terça-feira, 3 de abril de 2012

Marx, 193*


31/3/2012, John Lanchester, London Review of Books, vol. 34, n. 7 (ed. 5/4/2012), pp. 7-10 Marx at 193
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


John Lanchester
Se se quer pensar sobre o que Marx teria feito do mundo de hoje, deve-se começar por lembrar que Marx não foi empirista. Nunca foi dos que creem que se possa chegar à verdade usando fulgurantes fragmentos da experiência, ‘dados de pesquisa’, como os chamam os cientistas, reunindo-os num retrato-colagem da realidade. Posto que isso é o que muitos de nós fazemos quase todo tempo, aí está uma diferença fundamental entre Marx e o que chamamos de senso comum, noção que Marx detestava, porque via o senso comum como o modo como uma específica ordem política e de classe converte a sua realidade construída, em conjunto aparentemente neutro de ideias que são apresentadas como dados da ordem natural. O empirismo, porque recolhe as suas provas da ordem existente de coisas, é inerentemente dado a aceitar como realidades, coisas que não passam de prova dos vieses e das pressões ideológicas subjacentes.

Para Marx, o empirismo sempre confirmará o status quo. Teria portanto detestado muito especialmente a moderna tendência de argumentar a partir de ‘fatos’, como se ‘fatos’ fossem porções neutras da realidade, livres das marcas d’água da história, das interpretações, dos vieses ideológicos e das circunstâncias do modo como foram produzidas.

Eu, por outro lado, sou empirista. Nem tanto porque creia que Marx erre sobre os efeitos de distorção das pressões ideológicas subjacentes; mas porque não me parece possível encontrar ponto de vista livre daquelas pressões. Então, passa a ser dever de cada um fazer o melhor possível do que consiga ver, e, sobretudo, nunca fingir que não vê os dados mais desconfortáveis e/ou contraditórios. Mas essa é uma profunda diferença entre Marx e meu modo de falar sobre Marx, que Marx consideraria filosoficamente e politicamente completamente inválido.

Considerem-se essas passagens do Manifesto Comunista, que Marx escreveu com Engels em 1848, depois de ser expulso da França e da Alemanha por seus escritos políticos:

O capitalismo submeteu o campo ao domínio da cidade. Criou cidades enormes.

O capitalismo [...] não deixou que restasse nenhum outro nexo entre homem e homem além de um cru interesse individual, de um invisível pagamento à vista”.

O capitalismo foi o primeiro a mostrar o que pode conseguir a atividade humana. Conseguiu maravilhas que ultrapassam em muito as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas, conduziu expedições que deixam à sombra todos os anteriores êxodos de nações e cruzados. O capitalismo criou forças produtivas mais massivas e colossais que todas as gerações anteriores juntas.

O capitalismo não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e, portanto, os meios de produção e com eles todas as relações da sociedade. Revolução ininterrupta da produção, perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, incerteza perene e perene agitação distinguem a época capitalista de todas as anteriores. Todas as antigas indústrias nacionais preexistentes foram destruídas e são diariamente destruídas. Em lugar das velhas necessidades, satisfeitas pela produção do campo, descobrimos novas necessidades, que exigem, para serem satisfeitas, produtos de terras e climas distantes.

Crises comerciais põem em risco, cada vez mais ameaçadoramente, a existência de toda a sociedade capitalista. Nessas crises, grande parte não só dos produtos existentes, mas também das forças produtivas previamente criadas, são periodicamente destruídas.

Difícil não concluir desses fragmentos selecionados que Marx foi extraordinariamente presciente. Realmente, teve o mais espantosamente acurado insight da natureza e trajetória e direção do capitalismo. Três aspectos que se destacam aqui são o tributo que Marx paga à capacidade produtiva do capitalismo, que excede muito a de qualquer outro sistema político-econômico jamais conhecido; a reconstituição da ordem social que acompanha aquela capacidade produtiva; e a tendência inerente do capitalismo às crises, a ciclos de crescimento e quebradeira.

Mas, nesse ponto, tenho de confessar que não reproduzi as frases exatamente como Marx as escreveu: onde escrevi “capitalismo”, Marx escreveu “a burguesia”. Estava falando sobre uma classe e o sistema que serviu ao interesse dela, e fiz parecer que estivesse falando só sobre um sistema. Marx não usa a palavra “capitalismo”. A palavra jamais aparece na primeira parte de Das Kapital. (Confirmei isso com um comando “localizar palavra” e encontrei três ocorrências, nos três casos erro de tradução ou uso impreciso do plural (al. Kapitals – em alemão, Marx jamais fala de algum Kapitalismus).

