Pepe Escobar |
11/10/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online (de Florença, Itália)
Traduzido e anotado pelo pessoal da Vila Vudu
“Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.”
E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação, em vez de permitir que pensemos nela.”
(Slavoj Zizek, em Occupy Wall Street, [11])
Tudo começou como meditação ampliada sobre o alcance da Guerra Líquida [1].
Não há lugar como a Itália, para assistir-se ao declínio terminal do ocidente em todo seu esplendor e farrapos e purpurina. Arte sublime, arquitetura de nos deixar zonzos, gastronomia impecável e todas aquelas garrafas selecionadas de Brunello – que ajudam, claro. Mas há também a excitação vibrante da história a repetir-se, tudo outra vez – como em versão remix pós-moderna de declínio e queda do Império Romano.
Tive o prazer de ser convidado para o Internazionale Festival 2011 em Ferrara [2] – uma espécie de happening anual gigante de jornalistas de todo o mundo, nessa usina na Emilia Romagna, organizado essencialmente por um pequeno grupo de mulheres valentes e luminosamente dedicadas.
Também muito excitante foi o prazer de passar algumas horas de qualidade inigualável com Rahimullah Yusufzai [3], provavelmente o homem que mais bem conhece as áreas tribais pashtuns, além de tudo sobre o AfPak. Rahimullah é um muitíssimo honrado gentleman pashtun; é como se já tivesse ultrapassado, em muito, a impermanência. Eu, em pouco tempo, já pensava nele como “o Buda de Peshawar”.
O mínimo que tive de fazer, para retribuir pelo menos uma parte das preciosas informações com que me honrou o Buda de Peshawar – de histórias de Osama bin Laden a russos e chineses que, hoje, trabalham ativamente para construir uma solução regional para a tragédia afegã – foi tentar explicar a ele o verdadeiro espírito da Europa do Renascimento.
Vocês sabem o que é – aquele curto período da história, quando a humanidade no ocidente chegou às estrelas (com grande ajuda do conhecimento oriental). Talvez pareça simples, mas não é. Não é fácil explicar Savonarola, o monge fanático – nascido em Ferrara, queimado vivo em Florença – a um pashtun. Decidimos que Savonarola foi uma espécie de cristão salafita.
A coisa ficou mais fácil, porque o Buda de Peshawar estava maravilhado com a melhor culinária da Itália – como um risotto com creme de abóbora e funghi porcini. Até que, num jantar com um grupo de jornalistas italianos espertos, todos concluímos, soturnos, que nossa profissão – correspondentes estrangeiros da velha escola – está definitivamente morta, bem a tempo de pedir outra rodada da vinho, para afogar nossa coletiva mágoa.
O ocidente pode estar descendo pelo ralo, mas, para o Buda de Peshawar, não se vê nem qualquer mínimo sinal, à vista, do fim da história. Depois de ilustrar e iluminar uma plateia constituída predominantemente jovens, sobre as dificuldades no Paquistão, ele ainda teve de encarar o longo voo de volta, que o devolveria aos efeitos retardados da bomba conceitual de fragmentação que se conhece como “guerra ao terror”. Ah, se, pelo menos, aqueles “especialistas” instantâneos e “pensadores” dos think-tanks em Washington o ouvissem falar, em vez de lá ficarem, prostrados atrás do altar blindado no qual cultuam Sua Divindade David Petraeus.
Os pashtuns conhecem uma ou outra coisinha sobre impérios decaídos – e como contribuir para que decaiam. Antes de concluir a primeira viagem de sua vida à Itália, o Buda de Peshawar ainda conseguiu tempo para um rápido giro em Roma. Com meus botões, eu imaginava freneticamente o que Sigmund Freud diria sobre essas camadas romanas de inconsciente, abrindo-se para um nativo de Peshawar, a Roma Oriental. Pelo telefone, pelo menos, a voz dele soava entusiasmadíssima.
Nem tudo que é sólido desmancha no ar [4]
Pouco depois, lá estava eu em Milão, almoçando com meu amigo Claudio Gallo, editor internacional do jornal La Stampa. Mal sabia eu que a conversa, que começara sobre guerra líquida [Liquid War], logo viraria condenação radical da modernidade líquida.
Pouco depois, lá estava eu em Milão, almoçando com meu amigo Claudio Gallo, editor internacional do jornal La Stampa. Mal sabia eu que a conversa, que começara sobre guerra líquida [Liquid War], logo viraria condenação radical da modernidade líquida.
