27/10/2011, *M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido
pelo Coletivo da Vila
Vudu
Dois
traços atuais da política da região enfraquecem seriamente a campanha dos EUA
para pôr de joelhos o Paquistão na fase de atual de encerramento da guerra do
Afeganistão. Primeiro, que a Índia não se deixou envolver na campanha
norte-americana e busca política independente no relacionamento com
Islamabad.
O
segundo fator que está minando as políticas dos EUA para isolar o Paquistão no
sul da Ásia é a simpatia das nações sul-asiáticas, em relação ao Irã. O
Paquistão estaria bem mais isolado se houvesse alguma aguda rivalidade entre
Paquistão e Irã, no quadro atual da guerra do Afeganistão. Mas o atual nível de
cordialidade nessas relações permite que Islamabad se concentre na disputa com
os EUA e até receba sinais de encorajamento de Teerã.
É
conversa fiada
Em
declaração recente sobre a questão que separa EUA e Paquistão, o ministro de
Relações Exteriores da Índia S M Krishna destacou que a Índia não aprova a
abordagem dos EUA (ver “US puts the
squeeze on Pakistan”,
Asia
Times,
22/10/2011,em inglês). A declaração foi cuidadosamente cronometrada para indicar
a Washington (e a Islamabad) que Delhi de modo algum aprova qualquer forma de
ação militar dos EUA contra o Paquistão.
Há
várias evidências a sugerir que o governo do Paquistão aprova a posição da
Índia. O quartel-general em Rawalpindi mobilizou-se sem alarde, no domingo, para
devolver à Índia, em apenas algumas horas, um helicóptero com três altos
oficiais militares, que fizera pouso de emergência em território paquistanês,
durante uma tempestade, no setor altamente sensível de Siachen. O porta-voz
oficial em Delhi manifestou-se em seguida, para registrar que a Índia muito
apreciara o movimento do Paquistão. Esses gestos de conciliação são raros (dos
dois lados), na crônica das relações entre Paquistão e Índia.
Outra
vez, semana passada, a Índia aprovou a candidatura do Paquistão a membro
permanente do Conselho de Segurança da ONU; e o embaixador paquistanês
imediatamente respondeu que trabalharia com seu contraparte indiano em New York.
É surpreendente, num contexto em que a ONU tem sido teatro de frequentes
confrontos entre Índia e Paquistão, sobre o problema da
Caxemira.
No
futuro imediato, os primeiros-ministros de Índia e Paquistão deverão
encontrar-se durante o encontro da Associação Sul-Asiática para a Cooperação
Regional, no Mali, dias 10-11 de novembro. Seria de esperar que Washington
rapidamente se apresentasse como “facilitador”, insistindo em melhorar o clima
das relações entre Índia e Paquistão. Calibrar as tensões entre Índia e
Paquistão é, tradicionalmente, elemento chave da diplomacia regional dos EUA.
Mas, dessa vez, os EUA só estão observando, com certo grau de desconforto, que a
cacofonia está diminuindo, nessa complexa sinfonia asiática.
Washington
“retaliou”, depois da declaração de Krishna: emitiu um alerta de viagens para
cidadãos norte-americanos sobre o risco de visitar a Índia, por causa de fortes
indícios de ameaças terroristas. Delhi, por sua vez, desqualificou o movimento
de Washington: considerou-o “desproporcionado” – modo elegante de dizer que o
alerta não passava de conversa fiada.
Jundallah
em retirada
O
que está acontecendo nas relações Paquistão-Irã é ainda mais preocupante, para
os EUA. Houve várias visitas de alto nível entre Islamabad e Teerã, e as duas
capitais chegaram a entendimento em várias questões de segurança. Semana
passada, Teerã reconheceu que não houve nenhum ataque pelo grupo terrorista
Jundallah, que partisse do lado paquistanês da fronteira na região do
Baloquistão, nos últimos dez meses.
Teerã
acusou os EUA de controlar os terroristas do Jundallah para, através deles,
conduzir operações secretas para desestabilizar o Irã. E, desde a prisão de
Raymond Davis, agente da CIA preso em Lahore em janeiro, Islamabad já prendeu
centenas de agentes da inteligência dos EUA que operavam em solo paquistanês, o
que comprometeu seriamente a capacidade dos EUA para continuar a mandar
terroristas do Jundallah em ataques ao Irã.
