Fim da hegemonia da
social-democracia
24/4/2012, Yasmine Ryan, Al-Jazeera, Qatar –
Entrevista de Raquel Garrido, Front de
Gauche
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Raquel Garrido é uma antiga
aliada de coalizão do líder Jean-Luc Mélenchon, Frente de Esquerda [Foto Yasmine
Ryan / Al Jazeera]
|
Paris, França – A candidatura de
Jean-Luc Mélenchon à presidência na França, embora não tenha sido vitoriosa, deu
à Front de Gauche [Frente de
Esquerda], aliança de partidos de extrema esquerda, massiva visibilidade na
França.
O candidato da Front de Gauche recebeu menos votos que
os esperados, depois de pesquisas que indicavam que poderia ter 16-17% dos
votos.
Apesar de a coalizão de esquerda
tem obtido 11,1%, o que a pôs em 4º lugar entre dez candidatos, a
extrema-esquerda reafirmou-se e voltou a ter espaço na discussão política no
país.
Yasmine Ryan (YR), da rede Al
Jazeera, entrevistou Raquel Garrido (RG), da Frente de Esquerda francesa, aliada
há muito tempo de Mélenchon. Como Mélenchon, Garrido também deixou o Partido
Socialista no final de 2008, para engajar-se no novo movimento.
Yasmine Ryan: Você deixou o Partido Socialista bem no
início da crise financeira. A crise ajudou a disparar a decisão de separar-se
dos Socialistas?
Raquel Garrido: Ajudou, é verdade,
porque nós sabíamos que as coisas ficariam cada vez mais difíceis e que teríamos
de enfrentar os ataques especulativos e a crise financeira com posição e
argumentos mais duros do que os do Partido Socialista e dos social-democratas
em geral na
Europa.
Mas, de fato, já pensávamos há
muito mais tempo em deixar o Partido
Socialista. Começamos a questionar nossa estratégia, quando
começamos a ver que, na América Latina, já havia governos de esquerda que
estavam chegando ao poder e sem os partidos tradicionais da social-democracia.
Ao contrário: muitas daquelas
experiências – na Argentina, Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia – estavam sendo
feitas por novos partidos. Novos instrumentos políticos organizaram-se fora da
social-democracia e dos partidos da esquerda tradicional.
E empregavam métodos radicais,
fosse na luta contra o FMI ou nos meios que usavam para remobilizar a sociedade,
mediante assembleias constituintes.
A assembleia constituinte é
invenção francesa, nascida da Revolução Francesa. Implica afirmar que a
soberania não está no monarca, mas no próprio povo.
E de repente, no final dos anos
1990s, o método apareceu usado na América Latina e com considerável sucesso.
Vimos aí um sinal de que o movimento social-democrata na Europa estava falhando
e não daria o que se esperava que desse, depois do fracasso do estado comunista.
Aprendemos da América Latina a
ideia de que estávamos ante dois fracassos: o fracasso do estado comunista e o
fracasso da social-democracia europeia. E que a esquerda teria de
reorganizar-se, criando novos instrumentos.
Em 2005, na França, tivemos um
referendo sobre a Constituição Europeia e o correspondente tratado [pelo qual a
França se integraria à União Europeia]. O Partido Socialista decidiu apoiar
aquele tratado, mas com a oposição interna de nosso grupo, reunido
em torno
de Jean-Luc Mélenchon. Fizemos campanha contra o tratado com
todos os grupos da esquerda do Partido Socialista, que tinha análise muito clara
dos riscos que aquele tratado criava – dentre os quais a evidência de que se
baseava em princípios ultra liberais de livre comércio, pró livre mercado, com
redução dos serviços públicos.
Fizemos campanha a favor do “não”,
naquele referendo, e vencemos. Aquela votação nos deu poder e legitimidade, e
vimos que, se ousássemos expor o que realmente pensávamos, se deixássemos para
trás as discussões infindáveis e a competição interna dentro do Partido
Socialista, se levássemos nossa discussão para a sociedade, teríamos boa chance
de conquistar mais votos.
Imediatamente depois fomos
convidados a visitar a Alemanha, onde o ex-ministro da Economia, Oskar
Lafontaine, deixara o Partido Social-Democrata alemão e criara um novo partido,
Die Linke [A Esquerda], em aliança
com o ex-Partido Comunista.
Fomos convidados ao congresso de
fundação do novo partido, Jean-Luc Mélenchon, Pierre-François Grond e eu. E foi
o que acabou de nos convencer que aquela seria a via para avançar, que não havia
futuro em permanecer limitados naquelas briguinhas dentro do Partido Socialista.
