Ubatuba – Se não puder evitar, seja breve
*Raul
Longo
Leia também: A MALDIÇÃO DE CUNHAMBEBE
(I)
Cunhambebe, como ilustrado por André Thevet, um cosmógrafo francês que acompanhou a expedição de Nicolas Durand de Villegaignon |
Para quem escreve, o primeiro
leitor almejado é o próprio autor. Algumas vezes para externar a si mesmo a
indignação sentida, outras para confirmar emoções, muitas para buscar
explicações.
É o que tentarei aqui: buscar
explicação para algo que me ficou absolutamente incompreensível nestas últimas
semanas. Resta saber em que poderá interessar ao leitor o que não compreendo
sobre algo que tenha me ocorrido.
Por trás do que é incompreensível,
geralmente existe uma explicação do interesse de todos. Afirmo isso pelas
experiências adquiridas nos anos que atuei como profissional de comunicação. Ao
longo desse tempo aprendi que quanto mais incompreensível a atitude de um
indivíduo, mais provável que tenha sido motivada por fatores relacionados a
sociedade à qual pertence, ou a toda a espécie humana.
A Maldição de Cunhambebe, por
exemplo, evocada pelos munícipes de Ubatuba quando alguém se sente traído ou
enganado por motivos mesquinhos, aparenta-se uma crença individual. Pois
exatamente a individualização dessas crenças é o que impede a percepção de suas
consequências coletivas.
Claro que existem questões
exclusivas que variam pelo histórico das relações familiares, os traumas
pessoais, as formações e deformações de caráter motivadas por experiências
únicas, intransferíveis. Mas no caso da Maldição de Cunhambebe, os que a evocam
conferem a má sorte do que lhes ocorre a uma cidade.
Na verdade, como em todo lugar, há
pessoas excelentes em Ubatuba. Algumas delas foram as que voluntariamente me
ajudaram sem ser necessário pedir-lhes algum socorro. Por que então, num segundo
momento, duas dessas pessoas precipitaram um dos piores momentos de minha vida,
apenas comparável aos que vivi durante a ditadura militar?
Mas, então, minha responsabilidade
e risco eram apenas sobre mim mesmo. E agora, pela primeira vez, outro dependia
de meu controle sobre uma situação da qual não tinha nenhum. E isso me foi o
mais desesperador.
Outra coisa a considerar é se o
ocorrido em Ubatuba se restringe apenas àquela cidade ou a todo o estado de São
Paulo. Quem assistiu ao filme “Invasões Bárbaras” sabe que a questão do
atendimento à saúde pública se tornou um problema mundial, atingindo inclusive
países outrora considerados modelares no setor, como o Canadá. Mas não tenho
experiências e conhecimentos que me permitam tecer considerações a respeito.
Por isso mesmo e pela preocupação
com a situação de meu pai, não respondi nem dei atenção às quantas vezes minha
amiga fisioterapeuta exaltou a administração de José Serra no que diz respeito a
saúde pública. Sequer percebi se ela se referia ao ministro da saúde ou ao
governador, mas conforme a farta e inquestionável documentação exposta por
Amaury Ribeiro Jr. no livro “A Privataria Tucana”, a quadrilha da família Serra
lesou tanto o povo paulista e brasileiro que o mínimo a esperar seria mesmo ter
retribuído em alguma coisa. Não sendo da
área não tenho como confirmar ou avaliar as conclusões e opiniões da amiga, mas
esses seus comentários me possibilitaram um caminho de investigação na tentativa
de compreensão das causas do que me ocorreu entre os dias 6 e 19 de abril.
Otimista com as informações
telefônicas dessa mesma amiga sobre a evolução de meu pai ao longo dos 13 dias
que em Florianópolis dei andamento a algumas das obrigações deixadas para trás,
surpreendo-me quando torno a encontrá-lo afundado numa poltrona modelo “cadeira
do papai”, da instituição de recolhimento de idosos onde o deixei em 21 de
março. Era o mesmo celofane amassado de um mês antes, no hospital.
