*Urariano Motta
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No texto “Como ensinar literatura”
eu mencionei o conto Daniel, que recupero a seguir. O título muda para "O
menino-passarinho" em homenagem ao lirismo dos jovens que o escutaram tensos.
Em outra oportunidade, falarei
sobre o amigo que originou o personagem. A ele, agora.
Da turma, Daniel era o mais gordo.
Ainda que sob protestos, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de
carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam
simetricamente num ponto de inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a
sobrancelha direita ligadas como asas dum pássaro, movendo-se no espaço da
fronte. Essa união desairosa o incomodava. Se ele tivesse ultrapassado aquele
momento crítico em que rapazinhos e mocinhas se entreolham, pesquisam-se, em que
as mudanças no corpo, na face, são mudanças de revelação, Daniel teria
sobrevivido àqueles elos de siamesas. Mas as sobrancelhas para Daniel não eram
propriamente uma revelação, porque há muito vinham sendo anunciadas. Se pudesse,
naquela quadra da sua vida, teria feito uma cirurgia. Uma nova face, de quaisq
uer outras sobrancelhas, finas, ralas, densas, espessas, não importava, desde
que fossem gêmeas cada qual a seu canto. Ele se sentia, ou melhor, os meninos e
meninas faziam-no sentir-se um rapaz anormal, em razão de se acompanhar do que
achavam anormais enfeites sobre a testa. E enfeites muito salientes, cerrados,
que se apresentavam à frente, antes que dissesse, “eu sou Daniel”. Enfeites
incapazes de disfarce. A não ser que se colocasse permanentemente de
perfil.
Em outra pessoa aquelas
sobrancelhas viriam a ser um distintivo de elegância, mas em Daniel... Ele era
gordo, carregava a fama de ser um quase idiota. Quem é tido como insignificante
já traz em si a sua zombaria. O grupo de alunos se tornava coeso, punha-se mais
camarada na eleição de Daniel para o divertimento. Que julgavam tão
inocente:
-Daniel, tira
essa máscara. Tira essa máscara, Daniel!
E num requinte de inocência, um do
grupo virava-se para as mocinhas:
-Quem quer, quem quer um quilo das
sobrancelhas de Daniel?
Ele não se escondia, não descia
para um buraco, porque era impossível sumir por entre os sinais do seu rosto. A
classe toda numa gargalhada geral estourava.
As meninas, a princípio tímidas,
terminaram por aderir a esse tipo de malhação. Porque era malhado, Daniel
transformara-se involuntariamente no contato entre moças e rapazes, que antes
mal se relacionavam. A cada troça as mocinhas dobravam a risada. Ruborizavam-se.
Os rapazes, sentindo a terra fértil, acercavam-se mais estreitamente. Um
banquete.
Desse banquete Iara não
participava. Entre a alegria ruidosa ela estendia olhos silenciosos para Daniel.
Ele baixava a cabeça. Talvez ela fosse a única pessoa da turma que o olhava como
um todo, inteiro. Ele furtava ainda mais o rosto. Isso deixava Iara indignada:
por que em meio a toda aquela zombaria era ele o envergonhado?! Iara sentia uma
indignação muda, apenas sentimento, de sentimento que fere somente a quem o
possui, porque não encontra meios ou argumentos para se exteriorizar. Como, com
que palavras, com que forças levantar-se e falar mais alto que a selvageria?
Como dizer, “turma, isso não se faz”? Como argumentar, “não se acanham de zombar
de um colega, a quem vocês mesmos transformaram num coitado? A vergonha que ele
sente deveria ser nossa”, como dizê-lo? Para se expressar assim, era preciso que
Iara tivesse mais que catorze anos, e também um cajado, forte, com poderes de
bater e emitir raios de um profeta. Impossível. Ainda que tais meios tivesse,
ainda assim seria derrubada. Pois não é próprio do grosseiro se comprazer na
grosseria? A grosseria não suporta qualquer alteamento. Revolta-se, quando
importunada.
Em verdade, nessa indignação muda,
Iara possuía, ela mesma, um quê de resguardo à troça.