Dado que Marx é amplamente e muito justamente considerado o maior crítico do capitalismo, aí está uma omissão que dá o que pensar. Seus termos preferidos foram “economia política” e “economia política burguesa”, os quais, para ele, englobavam tudo, de copyrighs à ideia contemporânea de direitos humanos e até o próprio conceito de indivíduo autônomo independente.

Minha opinião é que Marx não usou a palavra “capitalismo”, porque essa palavra implicaria que o capitalismo seria um dentre vários sistemas concorrentes possíveis – e Marx não acreditava nisso. Ele não achava que fosse possível ultrapassar o capitalismo, sem uma virada radical da ordem social, política e filosófica existente.

Nisso, acertou: nenhum sistema alternativo prosperou, e a Economia, como disciplina acadêmica, passou a ser estudo do capitalismo. “Economia” e “Capitalismo” são tratados como um mesmo objeto. Se algo existisse que se pudesse considerar como desafio teórico sério e sustentável à hegemonia do capitalismo dentro da Economia, depois do que se chamou “socialismos realmente existentes” – normal seria que tivesse aparecido à tona depois do derretimento quase terminal do sistema econômico global em 2008. E só apareceram sugestões de pequenas intervenções apenas cosméticas, paliativas, para melhorar um pouco o sistema existente, na direção de torná-lo um pouco menos imprevisível e perigoso. O que há atualmente é esse híbrido monstruoso, “capitalismo de estado” – expressão muito usada pelo Socialist Workers Party britânico para descrever a União Soviética, e que, há poucas semanas lá estava também, na capa da revista Economist, aplicada às atuais condições econômicas da maior parte do mundo. Trata-se aí de uma paródia de ordem econômica, na qual o que é público em geral padece todos os riscos e perigos; e o setor financeiro leva todas as recompensas – forma extraordinariamente pura do que costumava ser chamado de “socialismo para os ricos”. Mas “socialismo para os ricos” sempre foi expressão usada exclusivamente como piada. A verdade é que, hoje, o modo como realmente opera a economia global é, sim, um socialismo para os ricos.

O sistema financeiro, do jeito que está hoje, é ameaça existencial à democracia ocidental, muitíssimo mais preocupante que qualquer ameaça terrorista. Até hoje, nenhuma democracia jamais se implantou por ação de terroristas, mas se as caixas de autoatendimento dos bancos pararem de repente de cuspir dinheiro será evento de tal magnitude que os Estados atualmente organizados como democracias entrarão em risco de colapso. Apesar disso, os governos agem como se pouco pudessem fazer para evitar o cataclismo. Governos têm poder para nos prender em solitárias e para nos mandar para a guerra, mas não têm poder para tocar em nenhum dos fundamentos da ordem econômica. Portanto, o cuidado que Marx tomou, ao omitir a palavra “capitalismo”, porque antevia que não havia alternativa dentro da atual ordem social, pode ser apresentado como caso em que sua bola de cristal mostrou-lhe imagens de super, super, mega alta definição.

Marx dá extrema atenção à questão do valor (de onde vem?), de como se trocam mercadorias, o que é o dinheiro? É pergunta muito simples, mas, antes de Marx, a ninguém ocorrera perguntar tão claramente; e é o tipo de questão que já não se propõe em nível profissional ou institucional, porque a atual ordem de coisas é considerada absolutamente garantida. Mas é pergunta básica e importante, melhor dizendo, são duas perguntas: o que é o dinheiro? e de onde vem o valor do dinheiro?

Há muitas centenas de páginas sobre o assunto em Marx e muitas dezenas de milhares de páginas em comentários e análises do seu trabalho, motivo pelo qual esse resumo pode ser caricatamente simples e resumido. O modelo de Marx funciona assim: as pressões da concorrência sempre forçarão para baixo o custo do trabalho; os empregados por isso sempre recebem o menor salário possível, sempre o mínimo necessário para mantê-los trabalhando, e nada mais. O empregador então vende a mercadoria não pelo que custa produzir, mas pelo melhor preço que consiga: preço que, por sua vez é submetido às pressões da concorrência e por isso, com o tempo, tende sempre a diminuir. Mas, enquanto tudo isso acontece, há uma diferença entre o quanto o trabalhador recebe por seu trabalho e o preço que o empregador obtém pela mercadoria, e essa diferença é o dinheiro que o empregador acumula e que Marx chamou de “mais-valia”, ou “sobrevalor”.

