sábado, 28 de abril de 2012

“Front de Gauche”, França: Reinventar a esquerda


Fim da hegemonia da social-democracia

24/4/2012, Yasmine Ryan, Al-Jazeera, Qatar – Entrevista de Raquel Garrido, Front de Gauche
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Raquel Garrido é uma antiga aliada de coalizão do líder Jean-Luc Mélenchon, Frente de Esquerda  [Foto Yasmine Ryan / Al Jazeera]
Paris, França – A candidatura de Jean-Luc Mélenchon à presidência na França, embora não tenha sido vitoriosa, deu à Front de Gauche [Frente de Esquerda], aliança de partidos de extrema esquerda, massiva visibilidade na França.

O candidato da Front de Gauche recebeu menos votos que os esperados, depois de pesquisas que indicavam que poderia ter 16-17% dos votos.

Apesar de a coalizão de esquerda tem obtido 11,1%, o que a pôs em 4º lugar entre dez candidatos, a extrema-esquerda reafirmou-se e voltou a ter espaço na discussão política no país.

Yasmine Ryan (YR), da rede Al Jazeera, entrevistou Raquel Garrido (RG), da Frente de Esquerda francesa, aliada há muito tempo de Mélenchon. Como Mélenchon, Garrido também deixou o Partido Socialista no final de 2008, para engajar-se no novo movimento.

Yasmine Ryan: Você deixou o Partido Socialista bem no início da crise financeira. A crise ajudou a disparar a decisão de separar-se dos Socialistas?

Raquel Garrido: Ajudou, é verdade, porque nós sabíamos que as coisas ficariam cada vez mais difíceis e que teríamos de enfrentar os ataques especulativos e a crise financeira com posição e argumentos mais duros do que os do Partido Socialista e dos social-democratas em geral na Europa.

Mas, de fato, já pensávamos há muito mais tempo em deixar o Partido Socialista. Começamos a questionar nossa estratégia, quando começamos a ver que, na América Latina, já havia governos de esquerda que estavam chegando ao poder e sem os partidos tradicionais da social-democracia.

Ao contrário: muitas daquelas experiências – na Argentina, Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia – estavam sendo feitas por novos partidos. Novos instrumentos políticos organizaram-se fora da social-democracia e dos partidos da esquerda tradicional.

E empregavam métodos radicais, fosse na luta contra o FMI ou nos meios que usavam para remobilizar a sociedade, mediante assembleias constituintes.

A assembleia constituinte é invenção francesa, nascida da Revolução Francesa. Implica afirmar que a soberania não está no monarca, mas no próprio povo.

E de repente, no final dos anos 1990s, o método apareceu usado na América Latina e com considerável sucesso. Vimos aí um sinal de que o movimento social-democrata na Europa estava falhando e não daria o que se esperava que desse, depois do fracasso do estado comunista.

Aprendemos da América Latina a ideia de que estávamos ante dois fracassos: o fracasso do estado comunista e o fracasso da social-democracia europeia. E que a esquerda teria de reorganizar-se, criando novos instrumentos.

Em 2005, na França, tivemos um referendo sobre a Constituição Europeia e o correspondente tratado [pelo qual a França se integraria à União Europeia]. O Partido Socialista decidiu apoiar aquele tratado, mas com a oposição interna de nosso grupo, reunido em torno de Jean-Luc Mélenchon. Fizemos campanha contra o tratado com todos os grupos da esquerda do Partido Socialista, que tinha análise muito clara dos riscos que aquele tratado criava – dentre os quais a evidência de que se baseava em princípios ultra liberais de livre comércio, pró livre mercado, com redução dos serviços públicos.

Fizemos campanha a favor do “não”, naquele referendo, e vencemos. Aquela votação nos deu poder e legitimidade, e vimos que, se ousássemos expor o que realmente pensávamos, se deixássemos para trás as discussões infindáveis e a competição interna dentro do Partido Socialista, se levássemos nossa discussão para a sociedade, teríamos boa chance de conquistar mais votos.

Imediatamente depois fomos convidados a visitar a Alemanha, onde o ex-ministro da Economia, Oskar Lafontaine, deixara o Partido Social-Democrata alemão e criara um novo partido, Die Linke [A Esquerda], em aliança com o ex-Partido Comunista.

Fomos convidados ao congresso de fundação do novo partido, Jean-Luc Mélenchon, Pierre-François Grond e eu. E foi o que acabou de nos convencer que aquela seria a via para avançar, que não havia futuro em permanecer limitados naquelas briguinhas dentro do Partido Socialista.

