quinta-feira, 26 de abril de 2012

EUA: Nocaute técnico no Afeganistão


25/4/2012, Nick Turse, TomDispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Recentemente, depois que os guerrilheiros lançaram ataques sincronizados sofisticados no Afeganistão – dúzias de combatentes metidos em coletes explosivos, foguetes lança-granadas e armamento leve, além dos carros-bombas –, o Pentágono correu a chamar a atenção de todos para o que não acontecera. 

“Não estou minimizando a gravidade disso, mas nada tem a ver com a Ofensiva do Tet” – disse George Little, principal porta-voz do Pentágono. “O que vemos são homens-bomba, foguetes lança-granadas, fogo de morteiro etc. Não há qualquer ofensiva em larga escala em Cabul e outras partes do país”.

O secretário da Defesa Leon Panetta disse praticamente o mesmo. “Não houve ganhos táticos” – insistiu. “Não passam de ataques isolados, para finalidades simbólicas. E não reconquistaram território”. Os mesmos sentimentos ecoaram também em muitos jornais, que repetiram que “os ataques pouco obtiveram” ou que foram “mal-sucedidos”.

Por mais que os ataques tenham de ser noticiados como fracassos, a reação oficial dos EUA aos ataques coordenados dos guerrilheiros em Kabul, capital do Afeganistão; na base aérea de Jalalabad; e nas províncias Paktika e Logar mostra incompreensão básica do que seja uma guerra de guerrilhas e, especialmente, do tipo de guerrilha que a rede Haqqani (grupo criminoso que a guerra converteu em grupo guerrilheiro insurgente) está fazendo.

Todos os jornais dos EUA deveriam ter publicado a seguinte chamada: “Mais de 40 anos depois da Ofensiva do Tet, na Guerra do Vietnã; com mais de uma década de guerra no Afeganistão; depois, até, de terem ressuscitado a doutrina da Contraguerrilha (e mesmo que, em seguida, a tal doutrina COIN [orig. Counterinsurgency] já tenha sido reduzida a cacos), os militares dos EUA simplesmente ainda não entenderam a guerra de guerrilhas.

Analisem esse fenômeno como um inegável recorde mundial de “fracasso de entendimento” que se estende dos anos 1960s a 2012, e que avançará adiante, sem dúvida alguma.

As lições do Tet

Quando as forças revolucionárias do Vietnã lançaram a Ofensiva do Tet em 1968, atacando Saigon, capital do Vietnã do Sul, além de quatro outras grandes cidades, 35 das 44 capitais de províncias, 64 sedes de distrito e 50 outros pontos estrategicamente importantes em todo o país, tinham a esperança de despertar um levante de toda a população. Conseguiram, em vez disso, mostrar ao mundo que meses de discursos otimistas dos comandantes dos EUA, sobre incríveis conquistas estratégicas e a vitória já próxima, nunca haviam passado de farsa, extrema e vastíssima farsa.

A Ofensiva do Tet lançou infâmia imorredoura sobre o comandante das forças dos EUA, general William Westmoreland, porque dissera, poucos meses antes, que a vitória dos EUA nunca estivera tão próxima. E quando apareceu frente às câmeras de TV, no pátio da Embaixada dos EUA, em Saigon, já praticamente em ruínas – depois que um pequeno grupo de sapadores vietcongs abriu uma entrada num dos muros e apanhou desprevenido o exército dos EUA –, para dizer que a Ofensiva do Tet dera em nada, foi afinal visto, pelos norte-americanos que assistiam àquilo como ou desligado da realidade, ou doido delirante.

Desde aquele momento, deveria ter ficado claro que, na guerra de guerrilhas, o sucesso tático, e até o sucesso em sentido corriqueiro, nunca é tudo ou nada. Guerrilheiros em todo o mundo entenderam o que houve no Vietnã. Recolheram as lições no fundo da alma e as levaram um passo adiante. Entenderam, por exemplo, que não é preciso perder 58 mil combatentes, como os vietnamitas perderam no Tet, para obter importantes vitórias psicológicas. Basta que a guerrilha chame atenção para as fragilidades do inimigo, para a incapacidade do inimigo que não tenha conseguido conter a guerrilha.