A diretora da instituição explica
que tiveram de colocá-lo ali por ter caído da cama três vezes. Concluindo que
sonhara estar nadando, mostra o machucado em um cotovelo provocado pela queda.
Avalia a sorte de não ter se ferido em nenhuma outra parte e torna a reclamar de
seu peso. Pergunto do enfermeiro pelo qual acrescera o valor da mensalidade e
informa que o rapaz se demitiu logo depois e o outro, o único homem do quadro de
funcionários da instituição, se recusa a atender meu pai.
Indago a razão e confidencia ter
ocorrido uma discussão entre a amiga fisioterapeuta e o técnico de enfermagem,
por motivos que desconhece, mas conclui relativos ao meu pai. Revela ter notado
que o desinteresse do profissional ocorreu depois da visita ao meu pai por um
inconsequente. Mas o mais preocupante foi o retorno da febre que provocou nova
internação na Santa Casa, onde passara aquela noite de 06 a 7 de abril; e a
recomendação da médica que atende aos idosos para que meu pai fosse transferido
a um hospital capacitado para atendê-lo nas profundas debilidades que o
acometem: baixo nível de plaquetas, inchaço do coração e infecção
urinária.
A médica teria alertado que ele
não suportaria as mais de 10 horas de viagem para Florianópolis, mas, como
funcionário público aposentado, imprescindível sua transferência para o Hospital
do Servidor em São Paulo, enquanto ainda lhe restava alguma resistência.
Exponho a preocupação de que se
repita o mesmo que ocorrera quando lhe deram alta na Santa Casa e não tinha para
onde levá-lo. Também explico que todas as pessoas da família da esposa de quem
meu pai ficou viúvo trabalham, e não há ninguém disponível para acompanhá-lo
diuturnamente como seu caso exige.
Informo que Sônia, a enteada, esta
em negociação com uma clínica de repouso, mas que antes dessa confirmação temo a
insegurança de não ter para onde levá-lo. A amiga garante que para normalização
de sua condição de saúde, o Hospital do Servidor o manteria internado no mínimo
duas semanas.
Foi a informação que transmiti no
sábado a tarde quando chegam Sônia, suas filhas e netos. Todos muito chocados
com o estado do pai e avô, além da grosseria de alguém que reclamou de sua
permanência naquela instituição, questionando-as duramente sobre quando o
levariam embora. Imaginei que tiveram a má sorte de se deparar com algum
funcionário mais tosco e mal humorado, como há alguns anos vêm se tornando
bastante comum na outrora simpática Ubatuba dos antigos caiçaras.
O que terá tornado os de Ubatuba
tão grosseiros e irascíveis? Não sei responder, mas pude sentir no dia
seguinte.
No anterior, preocupado com a
informação de que a indisposição do técnico de enfermagem contaminara os demais
funcionários, retornei com um ovo de chocolate para a atendente plantonista. Não
tive pejo de imitar o Paulo Maluf, mas não me reverteu a mesma admiração de que
o demagogo gozava na cidade quando ali vivi, pois desde que adentrei o portão a
diretora minha amiga e uma mulher que até então não conhecia seguiram-me por
cerca de 30
metros até o alojamento de meu pai. Uma de cada lado me
acusaram pelo trabalho que o pai lhes dava e continuaram falando ao mesmo tempo
e me inquirindo como policiais mesmo quando sentei ao lado da poltrona onde meu
pai se afundava, mas dessa vez estava desperto. Percebi ter me reconhecido pela
primeira vez desde que fora acometido pelo AVC e tentou falar-me alguma coisa,
mas assim como nas delegacias as torturantes mulheres não paravam de falar e
quando tentava responder a uma, a outra interrompia repetindo a mesma pergunta
ou a mesma acusação. Recusaram-se a escutar o que eu tivesse a dizer, numa fiel
reprodução da dupla de delegado do DOPS e tenente do exército que me interrogou
em Recife nos anos 70. Dessa vez não tinha porque deixar que me intimidassem e
num tom acima disse algo que calou a matraca da desconhecida que empinou o nariz
e saiu pisando duro, além de recompor a diretora à normalidade sadia.
