31/3/2012,
Paris (Follies Bergères). Vídeo e fala transcrita e traduzida
(fragmento)
Transcrito
e traduzido pelo pessoal da Vila
Vudu
[Se
for eleito, como o senhor se engajará eficazmente na luta contra a discriminação
de LGBT, e quanto demorará?]
Mélenchon: Muito
obrigado pelo convite.
Bem,
vocês sabem que há algo de muito vulgar, de muito grosseiro, nas instituições da
5ª República, na qual tudo diz respeito sempre a um certo tipo de gente. Por
isso, hoje, aqui, o melhor que posso fazer é reconhecer que há traços [no que eu
digo] que resulta de minha formação e do meu trabalho na Comissão ... da Frente
de Esquerda e dos partidos que a constituem.
Entendo
que o mais útil é começar por – mas não se preocupem, que não fugirei de
respostas precisas – falar, um momentinho, de filosofia. Com isso, teremos um
fio condutor, e isso me ajudará a responder ao que vocês quiserem perguntar. [O
entrevistador faz cara de tédio e ouvem-se protestos e palmas do público.] Tem
de ser assim. É a única maneira pela qual eu mesmo, consigo pensar. Sem isso, o
quê? Fico aqui, visto, quem sabe, como macho mediterrâneo, e nenhuma discussão
pode avançar.
Vejamos
então como comecei a pensar, porque percebi que, cada vez que me propunham uma
pergunta pontual, e eu dava uma resposta pontual, imediatamente depois surgia
outra pergunta pontual. Pergunta-se sobre o casamento, eu respondo; depois vem a
questão da adoção, eu respondo, depois outra e outra questão, e de pouco nos
serve só ter a oferecer respostas pontuais e sempre se é obrigado a recomeçar a
pensar do zero.
Então,
qual é o meu fio condutor? No fundo, para o universalista que sou, a linha mais
interessante para entrar na reflexão, é pela brecha do transgênero. E explico
por quê.
Porque
nesse momento cessa, está suspensa, não existe, qualquer atribuição de uma
identidade. Não só do ponto de vista de quem tenha de atravessar a fronteira –
porque se trata de uma fronteira, de um arquétipo que, ele mesmo, já é uma
fronteira –, mas também para quem tenha de pensar sobre essa questão. Se se
pensa sobre o transgênero, aparece uma força que cega. E assim, embora cego,
fato é que quem fale de um ser transgênero não está falando de um ser humano. O
humano não é transgênero, como definição.
Assim,
quem queira pensar e falar sobre os seres transgêneros e queira ver o humano no
transgênero, tem, necessariamente de, antes, ampliar a definição de humano, para
encontrar lá a sua própria (e outras) identidade não baseada no gênero.
Quero
dizer: para falar dos seres transgêneros, é preciso entender “humano” como uma
identidade universal, algo mais amplo que a classificação por gêneros.
Essa
ideia parece estranha, mas não nos é estranha. Estamos habituados à ideia
universal, quando dizemos que a pessoa humana nasce igual e permanece igual
perante a lei. Há aí já um esforço da razão, que nos faz ver acima, no plano
lógico, contra todas as evidências, que somos todos iguais, sim, apesar dos
altos, dos baixos, dos gordos, dos magros, homens e mulheres. É por um esforço
da razão que vemos essa igualdade universal de todos. E quem veja essa igualdade
universal, vê também que todas as diferenças são acidentais, não são essenciais.
O ser humano é humano, mesmo sem atribuição de identidade sexual e de gênero,
que não definem a humanidade do ser humano. O ser humano é humano, porque tem
aquela identidade universal. O problema é o mesmo, também na questão do laicato,
das diferenças religiosas. Só um esforço da razão permite ver a igualdade de
todos os seres humanos, que jamais está à vista.
Isso
posto, nessa ordem de raciocínio, chega-se facilmente à exigência absoluta da
igualdade de direitos, exigência filosófica, que não resulta de protestos ou da
exigência de direitos, que, sim, também têm sua legitimidade, ou de algum tipo
de negociação entre grupos, entre comunidades, porque se eu me baseasse na
essencialidade dos protestos e da exigência de direito, estaria negando o
republicanismo, que é a força que me anima. [Ponho os óculos, para não me
atrapalhar].