A rede Haqqani com certeza aprendeu a lição; e, há apenas uma semana, alcançou exatamente esse resultado, com 57.961 guerrilheiros mortos a menos. Ao assestar um golpe psicológico contra o inimigo poderosíssimo, ao custo da vida de apenas 39 guerrilheiros, a rede Haqqani mostra que luta pelo modelo da guerrilha global do século 21. E o Pentágono – os principais comandantes civis e militares dos EUA saibam disso ou não – ainda está paralisado em Saigon-1968.

Panetta, no caso em tela, só soube tentar desqualificar a vitória da rede Haqqani, por não terem reconquistado “território”. Pela falta de sentido e foco, é comentário claramente westmorelandesco.

E que território, afinal de contas, uma força armada relativamente fraca como os militantes Haqqani teriam interesse em “reconquistar” atacando o quarteirão diplomático, exatamente a área mais fortemente defendida, de Kabul? E no ataque à Embaixada Alemã? E caso “reconquistassem” algum território, teriam feito o quê? Tentariam “reconquistar” o território da OTAN? Da Embaixada dos EUA? E Panetta, embora tenha visto que os ataques visavam a obter efeito simbólico, mesmo assim se manteve estranhamente obcecado com seu significado “tático”.

Como aconteceu no Vietnã, os militares norte-americanos no Afeganistão sempre tentam demonstrar que estão vencendo pela lógica dos números (número de inimigos capturados, de cadáveres produzidos nos “raids noturnos”). Também com expressiva frequência, os porta-vozes inventam regras e modos de contar inimigos, sempre tentando demonstrar que o inimigo estaria sendo vencido.

Esse modo de pensar à Westmoreland ficou bem claro semana passada, nas declarações segundo as quais os Haqqanis nada teriam conseguido “porque” não conquistaram território, ou que não teriam conseguido organizar ataque “suficientemente grande” – como se o Pentágono fosse o juiz da guerra (além de guerreador) -- e o conflito pudesse ser vencido por pontos, como luta de boxe.

Nos anos do Vietnã, Westmoreland e outros altos oficiais dos EUA viviam à procura de um sempre fugidio “ponto de virada” – o momento em que o inimigo vietnamita passaria a sofrer mais baixas do que teria soldados para substituir os mortos e, como todos pareciam convencidos de que aconteceria, seria obrigado a render-se. Esse “ponto de virada” foi o El Dorado do Pentágono e, para alcançá-lo, os militares dos EUA fizeram guerra de atrito, exatamente o que faz hoje o Pentágono, que tenta achar o caminho para a vitória no Afeganistão com ataques noturnos e ataques convencionais.

Mais de uma década depois de suas forças terem varrido Kabul, porém, o que começou como bando de guerrilheiros esfarrapados cresceu e fortaleceu-se, e continua a pressionar o exército mais armado, mais tecnologicamente avançado, mais rico do planeta. Mas nem todos os “ganhos táticos” dos EUA e os territórios conquistados, sobretudo no coração da área dos Talibãs, na província de Helmand no sul do Afeganistão, estão levando a coisa alguma que seja remotamente semelhante a vitória. E uma depois da outra, todas as ofensivas norte-americanas divulgadas como se fossem ‘a luz no fim do túnel’ – como a também muito divulgada Campanha Marjah-2010 – desapareceram na poeira da estrada e foram esquecidas.

As “zonas verdes” afegã e norte-americana

Como os Haqqanis planejavam demonstrar e demonstraram com os ataques coordenados, as forças militares dos EUA – um trilhão de dólares e centenas de milhares de soldados das forças locais de segurança – não são ainda capazes de garantir a segurança, sequer, de pequenas “zonas verdes” no coração da capital afegã. E, isso, para nem falar do resto do país.