Só então pude ouvir o fio de voz
de meu pai em meio a um sorriso: “- Palpiteira!” A amiga concordou que a outra
não deveria ter se metido, mas retornou a importância da imediata transferência
de meu pai ao Hospital do Servidor, antes que seu debilitado estado de saúde se
agravasse, novamente enumerando condições que o levariam a morte. Um quadro tão
desesperador que sai dali para telefonar à Sônia já de retorno a São Paulo,
interando-a da eminência da morte de nosso pai se não conseguimos tirá-lo dali o
mais rápido possível.
Na segunda-feira cedo encontrei a
diretora e a amiga fisioterapeuta que relatou a razão de sua discussão com o
técnico de enfermagem, quando ele o acusou de estar recebendo por fora, baseado
em informação do visitante inconsequente. A informação era de que meu pai teria
pequena fortuna em poupança.
Hoje me pergunto se terá sido essa
razão de, em menos de duas semanas, minhas amigas terem mudado radicalmente de
comportamento. Mas ainda me é difícil aceitar que tenham acreditado numa
informação que, por todas as evidências, sabiam que apenas eu poderia possuir.
Inclusive uma delas é testemunha na procuração que a mim transferiu o poder de
inteirar-me do saldo de meu pai.
Também sabem de meus restritos
recursos de sobrevivência aferidos nesta pequena pousada procurada apenas nos
curtos períodos de temporada desta capital sulista. Não me é possível imaginar
que, apesar de toda admiração que tenham pelo José Serra, sejam ingênuas o
bastante para acreditar no obus em que transformaram uma bolinha de papel. Não
posso acreditar que as fantasias da campanha de Serra tenham influenciado as
amigas a tal ponto de acreditar em qualquer delirante que apareça.
Adolf Hitler transformou o povo de
Beethoven, Schopenhauer e Goethe, entre tantos outros sensíveis artistas e
pensadores, em celerados genocidas. Terá
José Serra transformado mulheres que sempre admirei, inclusive
pela inteligência, em idiotas?
Não apenas por serem minhas
amigas, isso não me parece provável, mas também porque conheceram a casa de meu
pai: uma construção inacabada e abandonada à beira do mangue no final da praia
mais popular de Ubatuba, com dois quartos, sala e cozinha conjugada e ampla
dispensa para seu naturalismo amador. Sabem de seu Chevette 93 de lataria podre,
ainda que nem tanto quanto a mesquinha avidez do enfermeiro iludido por um
inconsequente que delirou uma informação que não possuía.
Decididamente minhas amigas não
são idiotas como o técnico de enfermagem, mas também não consigo imaginar que
tanto trabalho pode ter dado uma pessoa impossibilitada de se mover e voz quase
inaudível. Daí só poderia concluir que realmente havia uma sincera preocupação
com meu pai.
A estimativa para recuperação do
estado agudo e terminal em que meu pai se encontrava ampliou-se para mais de 20
dias e o desespero que me infundiram, transmiti por telefone à Sônia. Uma de
suas filha matou o trabalho para naquela mesma segunda-feira, 9 de abril,
comover a assistente social do Hospital do Servidor público que me ligou
confirmando a vaga, dependendo somente da solicitação de um dos médicos que
atenderam meu pai, na Santa Casa ou na instituição de acolhimento de idosos.
Já era noite quando consegui
localizar a amiga fisioterapeuta, informando essa última condição e lamentando a
conhecida inacessibilidade dos médicos de Ubatuba. Reiterando recomendações de
estrito sigilo, forneceu o telefone de ambos: o da Santa Casa e o da médica que
atendia meu pai no lar de idosos.
