Michael Moore |
27/10/2011, Michael Moore,
“Carta”,
Michael Moore Blog - Life
Among the 1%
(dica
do Eliseu, que nos acompanha da
Itália)
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Amigos,
Há
22 anos, que se completam na 3ª-feira, eu estava com um grupo de operários,
estudantes e desempregados no centro da cidade onde nasci, Flint, Michigan, para
anunciar que o estúdio Warner Bros, de Hollywood, afinal comprara os direitos
para distribuir meu primeiro filme, “Roger & Me”. Um jornalista perguntou:
“Por quanto você vendeu?”
“Três
milhões de dólares” – respondi com orgulho. Houve um grito de admiração, do
pessoal dos sindicatos que me cercava. Nunca acontecera, nunca, que alguém da
classe trabalhadora de Flint (ou de lugar algum) tivesse recebido tanto
dinheiro, a menos que um dos nossos roubasse um banco ou, por sorte, ganhasse e
grande prêmio da loteria de Michigan. Naquele dia ensolarado de novembro de
1989, foi como se eu tivesse ganho o grande prêmio da loteria – e o pessoal com
quem eu vivia e lutava em Michigan ficou eufórico com o meu sucesso. Foi como se
um de nós, afinal, tivesse conseguido, tivesse chegado lá, como se a sorte
afinal tivesse sorrido para nós. O dia acabou em festa. Quando você é
trabalhador, de família de trabalhadores, todos cuidam de todos, e quando um se
dá bem, ou outros vibram de orgulho – não só pelo que conseguiu ter sucesso, mas
porque, de algum modo, um de nós venceu, derrotou o sistema brutal contra todos,
sem mercê, que comanda um jogo cujas regras são distorcidas contra
nós.
Nós
conhecíamos as regras, e as regras diziam que nós, ratos de fábricas da cidade,
nunca conseguimos fazer cinema, ou aparecemos em entrevistas na televisão ou
conseguimos nos fazer ouvir em palanque nacional. Nossa parte deveria ser ficar
de bico calado, cabeça baixa, e voltar ao trabalho. E, como que por milagre, um
de nós escapara dali, estava sendo ouvido e visto por milhões de pessoas e
estava “montado na grana” – santa mãe de deus, se preparem! Um palanque e muito
dinheiro... agora, sim, é que os de cima vão ver só!
Naquele
momento, eu sobrevivia com o salário-desemprego, $98 por semana. Saúde pública.
Meu carro morrera em abril: sete meses sem carro. Os amigos me convidavam para
jantar e sempre pagavam a conta antes que chegasse à mesa, para me poupar do
vexame de não poder dividir a conta.
E
então, de repente, lá estava eu montado em três milhões de dólares. O que eu
faria do dinheiro? Muitos rapazes de terno e gravata apareceram com muitas
sugestões, e logo vi que, quem não tivesse forte senso de responsabilidade
social, seria facilmente arrastado pela via do “eu-eu” e muito rapidamente
esqueceria a via do “nós-nós”.
Em
1989, então, tomei decisões fáceis:
1.Primeiro
de tudo, pagar todos os meus impostos. Disse ao sujeito que fez a declaração de
rendimentos, que não declarasse nenhuma dedução além da hipoteca; e que pagasse
todos os impostos federais, estaduais e municipais. Com muita honra, paguei
quase um milhão de dólares pelo privilégio de ser norte-americano, cidadão desse
grande país.
2.Os
2 milhões que sobraram, decidi dividir pelo padrão que, uma vez, o cantor e
ativista Harry Chapin ensinou-me, sobre como ele próprio vivia: “Um para mim, um
para o companheiro”. Então, peguei metade do dinheiro – e criei uma fundação
para distribuir o dinheiro.
3.O
milhão que sobrou, foi usado assim: paguei todas as minhas dívidas, algumas que
eu devia aos meus melhores amigos e vários parentes; comprei uma geladeira para
os meus pais; criei fundos para pagar a universidade das sobrinhas e sobrinhos;
ajudei a reconstruir uma igreja de negros destruída num incêndio, lá em Flint;
distribuí mil perus no Dia de Ação de Graças; comprei equipamento de filmagem e
mandei para o Vietnã (meu movimento pessoal, para reparar parte do mal que
fizemos àquele país, que nós destruímos); compro, todos os anos, 10 mil
brinquedos, que dou a Toys for Tots
no Natal; e comprei para mim uma moto Honda, fabricada nos EUA, e um apartamento
hipotecado, em New York
City.
4.O
que sobrou, depositei numa conta de poupança simples, que paga juros baixos.
Tomei a decisão de jamais comprar ações. Nunca entendi o cassino chamado Bolsa
de Valores de New York, nem acredito
em investir num sistema com o qual não concordo.
5.Sempre
entendi que o conceito do dinheiro que gera dinheiro criara uma classe de gente
gananciosa, preguiçosa, que nada produz além de miséria e medo para os pobres.
Eles inventaram meios de comprar empresas menores, para imediatamente as fechar.