Demoramos bom tempo para preparar corretamente nossa saída do Partido Socialista e, em 2007, o partido apresentou Ségolène Royal como candidata e ela não conseguiu derrotar Nicolas Sarkozy [naquela eleição à presidência]. Embora o Partido Socialista fosse forte, não se viu nenhuma outra força de esquerda que se opusesse à direita.

Afinal, em 2008, nos separamos dos Socialistas e imediatamente firmamos uma coalizão com o Partido Comunista Francês e outros, uma coalizão de esquerda. Nossa estratégia foi reunir imediatamente os demais partidos de esquerda. Não nos parecia admissível que a esquerda continuasse dividida em pequenos grupos: tinha de ser reunificada.

E é o que temos feito desde então. Conseguimos que todos os grupos apoiassem a candidatura de Jean-Luc Mélenchon à presidência.

YR: Em que medida os movimentos do mundo árabe serviram de inspiração para vocês? Vocês se veem retomando o socialismo?

RG: Sim. Mais do que retomando o socialismo, estamos retomando um veio cultural que há na França, uma identidade cultural básica subjacente e que se resume em “Liberdade, igualdade, fraternidade”.

Para nós, o mais interessante na Primavera Árabe é o fato que, se se considera a Tunísia, mesmo o Egito, o método para mudar o regime é devolver o poder à assembleia constituinte. O poder está voltando ao povo, deixando de ser simples rearranjo interno de grupos. A solução está no povo.

É preciso mudar os governos. Na Tunísia, o regime era uma cleptocracia. Para mudar isso, é preciso engajar o povo. Esse movimento foi nossa verdadeira fonte de inspiração. A América Latina também nos inspirou, mas está muito longe. Túnis está aqui, bem próxima.

A história do socialismo francês sempre foi fundir aquele passado cultural francês revolucionário, com a defesa dos direitos dos trabalhadores e dos sindicatos de trabalhadores.

Colhemos essa bandeira e lhe acrescentamos outros elementos. O principal deles foi a preocupação com questões ambientais.

Decidimos organizar uma verdadeira frente de oposição ao partido do Front Nacional [Frente Nacional, partido da extrema direita liderado hoje por Marine Le Pen, que alcançou a porcentagem recorde de 17,9% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial]. Acho que todos concordam em que só nós abraçamos diretamente essa luta. Os resultados mostram que nossa análise sempre esteve correta: a Frente Nacional é o principal adversário a enfrentar na França. E não bastaria fazer oposição moral e repetir que o racismo é ruim. Teríamos de ter crítica mais precisa contra o programa deles.

E foi o que fizemos. Mostramos que, por mais que a Frente Nacional tente apresentar-se como partido que defende direitos dos trabalhadores, todo o programa deles desmente essa ideia. Se se examina o programa, tudo ali é contra a redistribuição de riqueza, do capital para o trabalho.

A Frente Nacional, no discurso, sempre se apresenta como aliada dos pobres e trabalhadores. Esse movimento é típico do fascismo e da extrema direita e sempre foi.  Mas fomos os únicos a analisar o programa deles.

O mesmo vale para o movimento de defesa dos direitos das mulheres. Marine Le Pen apresentou-se, no início da campanha, como mulher moderna. Jean-Luc Mélenchon foi o único que demonstrou que, se se examina o programa dela em relação ao aborto e outras questões que dizem respeito diretamente às mulheres, ela absolutamente não defendia direito algum.

Acho que aí está algo difícil de esquecer: que fomos os únicos a iniciar um processo para desmontar diretamente a Frente Nacional fascista.

YR: Muitos analistas, até a confirmação final dos resultados, sugeriam que a Frente de Esquerda e a Frente Nacional disputavam o voto dos trabalhadores. E as urnas mostram que os dois lados alcançaram número recorde de votos – a Frente de Esquerda saiu das urnas legitimada como novo partido; e a Frente Nacional cresceu muito, em relação a 2007.

RG: Você tem razão, em parte. De fato, não disputamos os mesmos votos. A Frente Nacional disputa votos com a direita, com a UMP [União do Movimento Popular, de Nicolas Sarkozy].

Se se somam os votos da direita e da extrema direita, são cerca de 60 milhões de votos. Esse total não se alterou em relação a eleições anteriores. Os votos apenas mudaram, de um para outro candidato do mesmo grupo. Em 2007, Sarkozy "roubou" votos da extrema direita; agora, a extrema direita está recuperando os mesmos votos.

E quanto mais a UMP de Sarkozy insiste nos mesmos temas também apresentados pela Frente Nacional de Le Pen – imigração, insegurança, o discurso antimuçulmanos, antiárabes e a comida halal [1]–, ele, de fato, favorece a campanha da Frente Nacional.