Também minha conhecida, aquela
médica se espantou quando lhe comuniquei que atendendo sua orientação, obtivera
meios de internação em São Paulo. Confirmou ter
considerado temerária uma viagem, mesmo em ambulância, de mais de 10 horas, mas
disse já ter informado às minhas amigas que hospital algum aceitaria meu pai,
pelo simples fato de que ele não apresentava qualquer indício de motivo para
internação hospitalar, estando em perfeita recuperação dentro das condições de
seus 87 anos e do AVC que o acometera.
Estupefato, retorno à amiga que
desqualifica ferozmente o diagnóstico da médica. Demais atordoado no momento,
não me ocorreu a comparação com as acusações de Mônica Serra à adversária de seu
marido na campanha das últimas eleições à presidência, mas confesso que depois
cogitei a possibilidade daquele tipo de comportamento ter se tornado um exemplo
seguido pelo eleitorado feminino paulista. Um modismo comportamental.
Hoje refuto tal consideração,
lembrando que minha maior admiração àquela amiga sempre foi exatamente por sua
sinceridade, para muitos até desconcertante. De forma alguma! Jamais ela
cometeria semelhante hipocrisia!
No entanto, assim como os
eleitores do nordeste foram ameaçados de afogamento pela estudante paulista de
direito e eleitora do Serra, a amiga estimulou-me ao complexo de culpa pelo que
viesse a ocorrer ao meu pai, duramente exortando-me a procurar o outro médico, o
do hospital, impondo a necessidade da transferência.
Desliguei o telefone atarantado:
em quem acreditar? A médica inclusive me garantira que seu colega da Santa Casa
corroborava com as mesmas conclusões. Mas e se o diagnóstico de ambos resultasse
da inconsequência acusada pela amiga? Não é médica, mas além da larga
experiência, acompanhava diariamente ao meu pai. E é amiga!
De um lado a confiança na amizade
e de outro tentava imaginar como impor diagnóstico a um médico. Da forma que
José Serra se impôs ao Heródoto Barbeiro quando o jornalista questionou a
exorbitância cobrada nos pedágios do estado?
Amanheci a terça-feira no portão
da entrada da Santa Casa que a amiga indicou ser a utilizada pelo médico, pois
sabia que uma vez lá dentro teria de contar com a eventualidade de encontrá-lo
no fumódromo e não sabia dos hábitos tabagistas daquele que acompanhara as
internações de meu pai.
Dei a incrível sorte de naquele
dia encontrar um porteiro solidário que, por interesse humano praticamente
extinto em Ubatuba e restrito às raríssimas almas caiçaras que ali ainda
insistem em sobreviver, às 9 horas me acenou de dentro do vidro da guarita para
avisar que às terças-feiras aquele médico dá plantão em uma cidade
vizinha.
Eu estava
perdido. Meu pai morreria!
Pelo telefone minha irmã (nessas
alturas assumira em Sônia a irmã que nunca tive) me tranquiliza e pede que
aguarde a ligação da assistente social do Hospital do Servidor. Não preciso
esperar muito e a moça informa que uma ambulância já está a caminho para
resgatar meu pai. Mas explicando que será levado para exames clínicos num
laboratório conveniado, informa que se os resultados não justificarem internação
será devolvido para à instituição de onde seria retirado.
Recordo as palavras da médica, mas
impossível não confiar na experiência das amigas, afinal foram elas que me
ajudaram desde o começo, há duas semanas. Por qual razão me enganariam? Jamais
agiriam como políticos que pegam carona na popularidade daqueles a quem se
opuseram. Isso foi um maneirismo de José Serra ao usar a imagem do bem sucedido
mandado de Lula, mas minhas amigas não são demagogas.
Embarcamos na ambulância por volta
das 20 horas. Mais tarde o vizinho e amigo também José, mas pessoa simples e
honesta, contará que naquela sua última visita enquanto aguardávamos a
ambulância meu pai sussurrou-lhe que fugiríamos num trem.
Durante toda a viagem ele falou
incongruências engraçadas e infantis, obrigando a me curvar sobre sua boca para
escutá-lo e manter um diálogo que o fizesse esquecer as correias que o prendiam
à maca: “- Alguém fez coisa muito errada em meu nome.” “- Por que pai?” “- Se
não, não me levariam nesse trem amarrado desse jeito!”