O conflito no Afeganistão começou com a declaração do principal comandante norte-americano, segundo o qual “Não contamos cadáveres”. Mas rápido exame de recentes press-releases distribuídos pelos militares, onde muito se fala de “altos números de inimigos de alto valor mortos” e de número imenso de guerrilheiros mortos, mostra exatamente o contrário.

Como no Vietnã, os EUA lutam outra vez guerra de atrito, mas os afegãos impõem aos EUA a estratégia deles, muito diferente da estratégia de atrito dos EUA. Em vez de se arriscarem em ofensivas tateantes, muitas vezes suicidas, a rede Haqqani, dessa vez, planejou campanha conservadora, para preservar a vida dos combatentes e não desperdiçar recursos do grupo. Com aquela ação econômica, enviam mensagem clara à população afegã e, simultaneamente, expuseram ao público norte-americano a futilidade do conflito.

O desgaste do apoio norte-americano à guerra é hoje bem visível. No final de 2009, segundo pesquisa de ABC News/Washington Post, 56% dos norte-americanos acreditavam que ainda valia a pena combater no Afeganistão. Poucos dias antes dos ataques coordenados pela rede Haqqani, a porcentagem já desabara para 35%. No mesmo período, o número de norte-americanos convencidos de que não vale a pena combater no Afeganistão saltou de 41% para 60%.

Diga o Pentágono o que disser, a mais recente ofensiva dos Haqqani só estimulará essas tendências, e não bastam os press-releases do Pentágono, sobre mortes e mais mortes de inimigos, para revertê-las.

Na era do “exército-empresa” e seus mercenários, abrir uma brecha na “zona verde” da opinião pública norte-americana importa menos do que nos anos da guerra do Vietnã, mas ainda faz muita diferença. Os Haqqanis e seus aliados Talibã talvez não estejam ‘reconquistando’ território, mas nessa guerra de guerrilhas o território que realmente conta, dos dois lados das linhas de combate, é o território dos corações e mentes das pessoas. E aí, nesse território, o Pentágono está perdendo a guerra.

Dia 12 de abril, no mesmo dia em que foi divulgada a pesquisa ABC News/Washington Post, o tenente-coronel James Routt da Força Aérea dos EUA voou sua última missão de combate no Afeganistão. Foi um voo importante. Routt começou sua carreira pilotando bombardeiros B-52 no final da Guerra do Vietnã, e também participou de apoio à Operation Linebacker II, o infame “bombardeio de Natal” ordenado por Richard Nixon contra o Vietnã do Norte.

Poucos anos depois daqueles ataques, Nixon já era ex-presidente caído em desgraça; e os vietnamitas inimigos dos EUA haviam vencido aquela guerra. Décadas depois, os EUA continuam à beira de mais uma e ainda mais devastadora derrota, dessa vez frente a inimigos ainda menos numerosos, de fato nada além de um grupo guerrilheiro minoritário, com aliados fracos (e sem apoio de nenhuma “grande potência”). É inimigo que lutou muito menos batalhas e perdeu muito menos combatentes, apesar de enfrentar a máquina de guerra dos EUA, muito mais sofisticada. 

Enquanto Routt pendura o uniforme de bombardeador e afasta-se de mais uma derrota dos EUA na Ásia, o Pentágono insiste nos esforços para alcançar, se não a vitória, pelo menos alguma coisa que não seja absoluto e completo fracasso, de uma mistura de dinheiro, cadáveres e róseos relatos para os press-releases. A rede Haqqani e seus aliados, por sua vez, que souberam aprender as lições da Guerra do Vietnã, sem dúvida manterão sob total controle a sua guerra de atrito. E Washington só conhece a variante perdedora à qual continua agarrada há anos.

O Pentágono deveria ter superado a Síndrome do Vietnã, mas não: no Afeganistão, aplica ainda o mesmo antigo manual. Parece estar decidido a comprovar que a via Westmoreland ainda é o meio mais eficaz que há para ser derrotado em guerras na Eurásia.

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