Seu pai era um louco, um
desequilibrado, que vivia a falar sozinho, a pregar um evangelho raivoso nas
ruas, na praça, a todos e a ninguém. A causa imediata de sua pregação era sempre
uma pequena contrariedade, real ou imaginária, mas de qualquer forma
desenvolvida até as raias da explosão. Que explodia, deixando um dilema para as
vítimas: ou concordavam com as suas palavras, e nesse caso atingiam a salvação,
ou caso contrário emborcariam de cabeça, atingindo as profundas, sem remédio ou
absolvição.
Ele não tinha nome, era o Pastor
do bairro. E tinha a mania insuportável de ficar no portão do Ginásio, à espera
angustiada da filha. Calvo, de bigodes bastos, metido sempre num casaco de frio,
ainda que o sol infernizasse a tarde. Vez por outra ia até a porta da sala.
Mergulhava a cabeça de olhos grados, e perguntava somente a ela, por cima de
toda a turma: “já acabou?”. E voltava ao portão, em passos miúdos, rápidos. Ah,
que não lhe levassem a filha, sabia da fama do Ginásio, e daqueles meninos:
taras, tarados, demônios. Fincava os pés na vigilância do pátio, dos muros, das
janelas.
Não fosse a suave altivez de Iara,
há muito ela teria caído nas graças da zombaria. Tivesse ao menos um ar
resignado e ter-lhe-iam caído em cima, até arrancar-lhe a pele. Ao aparecimento
do pai ela erguia o semblante para o quadro-negro, surda, parecendo a
Daniel com a
mesma expressão severa de Joana D’Arc nos quadros. Risinhos abafados corriam,
mas não prosperavam.
Ela era bela, suavemente bela.
Pequenina, morena, de olhos amendoados. A mulher que seria já estava aos catorze
anos organizada. Essa certeza vinha menos do corpo que da expressão madura do
rosto. Que banhava, essa expressão madura, todo o seu corpo. Ela era aquela
menina que se namorava, que se abraçava fortemente, degustável, sem pressa, até
o fim dos dias.
Daniel comia-a, com os olhos.
Desastrado que era, ao invés de soprar, quebrava o prato pelas
beiras.
Como um acréscimo a seu natural,
Daniel perdia, definitivamente, o senso da realidade ao sentir pelo faro, pelos
ouvidos, pelo perfume, a presença de Iara. Inchava o peito, girava nos
calcanhares de modo a ficar de perfil, como um Napoleão de hospício, para
demonstrar que não a via. Mas aquele moreno hindu o atordoava. Quando em casa
idealizava seus próximos atos, prometia-se que ela receberia a demonstração do
seu afeto. Num repente virava-se, lá, aqui estava ela, à margem de toda
agitação, quieta. Como um raio lembrava-se da própria testa, mas era necessário
demonstrar-lhe o próprio afeto: cuspia-lhe um cumprimento, rápido, como uma
bala, arremessada por um aceno bruto de queixo: “Ôi !”. E tornava à posição
napoleÃ?nica, ouvindo, discutindo não sabia o quê, porque nada ouvia, nada
falava do que lhe vinha à mente, que era a presença morena, loucamente morena,
daquela pele que um dia sonhava distantemente, perdidamente tocar com as
mãos.
-Daniel, você está me
ouvindo?
O colega, irritado, chegava-se ao
pé do seu ouvido, para baixá-lo do além:
-Você já viu mulher nua? Bem
cabeluda, você já viu uma?
-Sim, claro...
a ruiva não é como a morena.
Estremecia. Ia sentar-se a um
canto, isolado. Era necessário agir. Mas o que era o agir? As pernas suavam. Uma
algidez progressiva ia-lhe tomando os membros. Os planos de ação rápida,
arquitetados lá dentro do cérebro, naquele lugar íntimo, no pontinho escuro onde
o voo é livre para todas as coisas ridículas, risíveis, burras, vaidosas, de
superstição, de crime, de vingança, roubo e vontade, enfim, naquela célula
privatíssima onde o sonho não se envergonha de sonhar, naquele pontinho que
imagina, tudo que ele gerasse era incompatível com a sua pessoa. Ele, Daniel,
sonhava para outro Daniel. O Daniel sonhado não era para o Daniel materializado.
