28/2/2012, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
A
morte em Cabul, no sábado, de dois oficiais norte-americanos de alta patente –
um coronel e um major – servindo na Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) marcará mudança paradigmática na segurança regional. O Afeganistão
continua a ser o “hot spot” número 1 dos EUA, acima de Síria e Irã.
Se
o presidente Barack Obama pensou que fosse hora de os militares norte-americanos
“derivarem” [orig. pivot] na
direção da Ásia-Pacífico, foi pensamento delirante. Os Talibã ainda têm muito o
que dizer na campanha para a reeleição de Obama; a estratégia de conversações de
paz com os Talibã exigirá exame detalhado e atento.
A
possibilidade de os EUA conseguirem estabelecer bases militares no país parece
muito duvidosa, ante o tsunami de antiamericanismo que varre o Afeganistão. E,
em termos imediatos, o que está acontecendo no processo de retirada das tropas
dos EUA?
O
embaixador dos EUA em Cabul, Ryan Crocker, respondeu sem hesitar em entrevista à
CNN no domingo:
“As
tensões estão muito altas por lá. Acho que precisamos esperar que as coisas se
acalmem, que voltem a uma atmosfera mais normal e, depois, voltamos ao
assunto”.
Diplomatas
são pagos para soarem otimistas. Mas, afinal, o que garante que as coisas de
fato se acalmem – e, mais importante, por quanto tempo perdurará a calma dos
cemitérios, até que chegue o próximo cortejo fúnebre?
Crocker
acrescentou:
“Não
é hora para decidir que a missão acabou por aqui. De fato, temos de redobrar
nossos esforços. Temos de criara uma situação em que a al-Qaeda não volte. Se
agora resolvemos que cansamos, a al-Qaeda e os Talibã ainda não cansaram”.
Hmm.
Agora se vê que Crocker falava diretamente ao público eleitor.
Obama
errou ao deixar o Afeganistão aos cuidados do Departamento de Estado e dos
seguidores do falecido Richard Holbrooke. Muito claramente, as “desculpas” pelos
livros do Corão incinerados por soldados norte-americanos nem de longe
impressionaram os afegãos. Houve mais de 30 mortos na violência, entre os quais
meia dúzia de soldados dos EUA. E pelo menos outros seis instrutores militares
norte-americanos foram feridos.
O
consulado dos EUA na cidade ocidental de Herat, cominada pelos tadjiques, foi
atacado. Bases norte-americanas, francesas e norueguesas foram atacadas,
inclusive numa região relativamente calma como a província de Samangan no norte.
Manifestantes invadiram os escritórios da ONU na cidade de Kunduz, onde vive
população mista de pashtuns, uzbeques e tadjiques. Nenhuma região do Afeganistão
pode ser considerada segura, nem a cidade de Taloqan, dominada pelos tadjiques,
no sopé das montanhas Badakhshan no leste.
Surgem
inúmeras questões políticas. O principal comandante dos EUA, general John Allen
ameaçou: aquelas matanças do sábado teriam sido ação de “um covarde que não
escapará sem punição”. Mas nada significa, nem aqui nem lá; falou exclusivamente
para consumo dos soldados da OTAN. Washington tem de andar sobre um fio tênue
entre o dever de agir e o dever de jamais se exceder.
Morrer
pela religião
Por
outro lado, o aspirante a candidato à presidência Newt Gingrich zombou de Obama,
que se teria apressado a pedir “desculpas” pela queima dos livros e teria
ignorado a morte de americanos, por bandidos do exército afegão.
É
importante que os soldados norte-americanos não se envolvam em “matanças de
vingança”. Allen teve de acorrer pessoalmente a uma base avançada dos EUA na
província de Nangarhar, para acalmar os soldados. Não estamos no cenário no qual
Francis Ford Coppola filmou o épico
Apocalypse Now da guerra
do Vietnã. Mas já quase se ouve a “Cavalgada das Valquírias”, tocada nos
alto-falantes dos helicópteros norte-americanos.
Não
por acaso, só no domingo o presidente Hamid Karzai do Afeganistão quebrou o
silêncio e pediu calma. Sabiamente, esperou que os protestos seguissem o próprio
curso. Finalmente, Karzai disse, numa conferência de imprensa, que os protestos
haviam mostrado que o povo afegão está disposto a morrer por sua religião.
Exigiu que os soldados que queimaram o Corão fossem punidos e prometeu tratar da
questão com Obama.
Obama
telefonou a Allen depois das matanças do sábado, mas não telefonou a Karzai.
Karzai também deixou que o ministro da Defesa Abdul Wardak falasse com seu
contraparte nos EUA, Leon Panetta, e tratasse o caso como questão entre
militares.
Washington
parece sentir que Karzai deveria ter agido mais cedo, para reduzir os protestos.
A secretária de Estado Hillary Clinton disse, no sábado, que os protestos “têm
de acabar”. Verdade é que os mortos da tarde de sábado tornam ainda mais
complicada o já volátil relacionamento entre Washington e Cabul.
Haverá
dúvida muito disseminada na cabeça dos norte-americanos sobre o soldado afegão.
Um afegão armado numa base militar sempre é suicida-bomba potencial. Um veterano
general afegão disse à BBC que “o vírus da infiltração espalhou-se como câncer e
exige cirurgia. Nenhum outro tratamento deu qualquer resultado”. Está prestes a
ser completamente desmoralizado todo o projeto de “construir capacidade” na
segurança afegã.