Quanto a nós, nossos três milhões de votos são, de fato, novos votos para a esquerda. De fato, a esquerda teve crescimento espetacular.

Trabalhamos o mais possível, trabalhamos bem, e os trabalhadores que em geral abstêm-se de votar, votaram conosco – ou, seja como for, não votaram na Frente Nacional. Na minha opinião, fizemos muito bem esse trabalho de contenção da direita e da extrema direita. O Partido Socialista não faz isso. Mesmo agora, praticamente não estão enfrentando a questão dos muitos votos da direita e extrema direita.

Depois do massacre de Toulouse, quando a direita passou a atacar diretamente os árabes e muçulmanos, só Jean-Luc Mélenchon protestou contra o discurso do preconceito e do racismo. Sarkozy imitou a Frente Nacional e o Partido Socialista manteve-se à margem da discussão.

YR: A estratégia de Sarkozy, pelo menos no último ano, parece ter sido tentar conquistar votos da extrema direita. Essa atitude tem criado muita discussão interna dentro da UMP, onde muitos que preferem manter-se mais ao centro do espectro político, sem se aproximar tanto da direita. Por que, na sua opinião, a votação da Frente Nacional aumentou tanto, apesar da estratégia de Sarkozy?

RG: É resultado direto de Sarkozy e da UMP sarkozista estarem convencidos de que seria preciso focar esses temas, para obter votos. O resultado mostrou que estavam errados.

O único resultado da estratégia de Sarkozy foi ajudar a Frente Nacional. E, se insistirem nessa estratégia na campanha para o segundo turno, o resultado será o mesmo.

Por outro lado, a estratégia da Frente Nacional é levar a UMP ao colapso, para reorganizarem a direita sob o comando, não de Sarkozy, mas de Le Pen. Querem, de fato, rachar a UMP.

Embora tenham uma retórica contra o sistema, a real estratégia deles está sempre dentro dos parâmetros da direita [como um todo] e de como a direita pode reorganizar-se depois de Sarkozy, caso Sarkozy seja derrotado dia 6 de maio.

YR: Você acha então que Le Pen não apoiará Sarkozy?

RG: Acho que não apoiará Sarkozy. Ela virá com um discurso em que, aparentemente, estaria negociando o apoio em torno de pontos – imigração e segurança – para forçar a UMP nessa direção e vencer essa batalha cultural do programa cultural da direita francesa.

Então, assistirá à derrota de Sarkozy e dirá: “OK, você tentou ao seu modo. Agora, é nossa vez de tentar ao meu modo.”

YR: Em termos da estratégia da Frente de Esquerda – que obteve o melhor resultado eleitoral da extrema esquerda desde 1981 –, vocês vão tentar negociar com Hollande?

RG: Não, não vamos negociar. Nossa estratégia é governar pelo nosso programa. Para isso, o ponto de partida, o primeiro passo, é derrotar Sarkozy. Por isso vamos apoiar o voto em Hollande contra Sarkozy sem negociar coisa alguma.

Depois de derrotar Sarkozy, a vida recomeçará. O debate já está nas ruas, sobre a legitimidade e a eficácia dos planos de austeridade; é discussão que já está posta e em andamento. Já nas próximas semanas, de fato, porque temos eleições parlamentares em junho, e apresentaremos candidatos em todas as regiões da França.

Com absoluta certeza, não temos qualquer interesse em participar de governo cujo objetivo será implementar planos de austeridade, como François Hollande planeja fazer.

YR: Não querem cargos no gabinete?

RG: Não. Milhões de pessoas depositaram sua confiança em nós, lá estiveram, nas ruas, nas praças. Algo realmente poderoso aconteceu na nossa campanha e seria muito frustrante se aquilo tudo acabasse numa negociação barata por cargos, com os social-democratas.

Nosso projeto é deslocar os social-democratas e assumir a liderança que tiveram até agora, em toda a Europa. É projeto demorado, mas é o que trabalharemos para fazer.


Nota dos tradutores
[1] Referência às práticas religiosas de muçulmanos (e judeus), de preparação de alimentos para consumo humano. Em março, durante a campanha, Sarkozy levantou a suspeita de que a população francesa estaria comendo alimentos preparados pelos rituais muçulmanos, sem os quais a os alimentos são considerados halal [proibido para o consumo]. Há matéria sobre isso em Guardian, 7/3/2012, em: “Nicolas Sarkozy: there are too many foreigners in France” (em inglês).

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