16/4/2012, Programa “World Tomorrow” [n.1, Russia
Today]
Vídeo
e entrevista transcrita e traduzida pelo pessoal da Vila
Vudu
JULIAN
ASSANGE: Essa semana, recebo um convidado, que nos
fala de lugar não revelado no Líbano. É das figuras mais extraordinárias do
Oriente Médio. Combateu muitas batalhas armadas contra Israel, e agora participa
da luta internacional, na Síria.
Quero
saber por que é chamado de “Combatente da Liberdade” por milhões e, ao mesmo
tempo, de “terrorista”, por outros milhões. Essa é sua primeira entrevista para
o ocidente, desde a guerra Israel-Líbano, de 2006. Seu partido, o Hezbollah,
participa do governo libanês. Temos conosco hoje o secretário-geral do
Hezbollah, Said Hassan Nasrallah.
JA:
O senhor está pronto?
Nasrallah:
[em inglês]
Sim. [em árabe] Estou pronto.
JA:
Qual é sua visão sobre o futuro de Israel e Palestina? O que o Hezbollah
considera uma vitória. Se o senhor obtiver essa vitória, o senhor se
desarmará?
Nasrallah:
[entende a pergunta e responde em árabe. Pelo intérprete:] O estado de Israel é
um estado ilegal, estabelecido a partir da ocupação de terras que têm dono, ali
estabelecido pela força, cometendo massacres contra palestinos, que foram e
continuam a ser expulsos. Basicamente, muçulmanos e também cristãos. O processo
atual não faz justiça a ninguém, não cria justiça. Se sua casa é ocupada pela
força, ela não passa a ser de outro, porque permaneça ocupada por 15 ou 100
anos, só porque [o ocupante] é mais forte, nem a propriedade é legalizada pelo
transcorrer do tempo de ocupação. Essa é nossa visão ideológica, nossa visão
legal, não é visão religiosa. Acreditamos que a Palestina pertence aos
palestinos.
Mas
se você quiser combinar ideologia e lei, e a realidade política que temos, quero
dizer que a única sedução... Não queremos matar ninguém, não queremos qualquer
propriedade injusta, queremos restaurar a justiça, a única sedução é
restabelecer a justiça, estabelecer um estado nas terras palestinas, em que
judeus e muçulmanos e cristãos vivam em paz, num estado
democrático.
JA:
Israel diz que o Hezbollah lança foguetes em áreas civis. É
verdade?
Nasrallah: Nos
últimos anos, desde 1947, quando Israel foi criada em terras palestinas, Israel
bombardeia áreas civis no Líbano. Na Resistência, nos dez anos, entre 1982 até
1992, nós começamos a reagir, mas exclusivamente para que Israel parasse de
atacar nossas populações civis. Em 93 houve um acordo, indireto, entre a
Resistência e Israel, que foi reafirmado em 1996, que tornava claro que os dois
lados parariam de atacar civis: se vocês pararem de atacar nossos civis, nós
também pararemos os ataques contra vilas e cidades. O Hezbollah tentou criar um
equilíbrio de contenção, para evitar que Israel continuasse a atacar civis no
Líbano.
JA:
Segundo WikiLeaks [telegramas diplomáticos] da embaixada dos EUA no Líbano, o
senhor estaria chocado com a corrupção dentro que crescia no Hezbollah, porque
alguns membros andavam dirigindo SUV, usando roupas caras, comprando comida
desviada .....Isso seria consequência óbvia de o Hezbollah ter-se envolvido na
política eleitoral no Líbano?
Nasrallah: O que
diziam sobre esse fenômeno não está certo. É parte dos boatos que querem usar
para desacreditar o Hezbollah, distorcer nossa imagem, é parte da guerra que a
mídia move contra nós. Diziam que nós operávamos uma máfia, o tráfico de droga
em todo o mundo. Essas são as coisas contra a qual, também por nossa religião,
nós combatemos. Eles disseram muita coisa sem qualquer fundamento. Em primeiro
lugar, nada disso é correto. Em segundo lugar... Seja
como for, é fenômeno limitado. Mas a razão disso é que houve muitas famílias
ricas que, no passado, não apoiavam o Hezbollah, sua linha ou sua ideologia ou
seu programa. Depois de 2000, quando da Resistência, e o Hezbollah surgiu como
linha de defesa do Líbano, foi como uma espécie de milagre, e criou grande
choque na sociedade libanesa. Como seria possível que um pequeno grupo, tenha
resistido durante 33 dias, sem ser derrotado pelo mais poderoso exército da
região? Quero dizer: vários grupos da sociedade começaram a considerar-se parte
do Hezbollah, ou apoiadores do Hezbollah, em vários casos grupos de muito
dinheiro... Não é verdade. Disseram que esse fenômeno estaria dentro do
Hezbollah, mas não é absolutamente verdade, digo com toda a confiança, a partir
da informação que tenho.