Para Marx, todo o capitalismo repousa sobre a mais-valia: no capitalismo, valor é aquele “a mais” criado pelo trabalho. É o que faz aumentar o custo da coisa. Nas palavras de Marx, “preço é o nome em dinheiro [ing. money-name] do trabalho objetivado numa mercadoria”. E examinando essa questão, Marx criou um modelo que nos permite examinar a estrutura profunda do mundo e ver o trabalho que existe escondido em todos os objetos que nos cercam: tornou possível para nós ler o trabalho nos objetos e nos relacionamentos.

A teoria da mais-valia também explica, para Marx, por que o capitalismo tem a tendência inerente de andar na direção de crises.

O empregador, como o empregado, sofre pressões de concorrência, e o preço de tudo que vende sempre será empurrado para baixo por novos concorrentes que chegam ao mercado. O modo que o empregador quase sempre escolhe para escapar dessas pressões é usar máquinas para tornar os trabalhadores mais produtivos; tentará extrair mais dos trabalhadores, empregando número sempre menor de trabalhadores que terão de produzir mais. Mas ao tentar aumentar a eficiência da produção, pode acontecer de ele destruir o valor, muitas vezes porque produz excesso de bens sem obter lucro suficiente, o que leva a um excesso de bens que têm de competir entre eles, o que leva os mercados a quebrar, o que leva à destruição de capital, o que leva ao início de outro ciclo.

Um dos traços mais elegantes do pensamento de Marx é que a teoria do valor da mais-valia leva direta e explicitamente à previsão de que o capitalismo sempre terá ciclos de crise – crescimento e quebradeira.

Há óbvias dificuldades com os argumentos de Marx. Uma delas é que tantos bens e mercadorias do mundo contemporâneo são agora virtuais (no sentido de digitais computacionais) que não é fácil ver onde está o trabalho acumulado. As aulas de David Harvey sobre O Capital, por exemplo, a melhor iniciação para qualquer um que esteja estudando o mais importante livro de Marx, são de valor imenso, mas também são encontráveis, gratuitas, na internet, e assim, se você comprar aquelas aulas em formato de livro impresso – recolhem-se informações muito mais depressa lendo, que ouvindo – a mais-valia que você estará acrescentando às aulas é, sobretudo, sua.

A ideia de o trabalho estar escondido nas coisas e de o valor das coisas advir do trabalho congelado nelas é ferramenta explicativa inesperadamente poderosa, no mundo digital. Considere-se a [empresa] Facebook. Parte de seu sucesso vem do fato de que as pessoas sentem que elas e seus filhos estão seguros gastando tempo ali, que é lugar ao qual se vai para interagir com outras pessoas, mas não é fundamentalmente perigoso, do mesmo modo que novas tecnologias são consideradas perigosas – como se considerava perigoso, por exemplo, o VHS, quando foi lançado no mercado. Mas a percepção de que o ambiente Facebook é, talvez a melhor palavra seja “higienizado”, é sustentada por dezenas de milhares de horas de trabalho mal pago de trabalhadores do mundo em desenvolvimento que trabalham para companhias contratadas para localizar e excluir imagens ofensivas os quais, segundo um marroquino que reclamou publicamente da exploração, recebem 1 dólar por hora de trabalho de rastreamento das tais imagens ofensivas. É exemplo perfeito de mais-valia: quantidades imensas de trabalho mal pago, criando a imagem higiênica de uma empresa que, quando se lançar na Bolsa de Valores espera estar valendo $100 bilhões.

Quando se começa a procurar esse mecanismo em operação no mundo contemporâneo, encontramo-lo por todos os lados, quase sempre sob a forma de mais-valia que eu, você, nós – o cliente de uma empresa, o consumidor – criamos. O check-in online e o despacho de bagagens nos aeroportos, por exemplo. O check-in online é processo que genuinamente aumenta a eficiência da experiência aeroporto e, assim, nos custa menos tempo: tempo que você pode gastar fazendo outras coisas, algumas delas economicamente úteis para você. Mas o que as empresas aéreas fazem é empregar tão pouca gente para supervisionar o despacho da bagagem, que não sobra tempo algum para ser economizado pelo consumidor. Se se olha, vê-se que, porque as empresas aéreas têm de empregar mais gente para supervisionar os clientes que não fizeram o check-in online – ou nenhum avião decolaria no horário previsto – as filas dos que não fizeram o check-in online andam muito mais depressa, o que serve de propaganda para o check-in online. As empresas aéreas estão transferindo a própria ineficiência para o cliente, mas o que também estão fazendo é transferir o trabalho para você, enquanto vão acumulando, elas mesmas, o valor da mais-valia. Acontece cada dia mais frequentemente. Cada dia que você enfrenta um menu de telefone ou um serviço interativo de voice-mail, você está doando seu valor de mais-valia às pessoas com as quais negocia. O modelo de Marx nos convoca constantemente a ver o trabalho codificado nas coisas e nas transações à nossa volta.