No
clima atual, nem uma relação normal de trabalho entre forças dos EUA e do
Afeganistão será fácil. O que significa que a “avançada” [orig. surge] e a estratégia de retirada do
Pentágono; a consequente entrega da responsabilidade pela segurança às forças
afegãs; e o fim da missão da OTAN em 2014 – tudo isso está em cacos.
Washington
e Londres decidiram, quase instantaneamente, retirar seus instrutores e
conselheiros que trabalhavam em ministérios e órgãos do governo afegão. Mas a
decisão implica paralisar o trabalho efetivamente coordenado de operações de
segurança em andamento, apoio técnico e partilhamento de inteligência, o que,
por sua vez, faz aprofundarem-se as incertezas.
Aliados
da OTAN assistem a tudo isso. Os alemães já fecharam sua base em Taloqan no
nordeste do Afeganistão. Cada membro da OTAN dedica-se hoje a buscar meios para
minimizar o risco de ver morrer seus jovens, homens e mulheres, numa guerra sem
sentido. O presidente Nicolas Sarkozy já ameaçara com sumária saída dos
franceses, e teve de ser convencido a mudar de ideia. Obama tem pouco tempo,
agora que a OTAN prepara-se para as comemorações dos 60 anos, na reunião de
cúpula em Chicago, em maio.
Hora
de partir
Obama
terá de tomar decisão dramática, sobre conversas de paz com os Talibã, que
reivindicaram claramente a autoria das mortes em Cabul. Obama liberou seus
“especialistas em Afeganistão” da equipe do falecido Holbrooke, para que batam
em todas as portas e vasculhem cada palmo de bosque, na caçada a emissários dos
Talibãs ainda interessados em conversações de paz. A frase que Clinton cunhou –
“Combater, conversar, construir” – já diz tudo.
Os
Talibã abraçaram apaixonadamente o plano Clinton – pelo que se vê, mais e melhor
do que os americanos jamais imaginaram. O porta-voz Mulá Qari Mohammed Yousef
Ahmadi revelou essa semana, em entrevista ao jornal saudita Asharq
al-Awsat, a interessante novidade de que os Talibã já planejam abrir novos
“escritórios políticos”, depois do já inaugurado no Qatar, em resposta a
convites que receberam da Arábia Saudita, Líbia, Turquia, Egito “e de todos os
lados”. Quanto mais escritórios, melhor.
Aonde
tudo isso está levando? Em retrospecto, o envolvimento unilateral dos EUA no
processo de reconciliação afegão foi completo erro. O papel dos EUA dever-se-ia
ter limitado a dar assistência a negociações exclusivamente entre os
afegãos.
Mas,
calma. Os Talibã realmente fizeram aquilo? O coronel e o major foram mortos, um
tiro em cada nuca, no local de trabalho, um dos complexos mais fechados,
vigiados e protegidos de todo o Afeganistão. Na sala, havia câmeras de
vigilância sempre acionadas e portas e fechaduras especiais.
O
assassino só chegou até eles porque teve passagem livre, acesso liberado até os
mais altos níveis da hierarquia da segurança; ou não entraria naquela sala. O
general Carsten Jacobsen, porta-voz da Força de Assistência Internacional de
Segurança disse que:
“...as
perguntas agora são como [o assassino] chegou àquele setor do ministério do
Interior, local de tão alta segurança; o que o (ou a) teria motivado a matar a
sangue frio”.
O
ministério do Interior é chefiado por Bismillah Khan, do Panjshir. Sempre foi
homem da Aliança do Norte, com impecáveis credenciais anti-Talibã. E o prédio
vivia cheio de panjshiris (tadjiques), que sempre se opuseram implacavelmente
aos Talibã.
Muito
significativamente, Karzai recusa-se a acusar os Talibã e o Paquistão. “Não
sabemos quem fez isso, se é afegão ou estrangeiro” – disse como se falasse em
código, no domingo, indiferente às descobertas instantâneas do Ministério do
Interior, segundo as quais o crime teria sido obra de um motorista de 25 anos de
nome Abdul Saboor, oriundo do Vale Salaang, que desapareceu.
Abdul
Saboor é nome tadjique muito comum. Salaang é próxima do vale Panjshir. E muitos
grupos da Aliança do Norte também têm dados sinais de profundo desagrado com o
estilo norte-americano de construir a paz.
De
fato, os métodos que os norte-americanos adotaram, ao longo do último ano, de
contato direto (e clandestino) com os Talibã, exacerbaram muito a fragmentação
já existente dentro do Afeganistão.
No
sábado, até o vice-presidente Karim Khalili, que sempre trabalhou bem com os
norte-americanos, já dava sinais de impaciência:
“O
processo [de paz] pode ter sucesso, se for conduzido com transparência, de modo
que os afegãos confiem no processo”.
Não
há dúvidas, o chão do Hindu Kush altera-se perigosamente sob os pés dos
norte-americanos. Os britânicos tampouco estavam preparados para a insurreição
em Cabul, em novembro de 1841. Não perceberam o que significava a multidão que
cercou a Villa onde
Sir Alexander Burnes
morava em Cabul. O diplomata britânico tentou oferecer dinheiro à multidão. Nada
conseguiu. A multidão invadiu a casa e ele e seu irmão ambos assassinados.
Os
britânicos finalmente entenderam que era mais que hora de deixar o Afeganistão,
quando seu acantonamento em Cabul foi cercado, um mês depois. Então, até a
retirada organizada já se tornara problemática.
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.