Era 1 hora da manhã do dia 11 de
abril quando demos entrada à Clínica Clemford, em Santos. Na recepção, o
enfermeiro que nos acompanhara na viagem relatou que encontrara meu pai colocado
numa poltrona totalmente inapropriada. Tentei explicar que fora para evitar que
caísse e retrucou afirmando ser muito simples e fácil improvisar uma grade em
qualquer cama convencional.
Cansado, retornei à entrada da
clínica na tentativa de reconhecer em que ponto da cidade de Santos estava.
Periferia, à margem da saída para São Paulo. O porteiro me contou que na noite
anterior mataram um policial na esquina, em frente à uma casa de shows funk.
Comentei qualquer coisa sobre a possibilidade de guerra entre as policias civil
e militar, conforme uma séria de reportagens da TV BAND. O rapaz comentou algo
sobre o PCC e lembrei o sequestro do estado mais risco da federação no governo
anterior de Geraldo Alckmin. Consequentemente também lembrei do seu apoio
político a um líder da mesma facção, conforme documentado nestas
imagens:
Impossível dormir naquela noite.
Aguardando a confirmação da transferência de meu pai ao Hospital do Servidor,
passei o tempo lucubrando sobre a inconsequência de um eleitorado que insiste em
manter os mesmo podres poderes apesar do escândalo dos sanguessugas, da máfia
das ambulâncias, do Daniel e da Verônica Dantas, da privataria, do Cachoeira, da
Vila Pinheirinho, do Naji Nahas, da invasão da USP pela PM, etc., etc.,
etc...
Sem dúvida tem razão o amigo que
me escreve lembrando que a situação vivida por meu pai reflete um sistema de
saúde pública em degradação muito antes do governo tucano, mas o que ora me
espanta não são as progressões e os retrocessos dos atendimentos às inúmeras
mazelas promovidas ao longo de décadas de governos de políticos inconsequentes.
No momento o que mais me preocupa são as consequências, as influências do
péssimo comportamento desses políticos na degradação do comportamento do cidadão
brasileiro, do ser humano de nacionalidade brasileira.
Naquela noite conclui que muitas
vezes a inconsequência é tão inocente, tão desprovida de maus propósitos ou
intenções que o próprio inconsequente recorre a um mito, como o da Maldição de
Cunhambebe, para explicar o que não consegue admitir em si. Durante anos
desculpei minhas inconsequências alegando um pretenso atavismo italiano: “deu os
cinco minutos!”. Foi a sabedoria de uma japonesa que me alertou de que
consumiria toda minha vida em sucessivos 5 minutos de
inconsequências.
Quando se trata de política,
inocente ou não, o inconsequente sempre será a vítima de si próprio. Mas não o
único, conforme pude constatar no início da tarde do dia seguinte, 12 de abril,
quando após uma bateria de exames o diretor da clínica adentra o quarto em que
nos alojaram para anunciar que de acordo com os resultados daqueles exames, como
já anunciado pelos médicos de Ubatuba, não havia qualquer motivo para meu pai
ser encaminhado a internação.
Balbuciei perguntando sobre as
plaquetas e estranhou. Problema algum com plaquetas, apenas leve anemia
provocada por recente insuficiência alimentar, provavelmente devido ao estado de
semi-inconsciência. Insisti: “- E o coração inchado? A severa infecção
urinária?”
Olhou-me desconfiado e
interpretando erroneamente minha ansiedade explicou que a clínica seria
ressarcida pelo transporte e exames de meu pai independente de indicação para
internação ou não. E que seria falta de ética pretender expor uma pessoa
saudável aos riscos de contaminação hospitalar. O coração estava em dimensão
naturalmente diferente de quando tinha 50 anos, como então já teria sido
diferente de quando tivera 25.