Ano passado, o canal National Geographic exibiu matéria sobre como seria “o mais típico ser humano do mundo”, para comemorar o nascimento da sétima - bilionésima pessoa nascida no planeta. O único traço que se podia assegurar que seria encontrado nessa pessoa é que seria destra. (De fato, embora seja indiscutivelmente certo que o mais típico ser humano do mundo é destro, é interessante, porque a média de pessoas canhotas aproxima-se de 10%, mas parece ser mais alta em sociedades onde se observa nível mais alto de violência. Ninguém sabe por que, mas não surpreende, porque não se conhece a razão pela qual alguém nasce canhoto).

Que “o mais típico ser humano do mundo” seja homem, é desenvolvimento relativamente recente. Nascem mais meninos que meninas, na proporção de 103-106/100, porque morrem mais meninos na infância, que meninas, e, para equilibrar a proporção de gêneros da espécie, é preciso que haja mais bebês do sexo masculino. Mas a moderna medicina, em muitas partes do mundo, já fez retroceder muito acentuadamente a mortalidade infantil e, agora, a diferença de nascimentos está sendo alimentada também por outras distribuições demográficas, graças às quais historicamente tem havido mais mulheres que homens, porque as mulheres vivem mais, também nesse caso por razões que permanecem inexplicadas.

Além disso, e tendência muito, muito, muito mais sombria, a crescente prosperidade e as habilidades tecnológicas levaram a enormes disparidades na taxa de nascimentos – que só pode ter a ver com o aborto seletivo de crianças do sexo feminino.

A proporção entre os sexos, principalmente em muitas partes da Ásia, já ultrapassou, de longe, quaisquer possíveis padrões biológicos. Na China e na Índia, dados censitários indicam que o nível nacional aproxima-se de 120/100. Em 2020, a China terá entre 30 e 40 milhões de homens a mais que mulheres, com menos de 19 anos. Para criar horizonte comparativo, 40 milhões é o número total de norte-americanos do sexo masculino na mesma faixa etária. Assim sendo, dentro de oito anos, a China estará na situação de ter o equivalente a toda a população de homens jovens dos EUA, que serão solteiros estruturais, se se pode dizer tal coisa. Um dos aspectos mais sombrios disso tudo é que
“a escolha preferencial pelo filho”, como se lê nos termos frios da literatura especializada, aumenta conforme aumenta a renda e a modernização avança – o que implica dizer que, na China, está aumentando muito rapidamente. Haverá falta de muitas dezenas de milhões de moças.

O tal, então, é homem. Ganha menos de £8000 anuais. Tem telefone celular, mas não tem conta em banco. Faz sentido, pelo modelo de Marx de como o capitalismo chegaria ao ponto de não conseguir pagar as contas: o tal “homem típico” não tem conta bancária, porque o trabalhador típico é proletário que nada tem para depositar em banco; não tem capital; tem de vender a própria força de trabalho pelo melhor preço que consiga. Tem 28 anos – essa é a idade média da população mundial, o sujeito médio. E se você entende que a pessoa mais típica do mundo pertence ao grupo étnico mais numeroso, já entendeu também que ele é chinês han. Assim sendo, o ser humano representativo em 2012 é chinês han de 28 anos de idade, sem conta em banco, mas com celular, que ganha menos de 12 mil dólares anuais. Adivinhe quantos seres humanos satisfazem exatamente esse critério hoje? Nove milhões. E pode-se apostar que seu sobrenome é Li, o sobrenome mais abundante no mundo hoje. Há tanta gente com sobrenome Li no mundo, quanto as populações de Grã-Bretanha e França somadas.

Parece-me que Marx não veria, nesse quadro, nada que desmentisse seu modelo (Marx detestava a palavra “modelo”).

Marx previu que se desenvolveriam um proletariado que sempre fez a maior parte do trabalho do mundo e uma burguesia que sempre seria, de fato, a proprietária dos frutos do trabalho dos proletários. O fato de que os proletários estejam no mundo em desenvolvimento, longe das vistas da burguesia ocidental, em nada compromete o quadro acima – há quem fale de “proletariado externo”. Tomemos, para estudo de caso, a mais valiosa empresa do mundo, que, nesse momento, é a Apple.