Inventaram esquemas para jogar com as poupanças e aposentadorias dos pobres,
como se dinheiro dos outros fosse dinheiro deles. Exigiram que as empresas
sempre registrassem lucros (o que as empresas só conseguiram porque demitiram
milhares de trabalhadores e acabaram com os serviços de saúde pública para os
que ainda tinham empregos). Decidi que, se ia afinal ‘ganhar a vida’, teria de
ganhá-la com meu trabalho, meu suor, minhas ideias, minha criatividade. Eu
produziria produtos tangíveis, algo que pudesse ser partilhado com todos ou de
que todos gostassem, como entretenimento, ou do qual pudessem aprender alguma
coisa. Meu trabalho, sim, criaria empregos, bons empregos, com salários decentes
e todos os benefícios de assistência médica.
Continuei
a fazer filmes, a produzir séries de televisão e a escrever livros. Nunca
iniciei um projeto pensando “quanto de dinheiro posso ganhar com isso?”. Nunca
deixei que o dinheiro fosse a força que me fizesse fazer qualquer coisa. Fiz,
simplesmente, exatamente o que queria fazer. Essa atitude ajuda a manter honesto
o meu trabalho – e, acho, ao mesmo tempo, resultou em milhões de pessoas que
compram ingresso para assistir aos meus filmes, assistem aos programas que
produzo e compram meus livros.
E
isso, precisamente, enlouqueceu a Direitona. Como é possível que alguém da
esquerda tenha tanta audiência no “grande público”?! Não pode ser! Não era para
acontecer (Noam Chomsky, infelizmente, não aparece na lista dos 10 programas
mais vistos da televisão; e Howard Zinn, espantosamente, só chegou à lista dos
mais vendidos do
New
York Times,
depois de morto). Assim opera a mídia-máquina. Está regulada para que ninguém
jamais ouça falar dos que, se pudessem, mudariam todo o sistema, para coisa
muito melhor. Só liberais babacas, que vivem de exigir cautela e concessões e
reformas lentas, aparecem com os nomes impressos nas páginas de editoriais dos
jornais ou nos programas da televisão aos domingos.
Eu,
de algum modo, encontrei uma brecha na muralha e meti-me por ali. Sinto-me
abençoado, podendo viver como vivo – e não ajo como se tudo fosse garantido para
sempre. Acredito nas lições que aprendi numa escola católica: que se você se dá
bem, maior a sua responsabilidade por quem não tenha a mesma sorte. “Os últimos
serão os primeiros e os primeiros serão os últimos.” Meio metido a comunista, eu
sei, mas a ideia é que a família humana existe para partilhar com justiça as
riquezas da terra, para que os filhos de Deus passem por essa vida, com menos
sofrimento.
Dei-me
bem – para autor de documentários, dei-me super bem. Isso, também, faz pirar os
conservadores. “Você está rico por causa do capitalismo!” – eles gritam.
Hummm... Não. Não assistiram as aulas de Economia I? O capitalismo é um sistema,
um esquema “pirâmide” que explora a vasta maioria, para que uns poucos, no topo,
enriqueçam cada vez mais. Fiz meu dinheiro, à moda antiga, honestamente,
fabricando produtos, coisas. Nuns anos, ganho uma montanha de dinheiro, noutros
anos, como o ano passado, não tenho trabalho (nada de filme, nada de livro);
então, ganho muito menos. “Como é que você diz defender os pobres, se você é
rico, exatamente o contrário de ser pobre?!” É o mesmo argumento de quem diz
que, “Você nunca fez sexo com outro homem! Como pode ser a favor do casamento
entre dois homens?!"
Penso
como pensava aquele Congresso só de homens que votou a favor do voto para as
mulheres, ou como os muitos brancos que foram às ruas, marchar com Martin Luther
Ling, Jr. (E lá vêm a Direitona, aos gritos, ao longo da história: “Hei! Você
não é negro! Você nem foi linchado! Por que está a favor dos negros?!”). Essa
desconexão impede que os Republicanos entendam por que alguém dá o próprio tempo
ou o próprio dinheiro, para ajudar quem tenha menos sorte. É coisa que o cérebro
da Direitona não consegue processar. “Kanye West ganha milhões! O que está
fazendo lá, em Occupy Wall Street?!”.
Exatamente – lá está, exigindo que aumentem os impostos cobrados dele mesmo.
Isso, para a Direitona, é definição de loucura. Todo o resto do mundo somos
muito gratos que gente como ele se tenha levantado, ainda que – e sobretudo
porque – é gente que se levantou contra seus pessoais interesses financeiros. É
precisamente a atitude que a Bíblia que aqueles conservadores tanto exaltam por
aí exige de todos os ricos.
Naquele
dia distante, em novembro de 1989, quando vendi meu primeiro filme, um grande
amigo meu disse o seguinte: “Eles cometeram erro muito grave, ao entregar tanto
dinheiro a um sujeito como você. Essa grana fará de você homem perigosíssimo. É
prova do acerto do velho dito popular: “Capitalista é o sujeito que vende a você
a corda para enforcar ele mesmo, se achar que, na venda, ele pode ganhar
algum”.
Atenciosamente,
Michael Moore
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