23/4/2012, Nicholas Lemann, New Yorker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Nicholas Lemann |
“Alguém terá de achar um jeito de
costurar uma coalizão de diferentes, pequenos grupos de interesses os quais,
cada um do seu jeito, preocupam-se profundamente com a desigualdade, para que,
juntos, pressionem Washington a deslocar-se na direção de políticas específicas.
Não é trabalho agradável. Mas para quem entenda que o governo é o melhor
instrumento para enfrentar a desigualdade, esse trabalho é hoje moralmente
urgente.”
A mudança mais espantosa na
sociedade norte-americana na geração passada – mais ou menos desde que Ronald
Reagan foi eleito presidente – foi o aumento da desigualdade de renda e riqueza.
Timothy Noah, em The Great Divergence : America’s Growing Inequality Crisis and
What We Can Do About It (Bloomsbury), bom guia geral para o assunto, conta
que, em 1979, membros dos muito comentados “1%” detinham 9% de toda a riqueza
pessoal. Hoje, os mesmos detêm 25%! E quanto mais para cima se anda na pirâmide,
mais os ganhos aumentam. Os 10% mais ricos dos 1% detêm cerca de 10% da renda
total, e em um centésimo do 1% mora 5% da renda total. Embora a Grande Recessão
tenha sido mais dura na base da pirâmide, a recuperação de modo algum beneficiou
os mais pobres. Em 2010, 93% dos ganhos do ano foram diretamente para o 1% mais
alto da pirâmide.
Dado que os ricos são muito mais
pobres de votos que de dólares, seria de supor que os 99%, em ano eleitoral,
estariam atentos à política, para conseguir reaver parte, que fosse, do que lhes
foi tirado, e que a questão da desigualdade estaria em todos os cartazes. Até
agora, não se viu nada disso.
In America, financial inequality has soared over the past few decades. But the issue has had surprisingly little political traction |
Occupy Wall Street e outros movimentos
assemelhados conseguiram que o presidente Obama abraçasse retórica mais popular,
mas não se vê sinal de que Occupy
venha a converter-se em ativa força política, como o movimento Tea Party. Houve um momento, durante a
campanha Republicana nas primárias, quando rivais de Romney, como Newt Gingrich,
tentaram roubar votos dos que estavam à frente, deblaterando contra Wall Street
e a igualdade privada, mas também não durou muito. A política parece ter
azedado. Apesar disso, grande parte do descontentamento geral dirige-se contra o
governo – o governo que conseguiu impedir que a recessão virasse
depressão.
Por que a política não trata das
questões que se esperaria que tratasse?
Tradicionalmente, a classe tem
sido figura mais apagada nos EUA que na maioria dos países ocidentais,
supostamente porque os EUA, embora economicamente mais desiguais e mais duros no
falar, eram socialmente mais iguais, mais diversos e mais democráticos, e
melhorem em dar oportunidades de progresso às pessoas comuns. Foi o que Alexis
de Tocqueville descobriu nos anos 1830s, e o argumento perdurou. Pois, agora,
também já começa a desgastar-se. Durante 50 anos, de 1930 a 1980, a desigualdade
econômica decresceu significativamente, sem, por isso, ameaçar o
“excepcionalismo norte-americano”.
Por isso também, é difícil não ver
o quanto a desigualdade cresceu depois dos anos 1980s. Por mais que se acredite
que tudo que qualquer boa sociedade exige é – segundo o muito discutível mantra
conservador – que todos os cidadãos tenham oportunidades iguais, é impossível
não se abalar com o que se vê hoje. A oportunidade é cada vez mais ligada à
educação, e o desempenho educacional é ligado à renda e à riqueza. No que tenha
a ver com mobilidade social entre gerações, os EUA aproximam-se hoje do fundo do
poço, entre as nações desenvolvidas.
Como competidores de concursos de
culinária de televisão, os autores aos quais se oferecem os mesmos ingredientes
socioeconômicos fazem coisas diferentes com eles, em termos analíticos, mas, em
geral, ninguém aprova a situação e praticamente todos culpam a
elite.