O último trimestre da Apple foi o mais lucrativo de toda a história de todas as empresas em todos os tempos: obteve $13 bilhões em lucros sobre $46 bilhões em vendas. Seus produtos bons-de-venda são produzidos em fábricas cuja proprietária é a empresa chinesa Foxconn. (A Foxconn fabrica o Kindle da Amazon, o Xbox da Microsoft, o PS3 da Sony e centenas de outros produtos que compramos com nomes de outras empresas na embalagem e no produto – não é exagero dizer que a Foxconn fabrica todos os aparelhos eletrônicos do mundo).

O salário inicial na Foxconn é $2/hora; os empregados vivem em dormitórios de 6/8 camas por quarto, pagando por isso aluguel de $16/mês; a fábrica em Chengdu, que fabrica os iPads, trabalha 24 horas/dia, emprega 120 mil trabalhadores – imagine: uma fábrica onde trabalha toda a população de Exeter – e não é, sequer, a maior fábrica da Foxconn. A maior é a de Shenzhen, com 230 mil trabalhadores, que trabalham 12 horas/dia, seis dias por semana. Em resposta a um recente escândalo sobre número de suicídios, a empresa disse que o número de suicídios entre empregados da Foxconn é hoje inferior à média chinesa; e que, diariamente, a Foxconn rejeita milhares de candidatos a um emprego, duas informações rigorosamente corretas e verdadeiras. Aí está o mais chocante de tudo. Essa empresa oferece condições equivalentes ou melhores que muitas empresas de manufatura que oferecem empregos na China, onde são produzidos muitos bens consumidos em todo o mundo e onde a vida, na opinião dos trabalhadores chineses, é preferível, se a alternativa for a vida rural. E, tudo isso, por uma ironia que não encontra palavra que a manifeste, no maior e mais poderoso Estado nocionalmente comunista.

Não creio que se possa dizer que haja aí condições de trabalho iguais às do século 19, mas chegam bem perto do que Marx previu que seria um proletariado alienado, cuja trabalho lhe é saqueado e convertido em lucros de outras pessoas. Pode-se facilmente supor que nosso Sr. Li, o homem típico da humanidade em 2012, de 28 anos e destro, trabalha numa dessas fábricas da Foxconn.

Os desafios à correção do que Marx escreveu sobre onde estaríamos hoje aparecem quando se examinam as coisas mais de perto. Se se olha o grande quadro do mundo, sim, muito do que Marx previu já aconteceu. Há uma burguesia afluente e internacional, mas que, no Ocidente, é a maioria da população; e há uma força de tralha lho proletária que vive, sobretudo, na Ásia. Acrescente a isso a regularidade das crises econômicas, a crescente concentração de riqueza entre os que já são ricos e as crescentes pressões sobre a burguesia internacional visíveis em todos os cantos – a “austeridade” sobre a qual tanto se lê. Há a ideia generalizada de que já não há paraísos seguros, que não há como escapar da mudança econômica, que o capitalismo anda depressa demais e que os humanos não conseguem acompanhá-lo. Se você é funileiro e, para arranjar trabalho, tem de conseguir diploma de engenheiro de computação, para o que você tem de voltar a estudar quando já chegou à metade de sua vida produtiva, não é fácil. Pois são mudanças dessa escala que vêm implícitas nas mudanças dos modernos mercados de trabalho. Isso, precisamente, foi o que Marx quis dizer quando anteviu um mundo no qual “tudo que é sólido desmancha-se no ar”. Não é difícil, portanto, convencer-se de que as previsões de Marx foram acertadas num determinado nível de impressionismo em grandes pinceladas.

O erro mais óbvio na versão do mundo que Marx nos legou tem a ver com a classe. Há alguma coisa semelhante a um proletariado marxiano clássico disperso pelo mundo. Mas Marx previu que esse proletariado seria força cada vez mais centralizada e organizada: por isso, aliás, precisamente, o proletariado se mostraria tão perigoso para a sobrevivência do capitalismo. Criando as condições pelas quais o trabalho com certeza se organizaria e se reuniria em coletivos, o capitalismo estaria cavando a própria cova. Mas não há conflito global organizado entre as classes: não há proletariado global organizado. Nada há que seja, sequer, semelhante. O proletariado faz fila para arranjar trabalho na Foxconn, não para organizar greves ali, e o maior perigo que ameaça a China, que é onde, em certo sentido, vive o proletariado do mundo, é a desigualdade causada por fraturas entre o novo proletariado urbano e a miséria que deixam para trás, no campo. A China também enfrenta tensões entre o litoral e o centro, e problemas cada dia maiores de corrupção e mau governo que irrompem regularmente, conhecidos como Incidentes de Grupo em Massa IGM [ing. Mass Group Incidents, MGI] – basicamente, protestos antiautoridade que ocorrem regularmente por toda a China e só raramente são notícia na imprensa ocidental. Mas esses fenômenos nada têm a ver com classe e, considerada a ênfase que Marx dá à luta de classes organizadas, pode-se arquivar essa na gaveta das previsões que não se confirmaram.