Por que não fazia a corte como os outros? Nem como os outros, qualquer corte que
fosse algo mais que recolher a cara envergonhada quando Iara descia até ele os
humaníssimo s olhos? Haveria alguma estrada, alguma ponte invisível, que ninguém
visse, somente eles dois, que o levasse até ela?
Se ele fosse magro, se não
mangassem dele, se tivesse dinheiro no bolso, se tivesse futuro, isto seria uma
ponte. Se ao menos tivesse sobrancelhas de gente. Suas calças não guardavam
vinco. A camisa não lhe descia, verticalmente, por entre as calças. Ela apenas
era puxada, repuxada, naquela barriga. Se ao menos fosse como Gilvan, como
Aciole – eles eram olhados, eles podiam ter as meninas que quiserem, num
assobio. Elas abanavam o rabo, como cadelas. Eles têm um rosto bonito, de galã
de cinema. Como seria feliz se tivesse o corpo deles ... eles têm músculos, são
atletas, pulam obstáculos, mostram-se num porte ... Eles têm peito de homem.
Onde está a mulher que não consigam? Por que a miséria não gosta da miséria?
Isso fere. Por que a miséria detesta e pisa a miséria?
Num belo dia, Daniel entrou no
Ginásio de sobrancelhas raspadas. Ou melhor, ele amputou o corpo, o ponto onde
se uniam as duas asas do pássaro. Ou melhor, pensando em amputar o corpo,
inabilmente foi mais longe, amputou também pedaços à esquerda e à direita das
asas, fez sumir os pedaços que a natureza fazia cair rumo a um encontro. Melhor,
no que sobrou, diminuiu o volume, a espessura dos pelos, ou das plumas. Melhor,
finalmente, tirou plumas abaixo e acima das articulações, reduzindo-as a finas
linhas.
A cirurgia deu nascimento a dois
pontos de interrogação deitados, quase a dois acentos circunflexos incompletos,
sem acomodação.
O turno da tarde, o Ginásio
inteiro se levantou. Daniel não conseguia sentar-se em uma cadeira. Ficava
rodando, com sua cara gorda de palhaço, por entre a turba excitada.
“Mulherzinha, mulherzinha”, vinha em gritos agudos, vaias, risadas, de início
uma passarada de praga, depois uma massa compacta, “Mulherzinha !”. Estrondavam.
Num gesto reflexo, Daniel punha as mãos sobre o rosto, protegia a cabeça como um
ser em queda, como um suicida em arrependimento tardio que se lançou do alto de
um arranha-céu.
Não se pode dizer que pensava, mas
seu arrependimento tardio parecia tão-somente dizer, “em que deu, Daniel, em que
deu o teu sonho impossível de te fazer aceito”. Ao que outra voz respondia, na
mesma escuridão, por entre seu corpo aos soluços, “agora o teu sonho se vai,
Daniel. Antes houvesses feito do que era impossível uma hemorragia”.
Com solenidade, os professores
arrastaram-no para a secretaria. Uma procissão de meninos seguiu-os.
Na secretaria, diante daquele ser
cabisbaixo, dona Augusta mandou que ele erguesse o rosto. A medo obedeceu: tinha
o rosto úmido, inchado, com as inscrições esborrachadas na testa. A diretora
então, em seu natural prosaico, achou por bem ajeitar-lhe as interrogações
deitadas sobre os olhos, enfeixando-as numa única interrogação:
-Por que você nunca usou um boné,
Daniel?
E assinou a sua
expulsão.
*Urariano Motta
é natural de Água
Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos
em Movimento,
Opinião , Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à
ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do
Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também
já veicularam seus textos. Autor de Soledad
no Recife (Boitempo,
2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em
1973, e Os
corações futuristas (Recife,
Bagaço, 1997).
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