Charles Murray, em seu novo livro
Coming Apart: The State of White
America, 1960-2010 (Crown Forum),
mostra que os índices de desorganização social na parte inferior da pirâmide da
distribuição de renda – número de pessoas encarceradas, desemprego, divórcio,
filhos havidos fora das famílias – têm aumentado substancialmente. Coming Apartretoma elementos de todos os
livros anteriores de Murray, sobretudo de Losing Ground, de 1984, que contrapunha
uma elite liberal e uma subclasse socialmente disfuncional; mas as diferenças
são eloquentes. Em Losing Ground, a
subclasse examinada era predominantemente negra, e o argumento era que a elite
ajudara a criar aquela subclasse, implantando programas de bem-estar social. Os
pobres reagiram àqueles incentivos perversos, esquecendo-se de uma ética do
trabalho e da família; e o tecido social de suas comunidades desintegrou-se. Mas
o programa social que aparecia como principal vilão de Losing Ground, “Ajuda a Famílias com
Crianças Dependentes”, já nem existe; e Murray já não culpa as políticas
enviesadas, pelos problemas de comportamento dos mais pobres.
Em vez disso, a influência maligna
da elite seria hoje questão puramente de ethos, ou de desafinação moral. A elite
– a qual, na opinião de Murray, vive em isolamento geográfico e social sem
precedentes, absolutamente separada dos pobres e dos trabalhadores – trabalha
muito, pouco se divorcia, é dedicada aos filhos e até é comparativamente mais
religiosa, mas, diferente da elite da Inglaterra Vitoriana, eles não “pregam o
que praticam”. De algum modo, é o que se automanifesta na quebra dos costumes
sociais na extremidade oposta da sociedade.
Coming Apart é, de fato, uma análise da
desigualdade que descarta qualquer programa de redistribuição.
Na opinião de Murray, tentar
desviar recursos que seriam da elite não funciona muito bem, porque (como dizem
Murray e Richard Herrnstein, com mais detalhes, em The Bell
Curve ) a elite é geneticamente dotada de inteligência
superior: dado que os EUA são sociedade meritocrática, e enquanto esse pessoal
continuar a frequentar colégios seletivos, continuar casando, continuar a ter
filhos saudáveis, eles continuarão a dar-se mais bem que os demais. E, seja como
for, a não elite não precisa de dinheiro, na opinião de Murray: precisa é de
melhores valores. Bem pouco de Coming
Apart é dedicado à política governamental.
A elite de Murray vive num
arquipélago de “Super-CEPs”, bairros ricos, como Chevy Chase, Maryland. São um
tipo que nos soa terrivelmente familiar: apoiadores-de-Obama, profissionais
especializados em renovação culinária com titulação acadêmica, os quais,
incapazes de descansar sobre os louros do conhecimento que tornaram
economicamente acessível no momento da concepção aos seus filhos de altos QIs,
continuam obcecados por “educação”.
No livro Power, Inc. (Farrar, Straus &
Giroux) de David Rothkopf, encontramos uma ainda mais exaltada “Superclasse”
– um grupo que Rothkopf introduziu em livro anterior que levava aquele título –
e cujos membros são o tipo de gente que frequenta o Fórum Econômico Mundial, em
Davos. São ricos, com raízes na banqueiragem & business global, não
em comunidades particulares ou conjuntos de valores sociais, e ideologicamente
comprometidos com o livre mercado acima de todas as coisas. Diferente da elite
de Murray, não são só produto de inexoráveis processos naturais. Eles florescem
num mundo que construíram deliberadamente para eles mesmos e do qual,
espertamente, alteraram as regras.
Rothkopf [1], que foi vice-subsecretário de
Comércio do governo Clinton e ganha a vida hoje como conferencista-consultor globe-trotter, escreve como membro
quase-penitente desse grupo.
O livro de Rothkopf é
espantosamente ambicioso. Traça o relacionamento entre estado e mercado –
relacionamento que, diz ele, vem depois do relacionamento entre igreja e estado,
como conflito dominante nas sociedades – do século 13, até hoje. Nos últimos 30
anos, diz ele, adotamos a ideia segundo a qual política e mercado são realmente
aliados: liberdade num campo, significa liberdade no outro. O resultado dessa
ideia, além da crescente influência do business dentro dos [nos EUA, dois]
partidos políticos, foi uma série de políticas que desregularam as moedas e os
sistemas bancários nacionais e tornaram possível a economia globalizada da
Superclasse.