A progressão do tratamento à infecção foi considerado
satisfatória e podendo ter continuidade em qualquer ambiente em que o
acomodasse. Por fim, encaminharia meu pai para o lugar de onde veio.
Apesar de envergonhado, pergunto
pela possibilidade de aguardarmos mais quatro dias, explicando que então minha
irmã confirmaria a internação de meu pai numa clínica geriátrica em Guarulhos e
evitaríamos submetê-lo a outra viagem. Concordou com apenas mais uma noite,
lembrando que pela natureza daquele estabelecimento não tinham sequer como me
oferecer um lugar para tomar banho. Só então me dei conta que deveria estar
fedendo ao suor do calor de Santos por tantas caminhadas até o telefone público
na distante esquina da quadra, aonde novamente me dirigi ligando a cobrar para a
Sônia, pedindo que avisasse ao pessoal do lar de idosos de Ubatuba sobre nosso
retorno.
Fiquei de confirmar depois e
retornei ao quarto. Num momento meu pai faz menção de levantar da cama e o
contenho: “- Mas quero ir ao banheiro, filho!” Expliquei que não podia, Não
compreendeu o motivo e tive de lembrá-lo que não podia andar. Perguntou a razão
e contei que estava provido de fralda geriátrica. Espantou-se: “- Então estou
assim?” Como desde então nunca mais tentou sair da cama, conclui que não caíra
por sonhar que nadava, mas apenas por não saber que não podia andar.
Foi quando comecei a tentar
imaginar o que ocorrera com minhas amigas. Precipitação? Falta de percepção?
Excesso de zelo? Ausência? Descontrole?
Percebendo-me preocupado e sem
saber o real motivo, o pai informa ter um dinheirinho guardado no banco de sua
poupança. Expliquei-lhe todas as providências que tomara por suas pequenas
economias. Comentou e concordou com tudo, me agradecendo.
A caminho do telefone público para
confirmar a transmissão da notícia de nosso retorno, é que me dei conta de sua
vertiginosa recuperação intelectual e até mesmo da voz. Apesar de não terem lhe
administrado nenhum remédio, em menos de 24 horas já não tinha aquela expressão
abobada, sua voz era firme e até lembrava o banco onde mantinha conta
poupança!
Surpresa ainda maior me deu Sônia
pelo telefone: a instituição de Ubatuba dizia que a vaga fora
ocupada.
Depois de imaginar as primeiras
providências a serem tomadas para acomodar meu pai na sala de sua casa, de onde
poderia melhor vigiá-lo estando na cozinha, pretendi ligar à Sônia para que
telefonasse ao vizinho Zé. Ele ficou com as chaves da casa e queria dizer à
Sônia que lhe telefonasse pedindo o favor de retirar os móveis, pois
dependeríamos da disponibilidade de ambulância e não havia como prever se
chegaríamos de dia ou já noite. Eram cerca de 17:30 quando quis sair para esse
telefonema e estranhei a prematura posição de meia porta a encobrir a passagem
que me foi impedida com a advertência de toque de recolher ordenado pelos
traficantes, em represália à represália da polícia por aquela morte que o
porteiro relatou na noite anterior.
Sem dormir mais uma noite, ouvia
os plantonistas contabilizando “- Já morreram 3!”. Logo depois: “- Mais dois em
tal rua”. “- Outro em tal lugar”. Quando chegaram a 6 consegui encontrar um
tapa-ouvido.
Em outro momento confiro os laudos
dos exames médicos da Santa Casa e que me foram entregues ao sairmos do lar de
idosos de Ubatuba. Não pretendia entendê-los, mas precisava passar o tempo de
alguma forma e descubro que ao lado da coluna das porcentagens e medidas
aferidas, há outra de valores de referência.
Posso imaginar que se cruzadas as
pequenas diferenças dos resultados de alguns poucos exames aos valores de
referência para indivíduos do sexo masculino da idade de meu pai, possam
significar alguma apreensão, mas no tão alardeado item das plaquetas em todos os
laudos a correspondência se mantém na média indicada. Comecei a desconfiar que
pela forma que manipulou esta informação, minha amiga tem forte talento para
jornalista dos órgãos de imprensa que apoiam os políticos tucanos.