Teerã
está satisfeita por o
establishment
de
segurança paquistanês estar afinal agindo decididamente para destruir a rede
terrorista Jundallah, apoiada pelos EUA; e retribuiu a boa vontade dos
paquistaneses, trabalha para harmonizar sua política afegã e escrupulosamente
nunca mais repetiu acusações ao Paquistão pelo assassinato do presidente do
Supremo Conselho Afegão para a Paz, Burhanuddin Rabbani, aliado íntimo de
Teerã.
Na
essência, o Irã avalia que a atitude de “desafio estratégico” do Paquistão
contra os EUA terá efeitos positivos na estabilidade regional; é outro modo de
dizer que Teerã encoraja a ideia de forçar as tropas norte-americanas a deixar a
região.
Teerã
foi bem-sucedida na luta por objetivo semelhante no Iraque, onde trabalhou para
que as elites políticas xiitas em Bagdá não acedessem às súplicas desesperadas
dos EUA para que permitissem a permanência de soldados dos EUA mesmo depois de
esgotado o prazo máximo para a retirada (dezembro de 2011) previsto no
Acordo
SOFA
vigente.
Mas no Afeganistão os problemas são diferentes, e uma estratégia comum com o
Paquistão muito beneficiará o Irã.
O
Paquistão mantém uma posição ambígua sobre a questão da permanência de longo
prazo dos EUA no Afeganistão, mas pode contar com a robusta oposição dos Talibã
aos projetos das bases norte-americanas permanentes.
Não
surpreendentemente, o Irã investe numa abordagem de vários braços estendidos na
direção dos Talibã.
Esforço
concertado
Em
resumo, o cenário geral na região vai-se configurando cada vez mais desfavorável
para os EUA. A redução das tensões nas relações entre o Paquistão e a Índia e
entre o Paquistão e o Irã minam a estratégia norte-americana para tentar
‘inserir-se’ na região.
O
alerta contra viagens à Índia, feito pelos EUA visava a despertar desconfianças
e temores, na Índia, quanto à possibilidade iminente de ataques terroristas
patrocinados pelo Paquistão. A guerra de desinformação patrocinada pelos EUA
reaparece também em notícias de que China e Paquistão estariam conspirando
contra a Índia, em referência a instalação de bases militares chineses em áreas
do norte do Paquistão, que é parte da Caxemira.
O
movimento de desinformação patrocinado pelos EUA coincide com avanços
significativos na melhoria da situação da segurança no Vale Caxemir, a ponto de
o ministro-chefe Omar Abdullah ter abertamente defendido, semana passada em
Srinagar, que se suspendam progressivamente as leis de emergência vigentes há
décadas; e que Delhi inicie processo para engajar seriamente o Paquistão em
negociações para resolver o problema da Caxemira.
A
campanha de propaganda conduzida pelos EUA, sobre possíveis bases militares
chinesas na Caxemira paquistanesa, visa a dois objetivos: criar discórdia entre
Paquistão e Índia e, também, entre China e Índia.
O
primeiro-ministro da Índia Manmohan Singh fez importante declaração semana
passada, em que se disse “convencido” de que as lideranças chinesas querem
solução pacífica para os problemas entre Índia e China, incluídas aí as antigas
disputas de fronteiras. Significativamente, manifestou sua “sincera esperança de
que seja possível que encontremos meios e modos pelos quais os dois vizinhos
possam viver em paz e amizade, apesar do persistente problema de
fronteiras”.
A
declaração de Manmohan ganha significado especial, no momento em que os dois
países estão prestes a iniciar uma 15ª rodada de conversações sobre as questões
de fronteiras, em New Delhi. Em movimento também significativo, o ministro de
Relações Exteriores da China logo respondeu à abertura política de Manmohan.
Pequim disse que a China está “pronta a trabalhar com a Índia, para aprofundar a
parceria estratégica China-Índia. A declaração dizia:
“Como
vizinhos mutuamente importantes, China e Índia têm-se empenhado consistentemente
nas relações bilaterais. Quanto à questão das fronteiras, que se arrasta pela
história, os dois lados têm buscado solução justa, razoável e aceitável por
ambas as nações, mediante consultas amigáveis. À espera de uma solução
definitiva, os dois lados continuam comprometidos com manter a paz e a
tranquilidade nas áreas de fronteira.”