Enquanto isso, a vastíssima
maioria das pessoas ainda vive “localmente” e depende de governos nacionais para
os benefícios sociais, a começar por itens tão básicos quanto moedas estáveis. A
globalização, na forma que tem hoje, reforça um quadro de negócios-empresas
muito grandes que Rothkopf chama de “supercidadãos” e diminui o governo, que
está ficando, na simpática expressão de Rothkopf, “pequeno demais para dar
certo”.
O resultado é que “está
acontecendo uma separação entre os interesses dos supercidadãos e os interesses
da gente comum que vive em torno deles; entre os que representam as ideias do
povo que tem necessariamente de viver dentro de fronteiras e outros, para os
quais fronteiras já não fazem sentido algum; entre os que carecem de empregos e
de fluxos de capital e os que veem pessoas, vilas, cidades e estados como opções
econômicas, parte de um cálculo em constante mutação, no qual reinam a
eficiência e o lucro.”
Rothkopf escreve como grande
estrategista, não como repórter, mas há alguns momentos em seu livro no qual ele
visita membros da Superclasse, seus conhecidos, obviamente, porque já
trabalharam juntos. Ambos, Robert Rubin e Lawrence Summers, explicam a Rothkopf
que a globalização, e a desregulação da finança que ajudaram a fazer quando
estavam no governo, foram inevitabilidades histórica, não escolhas políticas. E
Hank Greenberg, da AIG, descreve, amargurado, o resgate de sua empresa pelo
Estado, em setembro de 2008, como simples meio para preservar os interesses de
Goldman Sachs, que tinha muito dinheiro investido no destino da AIG.
Rothkopf não é muito claro sobre o
que propõe para reverter o desequilíbrio de poder entre governos e mercados, mas
diz com total clareza que, para ele, decisões políticas criaram a situação
atual; e que só outras decisões políticas podem aliviar a situação
atual.
Tony Judt [3] –
que morreu em 2010, de esclerose amiotrófica lateral, doença degenerativa que
destrói o corpo, mas mantém intactos a inteligência e o espírito – partilha com
Rothkopf uma desaprovação insistente da atual apoteose da finança global.
Imobilizado e compreensivelmente em estado elegíaco de humor, ditou seu livro Ill Fares the Land (Penguin) a
auxiliares. Dado que tinha de cobrir muito menos terreno histórico que Rothkopf,
Judt conseguiu olhar bem de perto o desaparecido apogeu da política social
democrática no ocidente, tema que Rothkopf contorna rapidamente, para chegar
logo ao presente. O resultado é uma surpreendente inversão do nosso senso comum
político.
Se há algo que todos pensamos que
sabemos, é que a Grã-Bretanha e os EUA estavam em situação terrível antes que
Reagan e Margaret Thatcher chegassem ao poder: parados, monótonos, inflação
alta, desabastecimento e atrasos, incapazes de qualquer dinamismo, corroídos
pelo fracasso organizacional. Nada disso, diz Judt. De fato, aqueles foram
tempos maravilhosos.
Parte do argumento de Judt só diz
respeito à Europa. Quando os conservadores norte-americanos declaram obsoleto o
“modelo europeu” – como faz Charles Murray – não enxergam o quanto aquele modelo
parecia miraculoso, durante a segunda metade do século 20, aos olhos do
Continente afogado em sangue, porque lá não havia guerra, nem ódios étnicos
públicos, e por serem democráticos e prósperos [2]. Nos EUA, como na Europa, os
benefícios do estado de bem-estar – atendimento à saúde, pensões e
aposentadorias, transporte e educação públicos – nunca existiram como garantias
universais, antes do século 20.
A expectativa de vida aumentou coincidindo com uma
prosperidade mais bem distribuída. As conquistas da socialdemocracia haviam sido
grandes; e seus fracassos, por comparação, relativamente menores.
Judt reconhece que a escolha
individual e o crescimento econômico não eram objetivos primários da
socialdemocracia; a socialdemocracia estava tentando criar ordem e
previsibilidade, construindo sistemas universais que mantinham unidas as
pessoas. Evidentemente, não o incomodava, na sua infância de criança britânica,
só ter tido uma rede de televisão, e estatal, que visava a promover o cidadão;
que todos os táxis em Londres fossem obrigatoriamente pretos; e que os times de
futebol fossem orgulhosamente locais e não comerciais.