Enfim, quando chegou a hora
apropriada para ligar para a Sônia, minha irmã já havia conseguido uma casa de
acolhimento de pessoas idosas no seu bairro. O valor da mensalidade acima dos
rendimentos de meu pai, mas a única solução para o momento.
Chegamos ali cerca de 9 horas da
noite. Antes de entrarmos Sônia me alertou da simplicidade do lugar que em
verdade me pareceu soturno para não dizer tenebroso. Despedimo-nos de meu pai e
mesmo confessando à irmã a má impressão que me provocou, considerei que talvez
fosse preconceito, pois o importante mesmo seria as pessoas serem carinhosas ou
ao menos não serem grosseiras.
Na visita do dia seguinte logo
cedo, a alegria dos demais anciãos ali alojados me deixou mais tranquilizado,
mas voltei à Ubatuba amargurado, triste. De uma tristeza que ainda me
acompanhará por muito tempo e tento amenizar com este relato e análise.
Não estou triste por meu pai.
Sônia lamentou por termos sido obrigados a despender mais do dobro do dinheiro
com que pagaríamos a internação de meu pai em Guarulhos, na segunda-feira, 16 de
abril. Não conheci, mas ela se empolgou com as instalações e equipamentos
daquela instituição que nos cobraria uma mensalidade correspondente a 70% da
pensão previdenciária recebida pelo pai. Sem dúvida será bastante difícil e
complicado mantê-lo onde está, mas na volta de Ubatuba fui entregar que lá fui
buscar e então tive oportunidade de conhecer melhor o pessoal que ali trabalha e
administra: duas irmãs enfermeiras. O marido de uma das enfermeiras, enorme e
forte, é técnico de enfermagem. Todos trabalham em hospitais e se revezam ali na
casa.
É a casa da família da irmã
casada, com seus filhos e outra irmã responsável pela cozinha. Todos
maranhenses. Há também a participação diária de outra enfermeira: uma
baiana.
Recebem orientações de uma
nutricionista e visitas periódicas de médicos. Um dos médicos solicitou
tomografia da cabeça de meu pai, pois sua acelerada recuperação desde que ali
chegou dá a impressão de que não foi acometido por AVC. Afora a impossibilidade
de movimentação e sustentação de seus quadris, não há qualquer outra sequela.
Fala normalmente, tem força e precisão no movimento dos braços e das pernas. Por
vezes a memória se confunde como sempre lhe foi comum acontecer, mas se dá conta
e ri de si próprio. Durante o dia aboliu as fraldas geriátricas, pedindo para
ser levado ao banheiro sempre quando sente necessidade.
Ali, é o “seô
Delcio”, mas naquele gostoso sotaque nordestino.
Talvez estivesse triste pelas
minhas amigas, mas as conheço e sei que não seriam inconsequentes e mesquinhas
ao ponto de não considerarem, sequer, que paguei para meu pai permanecer ali na
instituição que uma delas dirige, até o dia 20 de Abril. Se nos expulsaram dez
dias antes, algum motivo muito maior deve ter havido e não acredito que seja a
Maldição de Cunhambebe.
Estou
convencido de que Anchieta ou Serra, a maldição partiu mesmo foi de um José.
*Raul
Longo é paulistano,
jornalista e ficcionista, Raul Longo reside em Sambaqui
(Florianópolis ) desde 1997. Começou a atividade profissional em
1967 publicando contos infantis na revista Recreio (Editora
Abril).
Nas
décadas seguintes atuou em diversos veículos da imprensa alternativa. Foi
repórter, redator, articulista e editor de jornais e revistas em São Paulo,
Salvador, Recife, Fortaleza, Campo Grande, Rio de Janeiro e Ubatuba. Hoje com 59
anos, autor de livros, publica a maior parte da produção em sites e
blogs.
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