E por que não? Creio que por duas razões principais. A primeira é que Marx não anteviu, como afinal ninguém anteviu e não me parece que alguém pudesse ter antevisto, a variedade de formas que o capitalismo viria a assumir. Fala-se do capitalismo como uma coisa, mas ele surge em vários diferentes sabores, envolvendo diferentes modelos. O estado de bem-estar contemporâneo – moradia, educação, comida e atenção à saúde para os cidadãos, do nascimento à morte – é desenvolvimento que obriga a questionar as bases da análise que Marx oferece do que seja o capitalismo.

Minha opinião é que Marx teria olhado nos olhos o estado de bem-estar, e lhe passaria pela cabeça a suspeita de que, sim, sua análise poderia estar sendo abalada nos fundamentos, exatamente porque o estado de bem-estar é muito diferente do capitalismo que Marx conheceu diretamente em seus dias, e a partir do qual extrapolou. Talvez argumentasse que aconteceu apenas que a sociedade britânica, toda ela, tornou-se parte de uma burguesia global, e que o proletariado vive agora em outros países. É argumento possível, mas difícil de defender, se se consideram as desigualdades que existem e crescem também na sociedade britânica. Mas o capitalismo escandinavo de bem-estar é muito diferente do capitalismo controlado pelo Estado que há na China, o qual, por sua vez, é quase completamente diferente do capitalismo de livre mercado & salve-se quem puder que há nos EUA, o qual é outra vez diferente do capitalismo nacionalista e pesadamente socializado que há na França, o qual difere, por sua vez do híbrido estranho que temos na Grã-Bretanha , no qual nossos governos são dedicados devotos do livre mercado e, mesmo assim, há áreas de bem-estar e assistência aos quais os governos não se atreveram a dar atenção. Cingapura é dos países de mercado mais confessadamente livres do mundo, que aparece sempre na cabeça ou perto da cabeça das listas de mercados pesquisados e definidos como liberalizados e, mesmo assim, o Estado é o maior proprietário de terras do país e uma vasta maioria da população é atendida por um sistema socializado de moradias. É a capital mundial dos livres mercados e das reuniões de condôminos. Há muitos diferentes capitalismos e não há garantia alguma de que uma análise que os tome em conjunto, como se se tratasse de um único fenômeno, continue válida.

Um dos modos de observar isso é observar a variedade e a complexidade dos nossos interesses nesse sistema.

Em fevereiro, todos os trabalhadores da Foxconn receberam aumento de 25% do salário básico, de repente, de um dia para o outro. Não foi efeito de um surto de organização e protesto da força de trabalho: foi efeito de um artigo sobre as condições de trabalho lá, publicado no New York Times. Pressões éticas, recebidas do Ocidente, são das forças mais potentes, capazes de introduzir melhorias nas condições de trabalho na fábrica em Shenzhen. (...)

Aí está algo que Marx não previu e tem a ver com algo que não poderia ter sido previsto: a diversidade de interesses e papéis, no capitalismo contemporâneo. Marx falou sobre pessoas, de fato, sobre as classes, como distribuídas em trabalhadores e proprietários dos meios de produção, e deixou algum espaço de manobra, porque disse que somos “portadores” desses papéis, diferentes aspectos dos quais podem estar em jogo em diferentes momentos, do que resulta que um proletário pode descobrir-se em competição com outros proletários mesmo que seus interesses de classe estejam alinhados. Mas fato é que, no mundo contemporâneo, somos seres muitíssimo mais fragmentados e contraditórios que isso. Muitos trabalhadores têm investimentos de aposentadoria e pensões aplicados em empresas cujo projeto de lucro depende de reduzir ao mínimo o número de empregados; um dos fatores que levaram à bolha do crédito e à explosão da bolha do crédito foram os fundos de pensão, à procura de ganhos mais estáveis para pagar as apólices de pensão para futuras gerações de trabalhadores aposentados, a tal ponto que, em muitos casos, vivemos uma situação na qual as pessoas perdiam os empregos por causa de perdas em jogadas financeiras tentadas para assegurar pensões futuras para os mesmos trabalhadores (considerados como classe). Muitos de nós somos escravos do salário, beneficiários do estado de bem-estar, fundadores daquele estado, ao mesmo tempo em que somos atuais ou futuros aposentados e pensionistas que, por isso ou por algum outro motivo, somos burgueses donos dos meios de produção, pode-se dizer, como prescreve o manual. É muito complicado. E as intensas pressões éticas que vez ou outra conseguem dobrar as grandes empresas empregadoras são sintoma dessa complexidade e multiplicidade de interesses.

