Publicado em 19/04/2012 por *UrarianoMotta
Recife
(PE)
- Em minhas – na falta de melhor nome – aulas, a primeira coisa que aprendi foi
não falar de literatura como um produto que sai dos livros. Deixe-se isso para
os professores de cursinhos, que pensam ensinar enquanto põem o estudante a
decorar nomes, datas, movimentos e obras principais. Isso não é literatura, não
serve à literatura, nem serve ao conhecimento. Serve a um sistema estéril e
formador de burros. Não se deve jamais falar de literatura com esse nome cheio
de pompa e reverência, A Literatura. Fale-se da vida, dos problemas vividos por
todos nós, velhos, jovens, crianças, homens, mulheres, animais e
gente.
Só
se deve falar sobre aquilo que apaixona a gente. Se o professor não descobriu a
lírica de Camões, se não maturou no peito Manuel Bandeira, se não é capaz de
curtir Machado de Assis, se não se emociona até as lágrimas com Lima Barreto,
mantenha distância desses criadores. O silêncio sobre eles fará um dano menor
que a citação burocrática. Melhor para o mestre seria cantar Roberto Carlos,
equilibrar mesas na ponta do nariz, imitar cornetas com um pente sobre a boca,
fazer graça com arrotos cavalares. Seria mais
pedagógico.
Um
autor deve ser apresentado a partir de um problema. Nada como o conto Missa
do Galo, de Machado, para todos os adolescentes. Eles entenderão até
a última linha, vírgula e pontinho das reticências. Eles vão respirar todos os
movimentos implícitos e insinuados da conversa da mulher solitária com um jovem.
Eles são esse jovem. Eles sonham com essa noite ideal em que os espere uma
senhora sozinha. Elas compreendem esse jovem e essa mulher. O conto tem todos os
elementos de promessa de sexo e conflito com o pecado antes de uma missa
devota.
Os
contos, quando lidos, devem ser muito bem lidos. Com pausas, entonações, vozes,
risos, pulos – o que o diabo achar necessário - como um ator de rádio. Isso quer
dizer que o professor comanda a narração, faz uma leitura prévia, e pede para
que ela continue em volta. Digo que começa com o professor porque nas escolas se
perdeu o necessário e fundamental hábito de leitura em voz alta. Então é comum que
um jovem estudante não saiba o valor de um ponto, de uma exclamação, de uma
vírgula, de uma pausa – o valor ponderado de uma palavra em determinado contexto.
Como poderão entender a maravilha de Manuel Bandeira, na
infância com o coração a bater, se não souberem que a moça nua lhe fez o
primeiro... ALUMBRAMENTO?
Mas
entendam, a dramatização dos textos nada tem de dramático. Quero dizer, nada é
artifício, artificioso, operístico, melodramático, falso. Ou se fala do que se
conhece e do que se vive ou não se fala. Ponto. Deve-se falar do amor, sempre. E
nisso não vai nenhum romantismo. Deve-se falar do amor, sempre, porque toda obra
é a sua busca ou a sua negação, a sua falta ou plenitude.
Apesar
de até aqui ter falado de minha própria experiência, devo terminar com duas
coisas ainda mais pessoais.
Primeira.
Não consigo, até hoje, falar de Andersen com isenção e distância, quando me
refiro ao conto A
pequena vendedora de fósforos. Aquela trajetória da pequena menina
que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom, nas ruas geladas de uma
cidade, que vislumbra pelo vidro embaciado das janelas a ceia posta nas casas
burguesas e com profunda fome fica encantada... E me fere mais, e aí não consigo
ir adiante, quando Andersen realiza aquela imagem extraordinária: enregelada,
morta, a pequena vendedora sobe “em
um halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe... longe da
Terra, para um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem
dor, nem medo”.
Segunda.
Certa vez, li para alunos com idades em torno de 11 anos o meu conto
Daniel. Claro, expurguei os termos mais chulos, grosseiros. Quando eu
li:
“...Da
turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protestos, ele crescera pelos
lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo destacavam-se
sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de inflexão, ficando
a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como asas dum pássaro,
movendo-se no espaço da fronte”,
na
sala não se ouvia uma só riso, apenas respirações ofegantes. Então eu ia para o
quadro e desenhava as sobrancelhas, à Monteiro Lobato, para eles verem. Depois,
já ao fim, quando acrescentava que Daniel raspara aqui e ali o seu estigma, e
que
“a cirurgia dera nascimento a dois pontos de interrogação deitados, quase dois
acentos circunflexos incompletos, sem acomodação”, voltava ao quadro
para desenhar os dois pequenos ganchos que ficaram no lugar das sobrancelhas do
personagem.
O
melhor digo agora no fim.
Vocês
não vão acreditar no lirismo de que é capaz a infância. Os meninos rebatizaram o
conto. Em lugar de
Daniel ,
eles me pediam sempre para ouvir, de novo, O
menino-passarinho.
*Urariano
Motta
é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento,
Opinião ,
Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é
colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As
revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos.
Autor de Soledad
no Recife (Boitempo,
2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em
1973, e Os
corações futuristas (Recife,
Bagaço, 1997).
Enviado
por Direto
da Redação
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