O eclipse da socialdemocracia
resultou não de algum fracasso dela mesma, diz Judt, mas de outros fatores –
como o surgimento da Nova Esquerda individualista, da exagerada preocupação de
influentes economistas austríacos como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises com os
perigos de um estado forte; e do inexorável processo pelo qual os beneficiários
da socialdemocracia, à medida que melhoravam de vida, começaram a pensar no
sistema como um peso.
Claro, todas essas considerações
explicariam também por que a desigualdade não floresceu como questão política.
Judt também cita o colapso do comunismo e o fim da Guerra Fria. É claro, em
retrospectiva, que a existência do Império Soviético foi um estímulo para a
socialdemocracia, nos EUA e na Europa, porque havia sido um concorrente
poderoso, cujo principal produto e atrativo de venda fora a generosa provisão
social. Ao ocidente só restou uma alternativa: competir.
Os EUA jamais tiveram uma BBC ou o
Serviço Nacional de Saúde, mas outros traços, hoje diminuídos ou já
inexistentes, da sociedade norte-americana tiveram, de certo modo, os mesmos
efeitos. Antes do final dos anos 1970s, as empresas não eram administradas para
“garantir dividendos” tanto quanto são hoje; e muitas delas ofereciam
estabilidade de-facto vitalícia no emprego e generosos benefícios de saúde e
pensões. A economia dos EUA, mais regulada e localizada, tinha todos os tipos de
ineficiências e de barreiras comerciais, que criavam portos seguros para
instituições como bancos, lojas, empresas de seguros, corretoras de ações por
comissão fixa, e intermediários na cadeia de suprimentos. Os sindicatos eram
mais poderosos. Na “nova economia”, cada linha de negócios tende a ter um ator
dominante, global, sem sindicato, como as empresas Apple, Facebook ou Google.
Judt não era ingênuo a ponto de
crer que as pessoas simplesmente cairiam em si e restituiriam a socialdemocracia
como fora nos tempos do apogeu, mas insiste, como Rothkopf, que temos de
encontrar meios para desviar o poder do mercado e encaminhá-lo de volta ao
Estado.
No topo da maioria das listas dos
liberais de o que fazer a respeito da desigualdade, sempre aparece o sistema de
impostos para redistribuir riqueza – sempre mediante um aumento de impostos para
os mais ricos e para os ganhos de capital. Em The Great Divergence ,
Noah descreve vários possíveis remédios: aumentar os postos de trabalho público,
regular mais fortemente Wall Street,
fortalecer os sindicatos, baratear a educação superior. O presidente Obama, pelo
menos, fez gestos na direção de várias dessas medidas.
Mas se essas são as respostas
naturais, pelo menos de um Democrata, por que esses remédios não apareceram, até
agora, no centro dos debates políticos em ano eleitoral nos EUA?
Esquerda e direita têm respostas
completamente diferentes a essa pergunta.
Pela esquerda, Tony Judt reclamou
que os intelectuais “manifestaram impressionante falta de interesse bem
informado sobre políticas públicas, preferindo intervir ou protestar em tópicos
eticamente definidos, nos quais as escolhas parecem mais claras.” Os jovens com
inclinação para o ativismo podem entender, erradamente, “que porque as vias
convencionais de mudança social estariam absolutamente congestionadas e
fechadas, eles teriam de trocar a organização política pela ação em grupos
temáticos não governamentais, separados uns dos outros por diferentes
concessões.” Campanhas idealistas, orientadas para direitos, consomem quase toda
a energia que sempre, antes, foi empenhada na ultrapassada, velha política
liberal.
Em artigo desalentado e sombrio,
publicado no outono passado em The National Interest ,
o economista de Harvard, Benjamin Friedman assume ponto de vista mais sistêmico.
Sempre que o país esteja em período de estagnação econômica, sugere ele, o
resultado é profunda e amarga fragmentação social; as pessoas tratam de proteger
o que têm contra ameaças de outros vistos como interessados em assaltá-las, e
essa desconfiança defensiva torna-se tema central da política. “A disposição
nenhuma para fazer concessões aos adversários políticos nas questões do dia é
fenômeno muito conhecido em tempos nos quais os participantes de uma sociedade
democrática perdem a noção de que a sociedade está trazendo qualquer avanço
material às suas vidas” – escreveu Friedman.