Chama a atenção o quanto raramente as empresas usam, para defender-se, o mais simples – e pelos critérios do capitalismo clássico, o mais verdadeiro – argumento de autojustificação: “... nosso papel ético é gerar lucros para nossos acionistas, oferecer empregos e pagar impostos. O resto é problema do governo e dos eleitores”. Mas nunca dizem isso, talvez intuindo que nós todos intuímos que os conflitos internos de interesses que nascem das inter-relações muitos estreitas que ligam todos a tudo tornam o mundo muito mais complexo que isso.

Por mais complexo que seja o modelo do mundo de Marx, o mundo moderno é ainda mais complexo e complicado. Essa evidência exerce forte pressão em mais uma área, que Marx reconheceria, com o auxílio de um de seus ditos favoritos, herdado de Hegel: a quantidade altera a qualidade. Significa que você pode ter um sistema explicativo que dê conta de determinados fenômenos – nesse caso, o modo como o capitalismo produz produtos, que anda na direção contrária de seu próprio movimento de acumular e explorar – sem que a explicação altere a rota geral da viagem. Mas as coisas mudam quando os fenômenos começam a aparecer muito repetidas vezes, acumulam-se, deixam de parecer exemplos contraditórios isolados e passam a impor-se como desmentido básico, crucial, das ideias centrais.

Alguma coisa desse tipo aconteceu com as contracorrentes que fluem por dentro do capitalismo.

Tomem-se as medições estatísticas básicas de vida, mortalidade infantil e expectativa de vida. Em 1850, a expectativa de vida na Grã-Bretanha, ano em que o Manifesto Comunista foi publicado em inglês, era de 43 anos, menos que a expectativa de vida, hoje, no Afeganistão que é a menor dentre todos os países não atingidos pela epidemia de AIDS. Na Grã-Bretanha hoje a expectativa de vida já ultrapassa os 80 anos e cresce tão rapidamente que, ocultado nas estatísticas, há um fato realmente muito estranho: uma mulher que, hoje, tenha 80 anos, tem 9,2% de chances de chegar aos 100 anos; para uma mulher de 20, a chance é de 26,6%. Pode parecer estranho que alguém 60 anos mais jovem, tenha chance apenas três vezes melhor de chegar aos 100 anos, mas o que se vê aí é como se dá o progresso rápido. A mortalidade infantil, que se usa para aferir várias coisas (nível de desenvolvimento médico e tecnológico, força dos laços sócias, grau de acesso aos serviços médicos para os pobres, acolhimento, por uma sociedade, das necessidades de outros), é algo que teria merecido de Marx o mais dedicado interesse. 

Na Grã-Bretanha vitoriana, morriam 150 crianças por mil nascimentos. Hoje, o índice de mortalidade infantil na Grã-Bretanha é de 4,7 por mil. É melhoria de 3.191%. (Vários países saíram-se melhor: a GB é o 31º país em mortalidade infantil – a mais baixa mortalidade infantil do planeta acontece naquele país onde todos vivem reunidos em reuniões de condôminos: 1,92 por mil.) A taxa global de mortalidade infantil é de 42,09 por mil, um terço do que se via na Grã-Bretanha nos dias de Marx. A AIDS tem efeito terrível nesses números: Botswana, por exemplo, tem expectativa de vida de 31,6 anos, mas, segundo dados da ONU, se se remove o impacto da AIDS, a expectativa de vida sobe para 70,7 anos.

Até que ponto dados desse tipo desafiam as ideias de Marx? Esses dados mascaram desigualdades significativas – o exemplo notório em Londres é que, se se considera a linha Jubilee, de Westminster para leste, a expectativa de vida para os homens diminui um ano por cada uma das estações de trem, nas oito primeiras estações – mas, deixando isso de lado, o quadro geral é que quase todos vivem vidas mais longas, em melhores condições de saúde. Se isso é verdade, pode ser verdade que o capitalismo, sempre e confiavelmente, gere miséria? Pode ser verdade que o sistema seja destrutivo, se as pessoas que nele vivem simplesmente vivem mais? As Metas de Desenvolvimento do Milênio, por exemplo, anunciadas na virada do novo século, com objetivos que visam a reduzir em dois terços a mortalidade infantil e em três quartos a mortalidade materna até 2015, a partir de 1990 (há uma espécie de golpe de mão, ao fixarem o ponto de partida em 10 anos atrás, no passado), reduzir o número de seres humanos que vivem na miséria absoluta, dobrar a percentagem de crianças que completam, pelo menos, a escola fundamental. É possível ignorar conquistas dessa magnitude? Sistema que consiga isso pode ser definido como sistema que só produz, e nada produz além de, miséria? O próprio Marx disse que houve momentos nos quais o modo capitalista de produção pôde transcender-se, como quando se inventou a empresa por ações. Outras provas dessa possibilidade de autotranscendência teriam exercido forte pressão sobre seus modelos intelectuais.