Gallo, intelectual piemontês, com formação filosófica, disparou um míssil Hellfire direto no coração de nossa conversa. Falávamos sobre a atual atmosfera de impotência e irada passividade em todo o mundo atlântico – e o fato de que todas as grandes identidades (políticas, religiosas, culturais) que modelaram a glória da Europa foram esmagadas. Sobrou, só, o que o sociólogo Zygmunt Bauman definiu como “modernidade líquida” [5].
Bem... Não é bem assim, disse Gallo. Essa foi uma “fábula” vendida ao povo, para convencer todos de que a resistência seria sempre inútil: “Na realidade, os centros de poder econômico, a super classe que representa mais ou menos 1% da humanidade, ainda raciocina pelas categorias do sólido e estruturado velho mundo, segundo as quais causa e efeito alternam-se segundo a inexorável mecânica deles. Para as massas, a modernidade líquida é uma realidade, mas que isso seja inevitável não passa de ideologia do poder global”.
Vivemos num mundo que “pensa” em flashes de imagens, não por processos de pensamento: num mundo permeado pela propaganda, que pode ser facilmente conduzido e controlável. E com as elites, disse Gallo, aplicando sempre a mesma velha (e sólida) lógica maquiavélica, esse mundo está se convertendo rapidamente em paisagem ideal para uma ditadura global. E “é curioso que, querendo ou não querendo, nossa sociedade parece estar forjando o escravo perfeito”.
Andei com essa impressionante imagem de um sólido e inamovível poder pelas ruas elegantes da Brera de Milão à Piazza della Signoria em Florença – a alma mater do Renascimento. A Piazza della Signoria – onde nosso monge salafita foi queimado vivo no final do século 15 – abriga hoje também um museu Gucci, ode perdulária à cultura do consumo desenfreado, inextricavelmente ligada ao turbocapitalismo.
Ali perto, no Pallazzo Strozzi, eu tinha uma visita marcada a “Money and Beauty: Bankers, Botticelli and the Bonfire of the Vanities” [Dinheiro e Beleza: Botticelli e a Fogueira das Vaidades] [6], extraordinária exposição que explica como o sistema moderno de bancos desenvolveu-se paralelamente ao Renascimento, e como a alta finança, a economia e a arte obraram juntas (assunto para outro artigo). Saí da exposição ainda mais obcecado com uma pergunta: e se as sólidas elites contemporâneas ensandecidas de húbris – começassem de repente a ser afogadas pelos dejetos líquidos da modernidade líquida? E sem Botticelli para denunciar essa nova Fogueira das Vaidades – só filmes carregados em YouTube?
Encontrei em Occupy Wall Street a resposta que me faltava.
É 1968, tudo de novo
A Itália – em sua complexidade Marca Registrada esteticamente agradável – absorve tanto, que é fácil esquecer o resto do mundo. Ora, o New York Times não estava na Itália e, portanto, não tem desculpa por ter ignorado Occupy Wall Street – que acontecia ali, em sua cidade natal, há dias. Hoje, todo o mundo já assiste ao movimento, e Occupy Wall Street vai-se convertendo rapidamente em movimento nacional nos EUA.
Os que representam 99% da população dos EUA – dejetos líquidos, pacíficos, não agressivos, da modernidade líquida – estão furiosos, muito furiosos, furiosos como o diabo, e cansaram e decidiram que agora basta; nessas condições, é bem possível que as elites sólidas não façam sequer uma mínima ideia do que está acontecendo.
Mas que ninguém se engane [7]: as elites sólidas estão com medo, morrendo de medo, o medo devora-lhes as tripas. O medo é visível no modo como políticos e seus comparsas empresários na grande imprensa-empresa tentam desqualificar o movimento: “estagnado”, um bando de “idiotas” ou, pior ainda, de “criminosos”.
Os rostos são esses [8]. Têm cara de “criminosos”?
Os rostos são esses [8]. Têm cara de “criminosos”?
Em entrevista à rede RT [9], Immanuel Wallerstein, especialista em sistema-mundo disse que “estamos vivendo o despertar de 1968, pela primeira vez, por toda parte” [10]. Sim, Occupy Wall Street é neto de maio de 1968: “ser realista: exigir o impossível”.
Por tudo isso, não surpreende que não outro filósofo, mas o Elvis da filosofia, o mestre Slavoj Zizek, filho intelectual de maio de 1968, tenha aparecido na rua, na Praça Tahrir de New York, domingo passado, para declarar a (nova) lei. No almoço, Gallo e eu também falamos de Zizek: comentamos que é dos raríssimos intelectuais públicos que ainda nos faz rir, além de pensar. Zizek disse [11]:
“Não somos comunistas, se comunismo significar o sistema que entrou em colapso em 1990. Não esqueçam que, hoje, os comunistas são os capitalistas mais eficientes, mais cruéis. Há capitalismo na China, hoje, e é muito mais dinâmico que o capitalismo dos EUA de vocês, mas não exige democracia, o que significa que, se vocês criticarem o capitalismo, não se deixem apanhar na chantagem de que estariam contra a democracia. O casamento entre democracia e capitalismo chegou ao fim.”