JA: Por que o senhor apoiou os levantes da
Primavera Árabe, na Tunísia, Iêmen, no Egito e noutros países, mas não na
Síria?
Nasrallah: Por
razões muito claras. Em primeiro lugar, em princípio, não interferimos em
estados árabes, e essa tem sido nossa polícia. Houve desenvolvimentos no mundo
árabe, muito sérios e muito importantes. Por exemplo, havia regimes que
absolutamente não toleravam qualquer oposição. Na Síria, todos sabem que o
regime de Bashar Al-Assad apoiou a resistência no Líbano, apoiou a resistência
na Palestina, não cedeu às pressões de Israel-EUA, isso é, é um regime que
serviu muito bem à causa dos palestinos. Nossa opinião é que a solução para a
Síria é diálogo e reformas a serem feitas, porque a alternativa a isso, dada a
gravidade da situação na Síria, é guerra civil, exatamente o que os EUA e Israel
desejam para a Síria.
JA: No fim de semana, houve mais 100 mortes em
Homs. Morreu também uma jornalista com a qual estive há um ano, Mary Colbin.
Entendo sua lógica, de que não se pode destruir um país, que o melhor é
reformá-lo, se possível. Mas o Hezbollah tem algum limite? Quantos mortos, até
que o Hezbollah decida que basta?
Nasrallah: Desde
o começo dos eventos na Síria, tivemos contato constante com os sírios: falamos
como amigos. Para nos aconselharmos uns aos outros. Sobre a importância das
reformas. Desde o começo. Eu pessoalmente me convenci de que o presidente
Al-Assad estava muito disposto a promover reformas radicais e importantes. Isso
nos deu segurança para tomar as posições que tomamos. Em mais de uma ocasião,
publicamente, dissemos isso. Disse também em muitos encontros com líderes
políticos libaneses e outros políticos árabes: estou convencido de que o
presidente Al-Assad está disposto a promover reformas, realistas, legítimas. Mas
a oposição também tem de aceitar o diálogo e desejar reformas. Tivemos contato
também com pessoas da oposição (é a primeira vez que digo isso), para
encorajá-los a facilitar o diálogo com o regime. Mas a oposição rejeitou o
diálogo. Desde o início, temos um regime disposto a fazer reformas e preparado
para o diálogo, e uma oposição não está preparada para o diálogo, para as
reformas, que só está interessado em derrubar o governo, o que é um problema. O
que está acontecendo na Síria tem de ser olhado com dois olhos, não com um olho
só. Há grupos na Síria que já mataram muitos civis.
JA: O que se deve fazer para deter a matança na
Síria? O senhor falou sobre diálogo, e é fácil falar de diálogo. Mas que medidas
práticas se devem tomar para deter o derramamento de sangue na
Síria?
Nasrallah: Ainda
sobre a questão anterior, há uma coisa que quero dizer: há estados árabes que
oferecem armas e dinheiro e estimulam a guerra na Síria. Alguns estados, e de um
lado só. É questão muito grave. Todos ouvimos falar de Zawari, líder de
Al-Qaeda, que também deseja guerra na Líbia. Há combatentes da Al-Qaeda que já
chegaram à Síria e querem fazer da Síria campo de batalha. Há países que
fornecem armas e dinheiro, para sustentar a guerra na Líbia. Disse isso há
poucos dias: há estados árabes dispostos a discutir com Israel por anos a fio,
dez anos, vinte anos, ouvir tudo que Israel queira dizer, mas não estão
dispostos a dialogar por um ano, nem alguns meses, com a Síria, em busca de uma
solução política para a Síria. Isso não faz sentido
algum.