Um último desafio ao modelo de Marx, e também ao quadro que previu para o futuro, está em algo que o próprio Marx viu muito claramente e muito profeticamente: o extraordinário poder produtivo do capitalismo. Marx viu como o capitalismo pode transformar a superfície do planeta e tem impacto na vida de todos os seres humanos vivos. Mas há uma falha, ou uma mácula, bem próxima do coração dessa análise.

Marx viu os dois polos fundamentais da vida econômica, social e política, como o trabalho e a natureza. Não viu essas duas coisas como estáticas; usava a metáfora de um metabolismo para descrever o modo como o trabalho modela o mundo e nós, por nossa vez, somos modelados pelo mundo que fizemos. Quer dizer: os dois polos, trabalho e natureza, não permanecem fixos. Mas o que Marx não concede é o fato de que os recursos naturais são finitos. Ele sabe que não há natureza que não seja modelada pelo que pensamos sobre ela, mas não partilha da nossa consciência contemporânea de que a natureza pode ser esgotada. 

É traço do pensamento marxiano que às vezes é considerado cômico, mas muito mais próximo está de uma tragédia; e no coração dessa tragédia está o fato de que o poder produtivo, expansionista, devorador de recursos, do capitalismo é tão grande, que não é sustentável em nível planetário. Todo mundo quer viver vida de burguês do Primeiro Mundo, que todos veem como é, porque todos assistem pela televisão, mas o mundo não conseguirá chegar lá, porque teremos queimado os recursos do planeta antes de chegar lá. Vivemos hoje a maior crise do capitalismo, de todos os tempos, e aí está, evidente no fato, inegável, de que a natureza é finita.

A maioria dos marxistas tem resistido e relutado, feito o possível para não entrar nessa questão, e por muito boa razão: porque o problema dos recursos no mundo, hoje – seja comida, água ou energia, poder, em resumo, em todos os sentidos –, tem a ver com distribuição desigual, não com o estoque total. Há quantidades mais que suficientes desses recursos no mundo, para todos nós. Intelectuais e ativistas na tradição marxista têm insistido nesse ponto, e têm razão, mas temos também de encarar o fato de que o mundo caminha para consumo cada vez maior, cada um com demanda sempre crescentes de recursos. E todos ao mesmo tempo. Esse fato é o mais mortal oponente do capitalismo. Para citar só um exemplo, de só um recurso, o consumo de água nos EUA é de 377 litros/pessoa/dia. Não há água suficiente no planeta, para que todos os seres humanos levem essa vida.

A questão portanto é se o capitalismo conseguirá gerar novas formas, como tem conseguido gerar até agora, e aparecerá com mecanismos baseados na propriedade e no mercado que forcem mudança de rota, na via direta e aparentemente inevitável rumo à crise à qual chegará; ou se nada mais saberá inventar; caso em que passaremos a necessitar de outra ordem social e econômica completamente diferente. A ironia da história é que essa nova ordem pode vir a ser, em muitos aspectos, a ordem que Marx imaginou, mesmo que tenha previsto via diferente para chegarmos lá.

Quando Marx disse que o capitalismo continha as sementes de sua destruição, não falava sobre mudança climática nem guerras por recursos naturais. Quem se sinta desapontado, frustrado, ante as dificuldades que temos pela frente, que se console com a evidência de que foram nossa adaptabilidade imaginativa e nosso engenho que nos levaram tão longe tão depressa – e tão depressa que, agora, temos de desacelerar e ainda não sabemos como fazer.

Como Marx escreveu no final do primeiro volume de O Capital, “o homem distingue-se dentre todos os animais, pela natureza flexível e sem limites de suas necessidades”.  Necessidades ilimitadas, sim, vemos por aí, muitas, é o que não falta, e elas nos arrastaram ao ponto a que chegamos. Só falta trabalhar duro na parte da flexibilidade.


Lembrete dos tradutores
*Dia 5/5/2012, dentro de um mês portanto, Marx chegará aos 194 anos.

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