Os norte-americanos apoiaram
grande expansão do estado durante o New
Deal, mas exclusivamente porque a Grande Depressão tivera impacto
inusualmente amplo: “Os norte-americanos viviam sob a sensação de que todos
estavam desabando juntos – o que absolutamente não se viu na recente crise
financeira, nem na estagnação geral da renda e dos padrões de vida que se
implantaram há mais de uma década.” Agora, portanto, estamos apenas voltando à
situação normal.
As aposentadorias e pensões de
funcionários públicos, que Tony Judt via como força de união social, são hoje –
de Atenas a Madison, Wisconsin – objeto de hostilidade dos que não as têm, e de
proteção feroz, em guerra de barricadas, pelos que as têm. Nada disso contribui
adequadamente para qualquer política que vise a diminuir a
desigualdade.
Mesmo assim, alguns progressistas
com certeza tentaram construir programa político desse tipo. Dylan Ratigan,
âncora do canal MSNBC, faz exatamente isso, em Greedy Bastards: How We Can Stop Corporate
Communists, Banksters, and Other Vampires from Sucking America Dry (Simon
& Schuster). Ratigan começou como repórter de negócios na televisão,
mas, diz ele, enfureceu-se de tal modo, que se mudou para a banda “entrevistas”
do jornalismo. Em seu livro, faz vários movimentos típicos do jornalismo de
noticiário de TV: enfurece-se, supersimplifica, inventa categorias sociais
exclusivamente para poder demonizá-las. Faz política e governo parecerem mais
fáceis do que são, propondo, por exemplo, que os negócios possam ser claramente
divididos entre negócios produtivos e negócios vampiros, que vivem de sangue.
Mas também é fascinado pelos detalhes de como funciona o sistema político.
Analisa políticas públicas para bancos, comércio, moeda, saúde, educação e
energia, mostrando o quanto todas estão erradas e o que fazer para
corrigi-las.
O envolvimento de Ratigan com
detalhes do governo – muito raro entre jornalistas profissionais – só aprofunda
o mistério de por que a política norte-americana é o que é.
Por que mais norte-americanos não
estão tão indignados quanto Ratigan com o mercado de derivativos e a
desvalorização da moeda chinesa? Os militantes do Tea Party encontram combustível para a
fúria nos homens que comandam o Federal
Reserve e na eleição direta de senadores dos EUA, motivo pelo qual essas
questões decolam. Sente-se que um liberal como o presidente Obama luta para
descobrir um modo de falar sobre crise financeira e desigualdade. Tem de haver
algum jeito de fazê-lo, que encontre eco entre muitos norte-americanos, sem
espantar os importantes doadores de dinheiro para campanha eleitoral com os
quais Obama conta entre os 1%, e sem se expor como caricatura de socialista. Tem
de haver um jeito, mas ainda não apareceu.
No campo conservador, Mark Meckler
e Jenny Beth Martin, os fundadores do grupo Tea Party Patriots, declaram em seu novo livro Tea Party Patriots: The Second American
Revolution, que, como proprietários de pequenos negócios, viveram tempos
difíceis durante a crise financeira, mas não querem qualquer ajuda do governo.
Os “Tea Party Patriots” são imbuídos
da ideia de que outras pessoas têm contatos e ligações em Washington e conseguem
facilidades que não merecem; e que gente como eles não têm contatos e ligações;
e que, assim, a única solução possível é desmontar completamente qualquer estado
e qualquer governo.
Nem por isso se deve levar ao pé
da letra o desejo declarado de tantos conservadores, de separar-se completamente
de todos os traços principais dos governos no século 20. Intelectuais de Harvard
como Theda Skocpol e Vanessa Williamson entrevistaram muitos Tea-Partyistas, para escrever The Tea Party and the Remaking of American
Conservatism (Oxford).
Descobriram que os membros do
movimento, que tendem a ser mais idosos, absolutamente não têm qualquer
interesse em renunciar às pensões e aposentadorias que recebem do Estado, nem à
assistência pública à saúde dos idosos (onde, segundo Benjamin Friedman,
consomem-se cerca de ¾ de todos os gastos do governo federal). Nem Ron Paul
reclamou muito do Medicare durante a
campanha dos Republicanos nas primárias. Mesmo assim, para todos, o “governo” é
sempre o vilão. Não é possível que a causa disso seja que todos os eleitores
conservadores de classe média tenham sofrido lavagem cerebral à frente da
televisão, assistindo ao canal Fox
News. Alguma outra coisa deve estar acontecendo.
