse: “Muitas vezes vi meu sonho convertido em pesadelo”. Nas ruas dos EUA, King descobriu, vagavam desempregados em busca de trabalho, que não havia, e de uma já impossível dignidade. Veem a vida, disse ele, “como um corredor longo e desolado sem portas de saída”. King deixou atrás  de si uma série de vitórias monumentais, a Lei dos Direitos Humanos de 1964 e a Lei dos Direitos de Votar de 1965, e à volta dele, pronto para agir, havia um movimento que brotara do impulso potente da liberdade humana. Os movimentos de massa pelos Direitos Civis não dormiram sobre os louros das vitórias. Giravam em torno de King: uma tarefa estava cumprida, mas havia muitas outras ainda por cumprir. Era preciso prosseguir e, sobre as vitórias civis, construir a justiça econômica.

Qualquer um que ameace o fundamento da propriedade expõe-se à ira da Ordem. King foi assassinado, por suas transgressões, em 1968.

Em lugar de um movimento por justiça econômica, nasceu a ideologia do multiculturalismo. A Ordem reconheceu que o velho apartheid era anacrônico. Era necessário incorporar os negros mais talentosos às fileiras do dinheiro e do poder. Os que fossem consagrados, que defendessem seus parceiros deixados expostos ao frio da noite e ao desespero. Os poucos admitidos aos salões representariam os demais, simultaneamente como motivo para celebrar (um dos nossos “chegou lá”) e para punir (eu não consegui, porque não fui capaz).

Quando Obama subiu à tribuna em Grant Park, Chicago, dia 4/11/2008 e declarou-se vencedor da eleição presidencial, estava cumprida a promessa do multiculturalismo. Ao longo de décadas, muitos negros alcançaram as posições mais altas da vida empresarial e militar, do estado e da sociedade. O único posto ao qual nenhum negro jamais chegara até o dia 4 de novembro, era a presidência. Não surpreende que até Jesse Jackson Sênior tenha chorado quando Obama aceitou a vitória. Naquela noite, terminou o multiculturalismo. Virou anacrônico.

Obama completou sua missão histórica, de destruir o bicho-papão da distinção social: todas as cores da humanidade chegam “lá”, aos postos mais altos. [Missão secundária de Obama, também cumprida, foi garantir aos racistas mais empedernidos uma dose diária de vômito ácido, cada vez que o veem na televisão.]

Claro que nada disso implica que o racismo tenha sido derrotado nos EUA. Ele permanece. Quando a economia soçobrou em 2007-08, as vítimas mais cruelmente atingidas foram afro-americanos e latinos: perderam mais da metade de todos os bens, o equivalente a perder a poupança de uma geração inteira. Seria tolice falar de um movimento pós-racista. Até Obama sabia disso. Antes de ser eleito presidente, Obama disse à jornalista Gwen Ifill, para seu livro The Breakthrough, Politics and Race in the era of Obama [NY: Bantam Books, 2009]: “Raça é fator sempre presente na sociedade norte-americana. O legado de Jim Crow e da escravidão não desapareceu. Não é acaso que as mais altas taxas de criminalidade apareçam entre afro-americanos, que são os mais pobres. É resultado direto de nossa história racial. Ainda não enfrentamos aquela história.” Mas, na festa, festejou-se a era pós-multicultural. O racismo permaneceu vivo e forte. Por isso, hoje é hora de virar o jogo, como King fez em 1965.

Um dos principais elementos dos protestos de Occupy Wall Street (OWS) é que são formados pelas muitas várias correntes que constituem a Esquerda Norte-americana. Nossa força advém de nossa diversidade, de sabermos que nenhuma posição sobre qualquer questão pode deslocar qualquer das demais posições e questões. A rede interconectada de agressões e violência contra todos, nos arrasta para uma política antissistema. 

Para alguns, a ampla diversidade de nosso movimento seria uma falha; querem saber por que não nos concentramos em uma ou duas questões, na questão central – a “questão central” que, quase sempre, converte a vida nua em abstração de história em quadrinhos (a “economia” estará realmente ausente das questões de raça e gênero?). Há pelo menos duas respostas a essas objeções frívolas. 

Primeira: a Esquerda nos EUA é constituída precisamente dessa vastidão que obriga a reconhecer o direito que os muitos têm, de corrigir todos os erros. A Esquerda norte-americana tem de acolher mais e mais pessoas, quantas mais, melhor, com certeza, nas ruas e no movimento Occupy Wall Street, e que tragam para cá todas as suas queixas e sonhos. Nosso movimento tem de prometer mais a cada um de nós, do que o presente oferece. 

Segunda: um clamor em nome da liberdade humana jamais será mais importante que outro. Aos poucos, crescerá dentro de nosso movimento um debate sério sobre como definir nossas principais reivindicações e como fazer avançar um item da agenda, antes de outro. É inevitável. Mas isso não implica que, de início, possamos fechar a porta a uma ou outra questão, seja qual for.
A Declaração da Assembleia Geral de New York, do dia 29/9 diz: “Estas demandas não são exaustivas.”[2] Não são nem devem ser.

No início do movimento Occupy Wall Street, poucos discordaram do que se lia num dos cartazes, que os que protestam são “uma única raça, a raça humana, antigamente dividida por raça e classe.” Com essa frase, Hena Ashraf, Sonny Singh, Manissa McCleave Maharawal e outros contestam a ideia de que as divisões em nossa humanidade estariam já superadas. Esse tipo de contestação é que dá base ao nosso movimento, e não o divide. O capitalismo, construído sobre a desigualdade de propriedade e de formação social que herdou, é um dos motores básicos da divisão social. Mas não basta a boa vontade para anular ou “superar” as divisões, por passe de mágica. 

