Mario Maestri |
Quarta, 04 de Abril de
2012
Extraído de “O
Nacional”
Enviado por Vanderley Caixe
O torturador debruçava-se sobre a
vítima com objetivos imediatos. Através da destruição física e psicológica,
buscava quebrar a vontade do torturado para que denunciasse companheiros;
revelasse locais de encontro e reunião; indicasse atos passados e futuros.
Exigia que tudo revelasse, a fim de interromper a dor lancinante e o medo à
dilaceração irremediável da existência, vivida em extrema
solidão.
A tortura durava minutos ou se
mantinha por horas, dias e semanas; podia deixar feridas, mais ou menos
indeléveis, ou desembocar intencionalmente ou não na morte, sobretudo diante de
vontade inquebrantável. Após sevícias inomináveis, Mário Alves morreu de
hemorragia interna, empalado em cassetete, por esbirros indignados com o mutismo
férreo do baiano.
A tortura possuía objetivo mais
ambicioso. Almejava impor o medo aos que resistiam, pensavam em resistir, eram
chamados à resistência, simpatizavam com ela ou conheciam sua existência. Todos
deviam vigiar atos e passos, para não terminarem diante do torturador. Pais
foram torturados diante dos filhos pequenos; jovens foram estupradas por cães;
militantes foram dilacerados até a morte, como registro do direito absoluto do
torturador. Devido a essa função pedagógica, enquanto a ditadura negava a
prática da tortura, permitia-se que seu conhecimento penetrasse e aterrorizasse
amplos segmentos da população.
No Brasil, a tortura como arma
policial e como instrumento de domínio social foi instituição de Estado. Ela foi
introduzida, sustentada, justificada, financiada, apoiada ativamente pelas
classes sociais que incentivaram e se locupletaram com o golpe militar:
industriais, banqueiros, latifundiários, a grande imprensa, políticos
conservadores, oficiais da ativa e retirados, a alta hierarquia da Igreja e da
Justiça etc.
Ainda hoje, as instituições
judiciárias, legislativas e executivas do Estado desdobram-se para proteger e
encobrir os responsáveis e os executores das práticas generalizadas de tortura e
execução de prisioneiros políticos, atos que a justiça internacional e o direito
dos povos definem como imprescritíveis e necessariamente objetos de punição
exemplar.
Em 2010, o Superior Tribunal
Federal reafirmou a impunidade daquelas ações criminosas. Em 14 de dezembro de
2011,
a maioria dos vereadores porto-alegrenses, inclusive de
partidos punidos pela ditadura – PDT, PTB, PPS, PT –, negou, pelo voto,
abstenção ou ausência, a rebatizar de Leonel Brizola a atual avenida Castelo
Branco – que homenageia o primeiro ditador do regime
militar.
Os torturados arrastaram para
sempre as feridas recebidas nas carnes e na alma. Amiúde, elas nunca
cicatrizaram, sorvendo gota por gota a alegria da vida. Também no Brasil, a taxa
de suicídio entre os grandes torturados é estarrecedora, e segue crescendo mesmo
décadas após o martírio. Porém, em geral em silêncio, essas vítimas da
desumanização promovida pelo Estado carregam orgulhosas a memória de luta
empreendida, nas piores condições, por direitos sociais e humanos
inarredáveis.
Os torturadores, não. Promovidos
em suas carreiras civis e militares e retirados com aposentadorias magníficas,
procuram esconder seus atos passados ou diminuir a magnitude e o sentido dos
mesmos, quando é impossível negá-los. Sobretudo, mimetizam-se na população comum
ou simplesmente recolhem-se para a vida familiar e privada, escondendo-se por de
trás das portas aferrolhadas de seus ricos apartamentos e
mansões.
Retomando a prática consagrada em
países como o Chile e a Argentina, uma garotada corajosa vem se postando diante
das residências e locais de trabalho de torturadores em Porto Alegre , Belo Horizonte,
Fortaleza, São Paulo. Com carros de som, cartazes, panfletos e muita gritaria,
denunciam aos passantes e vizinhos espantados, com farta documentação
probatória, que ali se homizia no anonimato gente responsável pelo crime
inominável de tortura de prisioneiros e prisioneiras
inermes.
Em registro do indiscutível
reconhecimento da infâmia de seus atos impunes, os torturadores revelados apenas
se esgueiram pelas portas traseiras dos imóveis e residências ou arriscam-se a
entrever os denunciantes, escondido por entre as cortinas das janelas, como os
ratos que mergulham espavoridos no esgoto, aterrorizados pela luz do
dia.
*Mário Maestri
é
historiador e professor do curso e do programa de pós-graduação em História da
UPF. Foi preso e exilado, quando estudante, durante a ditadura militar. E-mail:
maestri@via-rs.net
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