Até aqui, a abordagem mais
substanciosa, assinada por conservadores, da política norte-americana é Spoiled Rotten: How the Politics of
Patronage Corrupted the Once Noble Democratic Party and Now Threatens the
American Republic (Broadside Books), de Jay Cost, jovem blogueiro e
colunista de The Weekly
Standard.
Cost é pós-graduado em ciência
política pela University of Chicago,
e seu livro cheira a dissertação de mestrado, recalibrada para intervir nos
debates políticos do momento. Seu objetivo é escrever uma história do Partido
Democrata, desde Jackson até o governo Obama – para demonstrar que o partido
perdeu o rumo. Cost não fez qualquer pesquisa original, mas mobiliza quantidade
notável de dados. E produziu uma crítica não caricatural, em alta velocidade, do
liberalismo.
O que há de novidade no trabalho
de Cost é que o autor é treinado para pensar a política não como combate entre
“mocinhos” e “bandidos”, mas como série sempre mutável de alianças que buscam
obter medidas do governo, em resposta às condições do tempo. Isso dá ao livro
alguma real sofisticação; anota habilmente mudanças na coalizão Democrata e os
esforços de presidentes Democratas de usar a política para fortalecer o Partido.
Andrew Jackson inventou o sistema que recompensava apoiadores com empregos no
governo. Franklin D. Roosevelt fez aprovar leis que trouxeram o trabalho e os
afro-americanos para dentro do partido, mas nada fez a favor de aprovar leis que
pusessem fim aos segregacionismos brancos suprematistas no Sul. E assim por
diante.
Mas Cost também quer traçar linhas
conceituais claras entre o tempo (principalmente antes dos anos 1960s) em que
esse modo de fazer política era compreensível, e o tempo (principalmente depois
dos anos 1960s e, especialmente, durante o governo Obama) quando o mesmo modo de
fazer política perverteu-se.
Se a política é entendida em
termos de grupos de interesse, é difícil usar com alguma isenção de espírito
conceitos como “o interesse público” e “o interesse nacional”. O que faz de
alguns, e não de outros, grupos “de interesses especiais” ou (a palavra favorita
de Cost) “clientes”? James Madison, santo padroeiro do pluralismo político
norte-americano alertou, no n. 10 de Federalist, contra “a violência da
facção”, mas estava preocupado tanto com pequenos grupos oprimidos por grandes
grupos como com a possibilidade de que o governo norte-americano não cuidasse do
bem de toda a nação. Madison jamais supôs que um específico ator no sistema
político nos EUA – o presidente ou o comentariato – fosse capaz de discernir
e conduzir o governo na direção dos “interesses permanentes e agregados da
comunidade”.
Não traficou com as noções
modernas de um interesse público imediatamente aparente – mas Cost, embora cite
Madison corretamente - sim, trafica. Oferece formulações superficiais, como
essa: “Identificar o interesse público parece problema difícil. Como saber se
algo é bom para todo o país, ou se é só projeção de nosso autointeresse sobre o
interesse dos demais? Mas, na prática, é quase sempre bem fácil de identificar,
porque algumas questões são obviamente urgentes preocupações nacionais.” Com
isso, Cost consegue descartar as grandes iniciativas do início do governo Obama
– o pacote de estímulo à economia, a lei de atendimento universal à saúde, a
tentativa (fracassada) de obter do Congresso uma lei que limitasse as emissões
de Carbono, o resgate do sistema bancário –, como casos de “clientelismo” que
demonstra(ria)m que os Democratas hoje nada são além de “grupo rachado de
buscadores de lucros” e “ameaça à própria República Norte-americana”.
Os grupos que desencaminharam os
Democratas, segundo Cost, começaram a ter importância dentro do Partido desde a
Grande Sociedade: sindicatos do setor público, gente de Wall Street, feministas, ambientalistas
e membros do Congresso que representam distritos arrastados a ser
maioria-minoria. Quando os modernos Democratas são centristas, Cost os vê como
mais intimamente sintonizados com o interesse público; quando são mais liberais,
os vê como presa do clientelismo. Assim, os primeiros anos do governo Clinton
(por exemplo, no momento do plano (fracassado) de reforma da Saúde), foram
devotados aos clientes; os anos posteriores (por exemplo, o corte da Ajuda a
Famílias com Crianças Dependentes), ao interesse público. Cost oferece a
proposta (não aprovada) de Harry Truman, para a criação de um seguro-saúde
nacional universal, como exemplo de “propostas amplas que teriam beneficiado
todo o país em grande escala.” Mas
Obama apresentou sua proposta de atendimento universal à saúde
“sem considerar o que o grande público desejava”, porque tentava ajudar
“desproporcionalmente os clientes dos Democratas”.