Temporada
de propaganda
Outra
vez, surgem relatos especulativos, sem fontes, sem autores – e impossíveis de
confirmar – sobre os chineses pretenderem estabelecer bases militares no extremo
norte da região da Caxemira paquistanesa, e surgem em momento inicial da
reconstrução local da segurança regional. A elaborada tese que subjaz àqueles
relatos é que Delhi deveria desconfiar profundamente das intenções “perversas”
de China e Paquistão e que deve ir mais devagar no processo de normalização de
relações com esses vizinhos “traiçoeiros”.
Delhi
também está sendo bombardeada, ao mesmo tempo, por propaganda dos EUA, segundo a
qual Washington estaria “costurando” uma “grande jogada” relacionada ao
Afeganistão, pela qual haveria possibilidade de acomodarem-se todas as
preocupações de todos – e jogada que poderia incluir a intervenção dos EUA como
mediador das discussões sobre a Caxemira, em troca de Delhi pressionar a favor
de os EUA permanecerem no Afeganistão.
Em
artigo carregado de entrelinhas, publicado na revista
Foreign
Policy,
semana passada, às vésperas da visita da secretária Hillary Clinton a Islamabad,
dois destacados especialistas de um
think-tank
conectado
ao
establishment
de
Washington tentavam atrair o Paquistão e assustar a Índia e puseram sobre a mesa
os ingredientes da tal “grande jogada”. Não há dúvidas: estamos em plena
temporada de propaganda.
O
cerne da questão é que os EUA tentam desesperadamente arrancar um acordo
estratégico com o governo do presidente Hamid Karzai em Kabul que resulte na
fixação da presença militar de longo prazo dos EUA no
Afeganistão.
Na
2ª-feira, centenas de afegãos manifestaram-se em Kabul contra as bases
norte-americanas. No mesmo dia, a Câmara Baixa do parlamento afegão rejeitou,
por entender que violaria a soberania do país, um projeto para orientar os
procedimentos do governo afegão na execução do acordo hoje vigente com os EUA. O
Parlamento afegão não dá sinais de ver com simpatia a presença permanente dos
norte-americanos no país.
Karzai
está convocando uma
loya
jirga
(grande
conselho) buscando apoio para um “pacto” EUA-Afeganistão. As coisas esquentarão,
quando a
loya
jirga
reunir-se
dia 16 de novembro. Karzai prometeu que qualquer pacto EUA-Afeganistão será
levado ao Parlamento para exame e aprovação, depois de discutido
na
jirga.
Washington insiste que a
jirga
já
tenha aprovado uma primeira redação desse pacto, antes da Conferência Bonn II,
em dezembro. O futuro político de Karzai depende de entregar ou não, aprovado, o
tal pacto.
Foram
convidados para a
jirga
todos
os deputados, alguns ex-deputados, 1/3 dos membros dos conselhos provinciais,
representantes da sociedade civil e figuras de destaque na sociedade,
intelectuais religiosos e influentes líderes tribais. 230 representantes das
comunidades de afegãos que vivem como refugiados no Paquistão, no Irã e em
países ocidentais também participaram dessa
jirga,
que terá a força de 2.300 participantes votantes.
Dia
13 de setembro, Dadfar Spanta, Conselheiro de Segurança Nacional do Afeganistão
disse a parlamentares afegãos que, depois de assinar o pacto, os EUA poderão
instalar bases militares no Afeganistão, mas que nenhum pacto será assinado
antes de aprovado pelo parlamento afegão. Spanta acrescentou: “São genuínas as
preocupações de nossos vizinhos [sobre o pacto EUA-Afeganistão], mas não
permitiremos que nosso território seja usado contra eles”.
O
que o parlamento afegão teme, contudo, é que Karzai opte por “passar por cima”
do parlamento, depois de arrancar a concordância de uma
jirga
complacente,
acolhendo a interpretação de que a
jirga
manifestaria
a opinião coletiva dos afegãos. Na 2ª-feira, o parlamento encarregou seu
presidente, de enviar comunicado oficial a Karzai, para lembrá-lo de que aprovar
acordos em questões de política externa é prerrogativa constitucional do
parlamento.
A
guerra do Afeganistão está entrando em fase crucial. O fim da guerra dependerá,
muito, da política regional. O pior, em todos os casos, para os EUA, será um
cenário em que, trabalhando para reduzir as disputas intrarregionais entre
Paquistão, Irã, Índia e China, esses países construam opinião convergente,
partilhada, de oposição a bases militares norte-americanas
permanentes.
Aprofundar
as mesmas disputas, portanto, interessa muito, na atual conjuntura, aos
objetivos geopolíticos dos EUA. É velha estratégia dos EUA, de “dividir para
governar”.
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala
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