Assim,
como proponho a reflexão, já nos livramos logo de uma dimensão que é como
obsessão, talvez não para vocês e pelo muito que têm de padecer, mas que é como
uma obsessão sempre, nesses debates: alguma coisa como a exigência de
psiquiatrização do debate, de patologização e de judicialização da reflexão
[aplausos]. Como proponho a reflexão, já nos livramos de tudo isso.
Passo
seguinte, temos de entender que, se toda atribuição de identidade é resultado de
consideração sobre elementos acidentais (no sentido filosófico), nesse caso...
Quem é o adversário? O adversário é um arquétipo que há por aí, que não se vê, e
que é o mesmo que surge quando se reflete sobre a questão do feminismo e outras
questões. Esse arquétipo tem nome: é o patriarcado. [aplausos]
O
patriarcado é a estrutura cultural invisível, que paira sobre toda a nossa
reflexão aqui. [aplausos].
Portanto,
todo o processo de individuação ou de singularização tem de saber que nossa
reflexão acontece – talvez no sentido ensinado pelo patriarcado, talvez em
oposição a ele –, mas sempre sob a estrutura cultural invisível do patriarcado.
Mas, se não se sabe disso, não há individuação ou singularização possíveis.
Saber disso, portanto, é o saber que me liberta, também aqui.
Trata-se
então, por exemplo, do casamento republicano. (Porque o que vejo por aí é um
nupcialismo que considero impotente e não consigo entender. [risos e aplausos])
Sim,
claro, minha posição tem a ver com a tradição de esquerda e... sabe-se lá...
[risos e aplausos].
Fato
é que sempre entendi que já havia avançado muito na direção de garantir
direitos, com a proposta da parceria civil [orig. partenariat civil],
porque é a extensão a todos os casais, de um direito que se garante hoje só aos
casais heterossexuais.
Partimos,
naquele caso, da análise de direitos que atendem ao interesse do casal, não
importa qual seja a atribuição identitária do casal, sejam lésbicas, gays,
transgêneros, bissexuais. Achamos que seria perfeito. Mas... se tantos insistem
em casar, o que se pode fazer? Que casem. Mas que seja casamento republicano.
Façam
o que quiserem, mas, francamente, não sei o que significa casamento homossexual,
como se os demais casamentos tivessem de ser fatalmente heterossexuais [da
plateia: “Nós sabemos muito bem!”] Se vocês sabem, OK, faça cada um o que quiser
[vozes ininteligíveis da plateia. Mélenchon ri: “Podem gritar o que quiserem,
que sou meio surdo” (risos e aplausos)]. E vou concluindo, porque percebo que
começo a incomodar [da plateia: “Não!” “Não!”].
Entendo,
então, que um bom ponto de partida é dar a vocês uma linha de horizonte do que
vamos fazer.
Como
vocês sabem, no Programa da Frente de Esquerda, há uma lei, ainda em germe, à
qual temos dado o nome de “Lei da Virtude Republicana”. Nada tem a ver com
costumes. Tem a ver com a organização da sociedade e, em particular, com a
abolição de qualquer discriminação positiva, que funciona hoje para os ricos, e
que é o que se conhece como “privilégio”. [aplausos]
Para pensar essa lei, nos
inspiramos na lei de 4/8/1789, de abolição dos privilégios.[1]
Naquela
noite, não sei se todos sabem, foi aprovada na França uma lei que diz tudo o que
há a dizer sobre reconhecimento de casamentos, de filhos, reconhecimento de
paternidade, autorização para o divórcio, abolição dos direitos do primogênito,
fim de todas as diferenças contra o filho natural, e muito mais. Mantemos pois,
no nosso horizonte, como orientação e inspiração, a Lei da Virtude Republicana,
que está em germe, em nosso Programa.
Talvez
se deva recomendar, não sei, com os que tenham sido eleitos como representantes
e aqui estejam, e da Associação de vocês, que se imprima e distribua o nosso
programa, a Lei de 1789, a Lei dos Direitos da Europa e
outros documentos, que ajudam a avançar na reflexão, hoje.
Por
tudo isso, proponho aqui que se inverta o questionamento.