Cost trata os partidos políticos
como inerentemente perigosos, em parte porque os Pais Fundadores não viam os
partidos como elo importante do sistema. Mas, porque os partidos são
necessariamente alianças de eleitorados não uniformes, os cientistas políticos
quase sempre os veem como modo saudável de resistir aos grupos de interesse
único.
É difícil entender uma análise na
qual o partido às vezes é capturado por grupos de interesse, e às vezes não é!
Os liberais devem ler o livro de Cost, mas por motivos diferentes dos previstos
pelo autor: o livro demonstra o quanto é poderoso o impulso para ver como
desinteressada a causa que interessa a você mesmo, e para ver como enviesada e
resultado de ganância, a causa que interessa a outros.
É bem difícil extrair do discurso
diário dos conservadores qualquer ideia clara sobre o que os conservadores têm
contra o programa de Obama. É exatamente o que Cost oferece. Pode-se usar a
lente de Cost e ver que “Obamacare”
não passa de um conjunto de negociatas armadas com empresas privilegiadas de
saúde, que ganham assento à mesa de negociações; que os estímulos e o resgate
financeiro foram meios para ajudar alguns bancos e sindicatos que contribuíram
para a campanha eleitoral de 2008; que a legislação cap-and-trade ambiental foi meio para
recompensar grandes grupos e corporações ambientalistas. Nem os problemas que
subjazem a essas iniciativas e que elas visavam a resolver impressionam Cost
como questões que tenham algo a ver com o interesse nacional: é possível
promover o atendimento universal à saúde como medida que favorece a
desigualdade, mas Cost só vê o que aí seja ação de grupos não majoritários
tentando extrair vantagens do governo.
A conversa liberal tem exatamente
essas mesmas limitações: o impulso para ver as causas conservadoras como
retribuição a grupos de interesse; e para ver os sucessos políticos dos
conservadores como demonstrações de falhas estruturais no sistema político – é
absolutamente irresistível.
Porque grupos com perspectivas
profundamente diferentes dominam a política, a observação de que 99% dos
americanos estão sendo deixados economicamente para trás não tem grande
serventia política. Os 99% são categoria grande demais para ter força política
efetiva.
Por tudo isso, a desigualdade já é
causa política, embora por vias estranhas e inesperadas. (A desigualdade
incomoda Cost e ele chega bem perto de prever que os Republicanos serão o
partido que atacará a desigualdade... porque os Democratas converteram-se no
partido de Wall Street.)
Mas se queremos avançar – e fazer
com que o sistema político tente com seriedade reverter as tendências dos
últimos 30 anos – alguém terá de achar um jeito de costurar uma coalizão de
diferentes, de pequenos grupos de interesses os quais, cada um do seu jeito,
preocupam-se profundamente com a desigualdade, para que, juntos, pressionem
Washington a deslocar-se na direção de políticas específicas. Não é trabalho
agradável. Mas para quem entenda que o governo é o melhor instrumento para
enfrentar a desigualdade, esse trabalho é hoje moralmente urgente.
Notas dos
tradutores
[1] David Rothkopf é sócio de Henry
Kissinger e autor de um impressionante ensaio, “In Praise of
Cultural Imperialism?” [Em defesa do Imperialismo
Cultural – e o ponto de interrogação é retórico], Foreign
Policy, n. 107, Summer 1997, pp. 38-53 (em inglês).
[2] Ideia semelhante a essa parece
ser a que Slavoj Zizek introduz na entrevista a três, com David Horowitz, a Julian Assange, no
programa “The World Tomorrow”, apresentado por Russia Today dia 24/4/2012, que pode ser
visto, traduzido na redecastorphoto,
em: Assange:“Esquerda
e direita, no século 21: Zizek e Horowitz”
[3] Sobre Tony Judt ver redecastorphoto em: “Depois
da Guerra Fria - Eric Hobsbawm sobre Tony Judt”
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