JA: O senhor estaria disposto a fazer uma
mediação entre os grupos da oposição e o regime de Assad? As pessoas confiam que
o senhor lá estaria como mediador, não como agente dos EUA, dos sauditas ou de
Israel. E será que confiariam que o senhor não estaria lá como agente do governo
de Assad? E se pudessem ser convencidos, o senhor aceitaria negociar a
paz?
Nasrallah: A
experiência de 30 anos de vida do Hezbollah mostra que somos amigos da Síria,
não agentes da Síria. Houve períodos da vida política do Líbano, em que nossa
relação com a Síria não foi boa, tivemos problemas com a Síria. Os grupos que se
beneficiavam da influência da Síria no Líbano, nos fizeram oposição. Quero
dizer, somos amigos, não agentes da Síria. Vários segmentos da oposição síria
sabem disso e todas as forças políticas na região sabem disso. Isso,
em primeiro lugar.
Em segundo lugar, quando eu disse que apoiamos uma solução
política, há muitos grupos que não querem aceitar qualquer contribuição para
chegar a uma solução política. Já disse aqui que contatamos alguns grupos da
oposição, que recusaram qualquer diálogo com o regime. Se quiserem, teríamos o
máximo prazer em mediar negociações de paz. E temos pedido a outros que
contribuam para uma solução política.
JA: Acho que esses grupos de oposição
considerariam mais confiável a mediação do Hezbollah, se vocês dissessem ao
regime Al-Assad, que o Hezbollah tem um limite. O regime sírio está livre para
fazer o que quiser, ou há algo que o Hezbollah não
aceitará?
Nasrallah: Claro.
Acho que o presidente Al-Assad tem limites que não poderá ultrapassar, como
nossos irmãos sírios também têm. O problema é que os combates continuam. Cada
vez que um lado recua, o outro lado avança. E isso vai continuar enquanto
permanecerem fechadas as portas da negociação.
JA: A Tunísia tomou uma posição firme que já
não reconhece o regime sírio. Por que a Tunísia tomou essa posição de separar-se
do regime sírio?
Nasrallah:
Acredito que essa posição, tomada em Túnis ou onde for, tenha sido tomada porque
trabalham com informação incompleta, não quero dizer incorreta, vou dizer
incompleta. Claro que também há informação incorreta, apresentada aos governos
árabes e ocidentais. Já disseram que o regime cairia em questão de horas. E
vários quiseram ser parceiros dessa vitória antecipada. Também não escondo minha
crença de que vários desses novos governos, que acabam de passar por um duro
teste, estejam convencidos de que não é hora de entrar em confronto com os EUA e
o ocidente. E devem estar pensando que é melhor acalmá-los e fazer como dizem,
sem criar problemas.
JA: Vocês organizaram uma rede internacional de
televisão, a rede Al-Manar. Os EUA censuraram a televisão libanesa, que está
proibida e não é vista nos EUA. Ao mesmo tempo, os EUA declaram-se “um bastião
da livre expressão”. Por que, em sua opinião, o governo dos EUA tem tanto medo
da rede Al-Manar?
Nasrallah: Porque
querem poder continuar a dizer ao povo que o Hezbollah é grupo terrorista,
organização que assassina e mata. E não querem que o povo nos ouça. Em qualquer
julgamento, o acusado deve ter o direito, no mínimo, de defender-se. Mas o
governo dos EUA nos acusa e nos nega o direito básico de nos defendermos, de
apresentar nossos argumentos ao povo do mundo.
JA: Como comandante de guerra, como o senhor
consegue manter seu povo unido, ante o fogo
inimigo?
Nasrallah: No que
nos diz respeito, a força principal é que temos um objetivo claro, objetivo
humano, moral, baseado na fé e patriótico. Não havia o que discutir. Tratava-se
de libertar o Líbano, de uma ocupação. O Hezbollah foi constituído para isso.
Não estamos no governo para competir por poder. Da primeira vez que participamos
do governo, não fomos movidos por ambição política: só entramos para o governo,
em 2005, não em busca de poder político, mas para dar melhor proteção à
resistência. Tínhamos medo de que o governo viesse a tomar medidas erradas em
relação à resistência. Quando se tem um objetivo claro e correto, quando se tem
claras as prioridades, o que interessa é manter as forças unidas, superar as
rivalidades, em nome do objetivo. A partir disso, temos nos mantido afastados de
discussões infindáveis. Em muitos casos, evitamos opinar, para não nos envolver
em questões secundárias e afastar de nosso objetivo, de proteger o Líbano contra
Israel. Porque ainda entendemos que o Líbano está
ameaçado.