Não
se trata de perguntar apenas que direitos, que liberdades “em si” etc. Vamos
perguntar quais são os direitos e liberdades pelos quais luta o movimento LGTB e
que são realizáveis no quadro de um ou outro programa.
Porque
é muito cordial trazer aqui em desfile todos os candidatos, e dosam-se as
perguntas conforme o convidado, para saber o que cada um pode fazer pelo
movimento LGTB.
Mas
é preciso perguntar também qual é a contribuição que o movimento LGTB pode
trazer para a emancipação coletiva de toda a sociedade [aplausos, aplausos].
Trata-se
pois de saber, sim ou não, se há compatibilidade possível entre as
reivindicações do movimento LGTB e as plataformas da “austeridade” dos
candidatos da direita. Por exemplo, se se diz que a escola é o começo de tudo.
Já
disse várias vezes que a “opção sexual”, como dizem tantos, não é opção, é fato.
Portanto, façam todos o que fizerem, sempre haverá indivíduos de um tipo ou de
outro. E eles e elas terão, por lei, de ir à escola.
O
problema real, portanto, é visível: mais do que “dar direitos”, trata-se de
formar pessoal competente para lidar com o fato da diversidade sexual nas
escolas. Há necessidade de contratar mais gente, se o objetivo é enfrentar o
preconceito, evitar a violência e o abuso e educar para a diversidade sexual. E
então? Como se pode cogitar de contratar pessoal especializado em integração
social e luta contra os preconceitos, se só se ouve falar em cortes nas despesas
públicas e em “austeridade”? Vale para a educação, o que vale também para a
saúde. O que significa “garantir direitos”, se ninguém cogita dos meios
necessários para que a tal “garantia” signifique alguma coisa, e só se fala em
cortar os poucos meios hoje existentes? [aplausos].
As
questões da discriminação no trabalho, mais um aspecto que tem efeito real, nas
situações concretas do sofrimento para viver. Como é exequível qualquer medida
nesse campo, se falta formação e faltam empregos, além de direitos mínimos à
dignidade da vida? Trata-se pois de formar, empregar e assegurar direitos que
tenham efeito real sobre a vida. É isso, ou é nada. [aplausos].
Quero
dizer é que vocês agem como hipócritas, se entregam a defesa dos direitos de
vocês a gente que até hoje jamais previu, em qualquer orçamento público, nem um
centavo de euro para fazer o que dizem que farão, assentados todos no discurso
“dos direitos”. [aplausos, aplausos].
Como
vocês sabem, nós militamos pela 6ª República, e o projeto da 6ª República nos
levou a propor o reconhecimento de três direitos fundamentais (com o que me
aproximo do fim, porque volto ao que propus no início).
Esses
três direitos fundamentais são o resultado a que chegamos, por nossa experiência
de vida, que nos permite dizer que há três direitos fundamentais, que não são
“naturalmente” reconhecidos nos nossos hábitos culturais. São direitos que nos
levam ao limite do que, antes, parecia ser uma evidência. E são direitos que têm
absolutamente de ser declarados e protegidos:
–
o direito de dispor livremente do próprio corpo, e proteger esse direito. Aqui
se inscreve o direito ao aborto, eternamente ameaçado; [aplausos, aplausos]
–
o direito de decidir, cada um (não sei se choco alguém, mas sou homem que diz as
coisas claramente) sobre a própria fome de viver, como limite absoluto a ser
protegido; [aplausos, aplausos]
–
(aqui, há de haver alguém que encontre melhor expressão para globalizar a
formalização desse direito; a melhor forma que encontrei é:) o direito,
garantido a todos os casais, dos direitos que só são assegurados aos casais
heterossexuais, e aqui, são muitos os direitos a reconhecer constitucionalmente
e proteger.
Estou
certo, tenho razão? Não tenho, errei tudo? Não sei. Não estamos aqui numa
igreja, onde somos condenados se nos deixamos tomar pela paixão.
Muito
obrigado pela atenção. [aplausos, aplausos! “Resistência!”
“Resistência!”]
Nota
dos tradutores
[1] Sobre a lei, ver em: “Abolition
des privilèges et des droits féodaux” (em francês).
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