Demoramos bom tempo para preparar
corretamente nossa saída do Partido Socialista e, em 2007, o partido apresentou
Ségolène Royal como candidata e ela não conseguiu derrotar Nicolas Sarkozy
[naquela eleição à presidência]. Embora o Partido Socialista fosse forte, não se
viu nenhuma outra força de esquerda que se opusesse à direita.
Afinal, em 2008, nos separamos dos
Socialistas e imediatamente firmamos uma coalizão com o Partido Comunista
Francês e outros, uma coalizão de esquerda. Nossa estratégia foi reunir
imediatamente os demais partidos de esquerda. Não nos parecia admissível que a
esquerda continuasse dividida em pequenos grupos: tinha de ser reunificada.
E é o que temos feito desde então.
Conseguimos que todos os grupos apoiassem a candidatura de Jean-Luc Mélenchon à
presidência.
YR: Em que medida os movimentos do
mundo árabe serviram de inspiração para vocês? Vocês se veem retomando o
socialismo?
RG: Sim. Mais do que retomando o
socialismo, estamos retomando um veio cultural que há na França, uma identidade
cultural básica subjacente e que se resume em “Liberdade, igualdade,
fraternidade”.
Para nós, o mais interessante na
Primavera Árabe é o fato que, se se considera a Tunísia, mesmo o Egito, o método
para mudar o regime é devolver o poder à assembleia constituinte. O poder está
voltando ao povo, deixando de ser simples rearranjo interno de grupos. A solução
está no povo.
É preciso mudar os governos. Na
Tunísia, o regime era uma cleptocracia. Para mudar isso, é preciso engajar o
povo. Esse movimento foi nossa verdadeira fonte de inspiração. A América Latina
também nos inspirou, mas está muito longe. Túnis está aqui, bem próxima.
A história do socialismo francês
sempre foi fundir aquele passado cultural francês revolucionário, com a defesa
dos direitos dos trabalhadores e dos sindicatos de trabalhadores.
Colhemos essa bandeira e lhe
acrescentamos outros elementos. O principal deles foi a preocupação com questões
ambientais.
Decidimos organizar uma verdadeira
frente de oposição ao partido do Front
Nacional [Frente Nacional, partido da extrema direita liderado hoje por
Marine Le Pen, que alcançou a porcentagem recorde de 17,9% dos votos no primeiro
turno da eleição presidencial]. Acho que todos concordam em que só nós abraçamos
diretamente essa luta. Os resultados mostram que nossa análise sempre esteve
correta: a Frente Nacional é o principal adversário a enfrentar na França. E não
bastaria fazer oposição moral e repetir que o racismo é ruim. Teríamos de ter
crítica mais precisa contra o programa deles.
E foi o que fizemos. Mostramos
que, por mais que a Frente Nacional tente apresentar-se como partido que defende
direitos dos trabalhadores, todo o programa deles desmente essa ideia. Se se
examina o programa, tudo ali é contra a redistribuição de riqueza, do capital
para o trabalho.
A Frente Nacional, no discurso,
sempre se apresenta como aliada dos pobres e trabalhadores. Esse movimento é
típico do fascismo e da extrema direita e sempre foi. Mas fomos os únicos a
analisar o programa deles.
O mesmo vale para o movimento de
defesa dos direitos das mulheres. Marine Le Pen apresentou-se, no início da
campanha, como mulher moderna. Jean-Luc Mélenchon foi o único que demonstrou
que, se se examina o programa dela em relação ao aborto e outras questões que
dizem respeito diretamente às mulheres, ela absolutamente não defendia direito
algum.
Acho que aí está algo difícil de
esquecer: que fomos os únicos a iniciar um processo para desmontar diretamente a
Frente Nacional fascista.
YR: Muitos analistas, até a
confirmação final dos resultados, sugeriam que a Frente de Esquerda e a Frente
Nacional disputavam o voto dos trabalhadores. E as urnas mostram que os dois
lados alcançaram número recorde de votos – a Frente de Esquerda saiu das urnas
legitimada como novo partido; e a Frente Nacional cresceu muito, em relação a
2007.
RG: Você tem razão, em parte. De fato,
não disputamos os mesmos votos. A Frente Nacional disputa votos com a direita,
com a UMP [União do Movimento Popular, de Nicolas Sarkozy].
Se se somam os votos da direita e
da extrema direita, são cerca de 60 milhões de votos. Esse total não se alterou
em relação a eleições anteriores. Os votos apenas mudaram, de um para outro
candidato do mesmo grupo. Em 2007, Sarkozy "roubou" votos da extrema direita;
agora, a extrema direita está recuperando os mesmos votos.
E quanto mais a UMP de Sarkozy
insiste nos mesmos temas também apresentados pela Frente Nacional de Le Pen –
imigração, insegurança, o discurso antimuçulmanos, antiárabes e a comida halal [1]–, ele, de fato, favorece a
campanha da Frente Nacional.