Complementando esse míssil Hellfire conceitual, Zizek acrescentou:
“o único sentido no qual somos comunistas, é que nos interessam os comuns. Os comuns da natureza, os comuns do que foi privatizado pela propriedade intelectual, os comuns da biogenética. Temos de lutar por isso e só por isso. O comunismo fracassou absolutamente. Mas todos os problemas dos comuns permanecem conosco.
Dirão que somos “não americanos”. Mas os fundamentalistas conservadores que dizem que os Estados Unidos são nação cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo. Wall Street são pagãos que adoram falsos ídolos. Só precisamos ter paciência.”
Que tal essa, para realistas que exigem o impossível, para os rejeitos da modernidade líquida que expõem as mentiras e crimes das elites sólidas? Não pude deixar de me sentir emocionado por essa conexão Florença-New York: o nascimento – quem sabe? – de um novo humanismo? As sementes de nosso neo-Renascimento?
Contra todas as possibilidades, daquele seu jeito gloriosamente descentralizado, Occupy Wall Street, no mínimo, parece estar oferecendo um mapa do caminho para Fight the Power [“Contra o Poder”, do “rapeiro” Public Enemy, 1989 [12]].
Tenho certeza de que o Buda de Peshawar aprovaria – porque isso também implica lutar contra as guerras do Poder. Como diz Zizek, “sabemos que muitas vezes desejaremos algo, sem realmente querer aquilo. Não tenham medo de realmente querer o que vocês desejam”.
Autodesignados Mestres do Universo, temei. Temei muito.
Notas dos tradutores
[1] “Liquid War(s)” é um jogo de computador, de fonte aberta. Pepe Escobar já usou a mesma metáfora no título de seu livro de Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War [O Globalistão: Como o mundo globalizado está se dissolvendo em guerra líquida] (Nimble Books, 2007) e em “Liquid war: Welcome to Pipelineistan” [Guerra Líquida: bem-vindo ao oleodutostão], 26/3/2009.
[2] Sobre o evento, assista: Internazionale a Ferrara: gli organizzatori . Não há notícia sobre esse importante encontro mundial de jornalistas, em NENHUM jornal brasileiro. Pode-se apostar que NENHUM jornalista brasileiro foi convidado para aquele encontro. O jornalismo brasileiro é o pior do mundo. NADA, no mundo, é pior que o jornalismo, os jornais e os jornalistas brasileiros. O jornalismo, os jornais e os jornalistas brasileiros são a neosaúva: ou o Brasil acaba com os jornais, o jornalismo e os jornalistas brasileiros, ou os jornais, o jornalismo e os jornalistas brasileiros acabam com o Brasil.
[3] Jornalista paquistanês, 57 anos, escreve em The News, Paquistão. Robert Fisk o entrevistou, em 23/3/2010, para o The Independent. A entrevista pode ser lida em: Rahimullah Tusufzai: “The Taliban respect me. I was the first journalist to visit Them” (em inglês).
[4] Do Manifesto Comunista [1848] : “Tudo que é sólido desmancha no ar” ; aparece também no título de BERMAN, Marshall [1982], Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, SP: Companhia das Letras, 1998.
[5] BAUMAN, Zygmunt, Modernidade Líquida [2000], RJ, Zahar Editores, 2001, trad. Plínio Dentzien. Pode ser lido, mas não copiado, (em português).
[6] Sobre a exposição, ver em: Money and Beauty. Bankers, Botticelli and the Bonfire of the Vanities.
[7] Orig. Make no mistake. É expressão muito frequente nos discursos do presidente Obama. “Estatísticas compiladas pelo Global Language Monitor mostram que, desde que assumiu a presidência, há mais de dois anos, Obama já repetiu 2.924 vezes a expressão “que ninguém se engane” [orig. make no mistake]. Ver sobre isso, interessante,Global Language Monitor, 11/10/2011, (em inglês).
[9] RT [Russia Today] é rede global multilíngue de televisão, com sede na Rússia. Para a revista Slate, seria “resposta da Rússia ao canal Fox News e à rede MSNBC” 27/6/2011.
[11] Há uma versão transcrita do discurso, já traduzida para o português, na íntegra . Pequenas diferenças de tradução explicam-se porque, nesse artigo, Pepe Escobar cita o discurso que estava ouvindo, não a versão escrita que Boitempo Editorial recebeu do autor.
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