JA: Queria voltar à sua infância. Sobre suas
memórias e sobre como afetam seu pensamento
político.
Nasrallah:
Naturalmente. Nasci e vivi, por 15 anos, em Beirute leste. As
características dessa região, naturalmente, influenciaram minha personalidade.
Uma das características dessa região era a pobreza. Outra, que ali viviam
muçulmanos xiitas, muçulmanos sunitas, cristãos, armênios, curdos, e também
libaneses e palestinos. Nasci e fui criado em ambiente muito variado, muito
misturado. Naturalmente, o que conheci ali me tornou muito alerta e preocupado
com a Palestina. Todos os palestinos que viviam perto de nossa casa haviam sido
expulsos, vinham de Haifa, Acca, Ramallah, Jerusalém... Nasci e fui criado nesse
ambiente.
JA: Li que uma história engraçada, sobre o
senhor falando sobre codificação e decodificação dos israelenses. Achei
interessante, porque sou especialista em encriptação e
WikiLeaks vive sob total vigilância. O senhor lembra-se dessa
história?
Nasrallah:
Lembro. Eu estava falando sobre como a simplicidade pode derrotar a
complexidade. Por exemplo, o exército de Israel usa tecnologias e armas
altamente complexas e equipamentos complexos, na sua comunicação. Mas a
resistência é basicamente popular. A maioria dos jovens são nascidos em
fazendas, em vilas, comunidades agrícolas. Basicamente, usam
walkie-talkies, aparelhos muito simples. Quando usam códigos, são códigos
baseados na gíria e na linguagem que usam em casa, em suas comunidades. Quem
ouça, com complexos aparelhos e sistemas de decodificação e computadores, para
decodificar aquela linguagem... fica perdido, a menos que viva durante anos,
naquelas comunidades. Eles usam, por exemplo, palavras que só se usam em suas
vilas, dizem coisas como, “a panela da cozinha”, o “pai da galinha”... E lá
ficam os especialistas israelenses, com aquela aparelhagem ultrassofisticada,
tentando decifrar quem será o “pai da galinha”... [risos]. Não daria muito
certo com WikiLeaks, mas... [risos]
JA: Vou fazer uma pergunta de provocação, mas
não é pergunta política. O senhor enfrentou a maior potência do mundo, lutando
contra a hegemonia dos EUA. Alá, ou a noção de um Deus, não será a mais absoluta
superpotência e o senhor, como combatente da liberdade, não teria o dever de
lutar para libertar a humanidade do conceito totalitário de um deus
monoteísta?
Nasrallah
[sorri]:
Nós cremos que Deus Todo Poderoso nos criou e nos deu corpo e capacidades
espirituais psicológicas, que chamamos instinto. Instinto de dizer a verdade, o
instinto diz que dizer a verdade é bom; mentir é mau; a justiça é boa, a
injustiça é má. Ajudar quem precisa, defender o próximo é uma boa causa. Atacar
os outros, destruir sua casa, derramar sangue é horrível, é muito mau. A questão
de resistir à hegemonia dos EUA ou resistir à ocupação, ou resistir contra
qualquer ataque é questão moral, instintiva, humana, e todos concordam quanto a
isso. Nesse sentido, os princípios morais e humanos são consistentes com as leis
do universo. As religiões abraâmicas não pregam nada que contradiga a mente ou o
instinto humano, porque o criador das religiões é criador também dos seres
humanos. As duas coisas têm de ser consistentes. Se numa casa ou num país, há
dois líderes, eis a receita da ruína. Como o universo aí estaria, nessa
maravilhosa harmonia, por bilhões de anos, se houvesse mais de um deus? O
universo já estaria em pedaços. Mas não impomos a religião a ninguém. O Profeta
Abraão sempre favoreceu o diálogo, a argumentação com evidências. É o que também
defendemos.
JA: Muito obrigado, Hassan Nasrallah. Obrigado
também aos nossos intérpretes. [Créditos
encobertos]
Poxa! Excelente artigo camarada!
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