Quanto a nós, nossos três milhões
de votos são, de fato, novos votos para a esquerda. De fato, a esquerda teve
crescimento espetacular.
Trabalhamos o mais possível,
trabalhamos bem, e os trabalhadores que em geral abstêm-se de votar, votaram
conosco – ou, seja como for, não votaram na Frente Nacional. Na minha opinião,
fizemos muito bem esse trabalho de contenção da direita e da extrema direita. O
Partido Socialista não faz isso. Mesmo agora, praticamente não estão enfrentando
a questão dos muitos votos da direita e extrema direita.
Depois do massacre de Toulouse,
quando a direita passou a atacar diretamente os árabes e muçulmanos, só Jean-Luc
Mélenchon protestou contra o discurso do preconceito e do racismo. Sarkozy
imitou a Frente Nacional e o Partido Socialista manteve-se à margem da
discussão.
YR: A estratégia de Sarkozy, pelo
menos no último ano, parece ter sido tentar conquistar votos da extrema direita.
Essa atitude tem criado muita discussão interna dentro da UMP, onde muitos que
preferem manter-se mais ao centro do espectro político, sem se aproximar tanto
da direita. Por que, na sua opinião, a votação da Frente Nacional aumentou
tanto, apesar da estratégia de Sarkozy?
RG: É resultado direto de Sarkozy e da
UMP sarkozista estarem convencidos de que seria preciso focar esses temas, para
obter votos. O resultado mostrou que estavam errados.
O único resultado da estratégia de
Sarkozy foi ajudar a Frente Nacional. E, se insistirem nessa estratégia na
campanha para o segundo turno, o resultado será o mesmo.
Por outro lado, a estratégia da
Frente Nacional é levar a UMP ao colapso, para reorganizarem a direita sob o
comando, não de Sarkozy, mas de Le Pen. Querem, de fato, rachar a UMP.
Embora tenham uma retórica contra
o sistema, a real estratégia deles está sempre dentro dos parâmetros da direita
[como um todo] e de como a direita pode reorganizar-se depois de Sarkozy, caso
Sarkozy seja derrotado dia 6 de maio.
YR: Você acha então que Le Pen não
apoiará Sarkozy?
RG: Acho que não apoiará Sarkozy. Ela
virá com um discurso em que, aparentemente, estaria negociando o apoio em torno
de pontos – imigração e segurança – para forçar a UMP nessa direção e vencer
essa batalha cultural do programa cultural da direita francesa.
Então, assistirá à derrota de
Sarkozy e dirá: “OK, você tentou ao seu modo. Agora, é nossa vez de tentar ao
meu modo.”
YR: Em termos da estratégia da
Frente de Esquerda – que obteve o melhor resultado eleitoral da extrema esquerda
desde 1981 –, vocês vão tentar negociar com Hollande?
RG: Não, não vamos negociar. Nossa
estratégia é governar pelo nosso programa. Para isso, o ponto de partida, o
primeiro passo, é derrotar Sarkozy. Por isso vamos apoiar o voto em Hollande contra
Sarkozy sem negociar coisa alguma.
Depois de derrotar Sarkozy, a vida
recomeçará. O debate já está nas ruas, sobre a legitimidade e a eficácia dos
planos de austeridade; é discussão que já está posta e em andamento. Já nas
próximas semanas, de fato, porque temos eleições parlamentares em junho, e
apresentaremos candidatos em todas as regiões da França.
Com absoluta certeza, não temos
qualquer interesse em participar de governo cujo objetivo será implementar
planos de austeridade, como François Hollande planeja fazer.
YR: Não querem cargos no gabinete?
RG: Não. Milhões de pessoas depositaram
sua confiança em nós, lá estiveram, nas ruas, nas praças. Algo realmente
poderoso aconteceu na nossa campanha e seria muito frustrante se aquilo tudo
acabasse numa negociação barata por cargos, com os social-democratas.
Nosso projeto é deslocar os
social-democratas e assumir a liderança que tiveram até agora, em toda a Europa. É
projeto demorado, mas é o que trabalharemos para fazer.
Nota dos
tradutores
[1] Referência às práticas religiosas
de muçulmanos (e judeus), de preparação de alimentos para consumo humano. Em
março, durante a campanha, Sarkozy levantou a suspeita de que a população
francesa estaria comendo alimentos preparados pelos rituais muçulmanos, sem os
quais a os alimentos são considerados halal [proibido para o consumo]. Há
matéria sobre isso em Guardian, 7/3/2012, em: “Nicolas
Sarkozy: there are too many foreigners in France” (em
inglês).
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