Essas lutas têm de ser lutadas, mesmo dentro dos nossos novos movimentos. Haver agora um “Grupo de Trabalho das Pessoas de Cores” dentro do movimento Occupy Wall Street [3] e uma página na Internet dedicada a compromisso muito mais profundo com a luta contra o racismo dentro do Occupy Wall Street  [4] é sinal de esperança, não de desespero ou desorientação.

O multiculturalismo terminou, mas a desigualdade social e econômica continua, viva e forte. A nova política tem de mover-se para além do multiculturalismo, para além de defender Obama e na direção de desafiar mais profundamente a ordem atual, insustentável. Deve alimentar-se das muitas correntes da insatisfação e nutrir-se numa nova e radical imaginação.

Do movimento Occupy Wall Street germinarão várias outras demandas, e, com o tempo as demandas tornar-se-ão mais concretas, cada vez mais inteligíveis para a Ordem e o Poder. Algumas dessas demandas não serão novas: impostos sobre transações financeiras (alguma versão da Taxa Tobin), fim da guerra e do dinheiro que se desperdiça em guerras, fim da porta giratória entre o estado e as grandes empresas, aprovação da volta da Lei da Prudência para Bancos (na prática, volta da Lei Glass Steagall, de 1933, que o Congresso rejeitou em 1999) etc., etc. São reformas na linha de um liberalismo mais robusto. Essas ideias estão sendo discutidas e serão votadas.

Mas a imaginação radical exige muito mais. Busca algumas vitórias pontuais, outras simplesmente simbólicas, quer reformas imediatas e outras, para mais longo prazo.

(1) Vitórias simbólicas. “Fora Timothy Geithner!” O secretário do Tesouro Timothy Geithner  tem de renunciar. É homem próximo demais do mundo do capital financeiro, não vive sem a aprovação do capital financeiro, não nos serve, nem há lugar para ele num mundo no qual as finanças sejam controladas pelo estado e pela sociedade.

(2) Reformas imediatas. O Progressive Caucus [aprox. “Bloco Progressista”] no Congresso dos EUA deve propor algum tipo de estímulo popular, que dê algum alívio aos que vivem sob o risco de perder suas casas, aos que não têm nenhum tipo de plano de assistência à saúde e aos que estão sem qualquer tipo de renda. O dinheiro deve ser redirecionado imediatamente para atender à crise da vida das pessoas mais pobres. Nada de “estímulo” para bancos e grandes empresas. Esses “estímulos” não têm qualquer efeito contra a miséria que se alastra. O que se quer é, por exemplo, que o governo use seu poder para fixar um preço para comprar as hipotecas dos odiosos agentes da usura financeira e alugar as casas aos moradores, sob condições e preços que eles possam suportar. Simultaneamente, o Progressive Caucus deve seguir o exemplo de Springfield, MA, e aprovar lei que multe os bancos que tentem despejar proprietários pobres, apanhados na rede criminosa das hipotecas “impossíveis”. Reformas desse tipo devem ser imediatamente propostas para garantir assistência à saúde e alguma renda para os mais pobres.

(3) Demandas de longo prazo. Nosso movimento tem de pressionar o Senado para que parte maior do orçamento seja aplicada em alguma espécie de salário social. Temos de exigir, sem mais hesitação, assistência universal à saúde, transporte público eficiente e barato, educação universal e gratuita da pré-escola à universidade, etc. Temos de confrontar diretamente a isenção de impostos para as grandes empresas e o gasto militar. E a riqueza social tem de ser aplicada para suprir as necessidades sociais. Uma das razões pelas quais o trabalhador norte-americano já não é competitivo no mercado mundial de trabalho está no fato de que muitos aspectos fundamentais de nossas vidas foram empurrados para nossos ombros pessoais (saúde, educação, seguros, transporte). Se essas despesas forem tiradas dos nossos ombros e passarem a ser custos do estado, poderemos ganhar menos e produzir mais, e voltaremos a ser capazes de produzir bens que possam ser absorvidos no nosso próprio mercado interno.

O capitalismo zumbi condenou ao silêncio o coração dos EUA, forçado a depender de bens produzidos longe daqui e de créditos que já não há por aqui, para consumir aqueles bens. É loucura. É loucura insustentável. Ninguém sobrevive nos confins do capitalismo zumbi. É preciso imaginar outro sistema. Occupy Wall Street é o primeiro passo.





Notas dos tradutores
[1]  Autor de A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao, Rio de Janeiro: Record, 2009. Trad. Flavia Carneiro Anderson.
[2]  2/10/2011, “Primeiro Comunicado Oficial do Ocupar Wall Street”, Assembleia Geral de Nova York , Tradução de Idelber Avelar, revista Fórum
[3]  “Criado em resposta à falta de diversidade racial em #OccupyWallStreet, com o objetivo de desenvolver a consciência crítica, dentro do movimento, de modo a incluir os mais diretamente afetados pela atual crise. Una-se a nós no “Working Google Group ” e no "People of Color / #OccupyWallStreet(6/10/2011) 
[4] “Vi também muitos cartazes baseados na ideia de privilégio e na bobagem de quem ‘merece’ o quê. Muitos jovens levam cartazes em que lamentam não conseguir pagar os empréstimos para pagar a universidade, tristes porque o diploma não lhes trouxe empregos e sucesso, como esperavam. Saí de lá pensando que os índices mais altos de evasão escolar estão entre os latinos e que eu não tenho diploma. Estou incluída nesse diálogo/narrativa ou, mesmo dentro desse ‘movimento’, há gente pela qual não vale a pena lutar – gente que não ‘merece’ o “sonho americano” porque não segue a ordem prescrita das coisas?” [4/10/2011, #Occupy Wall Street & the Language of Resistance”, Maegan La Mala].

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