segunda-feira, 5 de março de 2012

Cabul no fio da navalha


28/2/2012, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A morte em Cabul, no sábado, de dois oficiais norte-americanos de alta patente – um coronel e um major – servindo na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) marcará mudança paradigmática na segurança regional. O Afeganistão continua a ser o “hot spot” número 1 dos EUA, acima de Síria e Irã. 

Se o presidente Barack Obama pensou que fosse hora de os militares norte-americanos “derivarem” [orig. pivot] na direção da Ásia-Pacífico, foi pensamento delirante. Os Talibã ainda têm muito o que dizer na campanha para a reeleição de Obama; a estratégia de conversações de paz com os Talibã exigirá exame detalhado e atento. 

A possibilidade de os EUA conseguirem estabelecer bases militares no país parece muito duvidosa, ante o tsunami de antiamericanismo que varre o Afeganistão. E, em termos imediatos, o que está acontecendo no processo de retirada das tropas dos EUA? 

O embaixador dos EUA em Cabul, Ryan Crocker, respondeu sem hesitar em entrevista à CNN no domingo:

“As tensões estão muito altas por lá. Acho que precisamos esperar que as coisas se acalmem, que voltem a uma atmosfera mais normal e, depois, voltamos ao assunto”.

Diplomatas são pagos para soarem otimistas. Mas, afinal, o que garante que as coisas de fato se acalmem – e, mais importante, por quanto tempo perdurará a calma dos cemitérios, até que chegue o próximo cortejo fúnebre? 

Crocker acrescentou:

“Não é hora para decidir que a missão acabou por aqui. De fato, temos de redobrar nossos esforços. Temos de criara uma situação em que a al-Qaeda não volte. Se agora resolvemos que cansamos, a al-Qaeda e os Talibã ainda não cansaram”.

Hmm. Agora se vê que Crocker falava diretamente ao público eleitor. 

Obama errou ao deixar o Afeganistão aos cuidados do Departamento de Estado e dos seguidores do falecido Richard Holbrooke. Muito claramente, as “desculpas” pelos livros do Corão incinerados por soldados norte-americanos nem de longe impressionaram os afegãos. Houve mais de 30 mortos na violência, entre os quais meia dúzia de soldados dos EUA. E pelo menos outros seis instrutores militares norte-americanos foram feridos. 

O consulado dos EUA na cidade ocidental de Herat, cominada pelos tadjiques, foi atacado. Bases norte-americanas, francesas e norueguesas foram atacadas, inclusive numa região relativamente calma como a província de Samangan no norte. Manifestantes invadiram os escritórios da ONU na cidade de Kunduz, onde vive população mista de pashtuns, uzbeques e tadjiques. Nenhuma região do Afeganistão pode ser considerada segura, nem a cidade de Taloqan, dominada pelos tadjiques, no sopé das montanhas Badakhshan no leste. 

Surgem inúmeras questões políticas. O principal comandante dos EUA, general John Allen ameaçou: aquelas matanças do sábado teriam sido ação de “um covarde que não escapará sem punição”. Mas nada significa, nem aqui nem lá; falou exclusivamente para consumo dos soldados da OTAN. Washington tem de andar sobre um fio tênue entre o dever de agir e o dever de jamais se exceder. 

Morrer pela religião 

Por outro lado, o aspirante a candidato à presidência Newt Gingrich zombou de Obama, que se teria apressado a pedir “desculpas” pela queima dos livros e teria ignorado a morte de americanos, por bandidos do exército afegão. 

É importante que os soldados norte-americanos não se envolvam em “matanças de vingança”. Allen teve de acorrer pessoalmente a uma base avançada dos EUA na província de Nangarhar, para acalmar os soldados. Não estamos no cenário no qual Francis Ford Coppola filmou o épico Apocalypse Now da guerra do Vietnã. Mas já quase se ouve a “Cavalgada das Valquírias”, tocada nos alto-falantes dos helicópteros norte-americanos. 

Não por acaso, só no domingo o presidente Hamid Karzai do Afeganistão quebrou o silêncio e pediu calma. Sabiamente, esperou que os protestos seguissem o próprio curso. Finalmente, Karzai disse, numa conferência de imprensa, que os protestos haviam mostrado que o povo afegão está disposto a morrer por sua religião. Exigiu que os soldados que queimaram o Corão fossem punidos e prometeu tratar da questão com Obama. 

Obama telefonou a Allen depois das matanças do sábado, mas não telefonou a Karzai. Karzai também deixou que o ministro da Defesa Abdul Wardak falasse com seu contraparte nos EUA, Leon Panetta, e tratasse o caso como questão entre militares. 

Washington parece sentir que Karzai deveria ter agido mais cedo, para reduzir os protestos. A secretária de Estado Hillary Clinton disse, no sábado, que os protestos “têm de acabar”. Verdade é que os mortos da tarde de sábado tornam ainda mais complicada o já volátil relacionamento entre Washington e Cabul. 

Haverá dúvida muito disseminada na cabeça dos norte-americanos sobre o soldado afegão. Um afegão armado numa base militar sempre é suicida-bomba potencial. Um veterano general afegão disse à BBC que “o vírus da infiltração espalhou-se como câncer e exige cirurgia. Nenhum outro tratamento deu qualquer resultado”. Está prestes a ser completamente desmoralizado todo o projeto de “construir capacidade” na segurança afegã. 

No clima atual, nem uma relação normal de trabalho entre forças dos EUA e do Afeganistão será fácil. O que significa que a “avançada” [orig. surge] e a estratégia de retirada do Pentágono; a consequente entrega da responsabilidade pela segurança às forças afegãs; e o fim da missão da OTAN em 2014 – tudo isso está em cacos.

Washington e Londres decidiram, quase instantaneamente, retirar seus instrutores e conselheiros que trabalhavam em ministérios e órgãos do governo afegão. Mas a decisão implica paralisar o trabalho efetivamente coordenado de operações de segurança em andamento, apoio técnico e partilhamento de inteligência, o que, por sua vez, faz aprofundarem-se as incertezas. 

Aliados da OTAN assistem a tudo isso. Os alemães já fecharam sua base em Taloqan no nordeste do Afeganistão. Cada membro da OTAN dedica-se hoje a buscar meios para minimizar o risco de ver morrer seus jovens, homens e mulheres, numa guerra sem sentido. O presidente Nicolas Sarkozy já ameaçara com sumária saída dos franceses, e teve de ser convencido a mudar de ideia. Obama tem pouco tempo, agora que a OTAN prepara-se para as comemorações dos 60 anos, na reunião de cúpula em Chicago, em maio. 

Hora de partir 

Obama terá de tomar decisão dramática, sobre conversas de paz com os Talibã, que reivindicaram claramente a autoria das mortes em Cabul. Obama liberou seus “especialistas em Afeganistão” da equipe do falecido Holbrooke, para que batam em todas as portas e vasculhem cada palmo de bosque, na caçada a emissários dos Talibãs ainda interessados em conversações de paz. A frase que Clinton cunhou – “Combater, conversar, construir” – já diz tudo. 

Os Talibã abraçaram apaixonadamente o plano Clinton – pelo que se vê, mais e melhor do que os americanos jamais imaginaram. O porta-voz Mulá Qari Mohammed Yousef Ahmadi revelou essa semana, em entrevista ao jornal saudita Asharq al-Awsat, a interessante novidade de que os Talibã já planejam abrir novos “escritórios políticos”, depois do já inaugurado no Qatar, em resposta a convites que receberam da Arábia Saudita, Líbia, Turquia, Egito “e de todos os lados”. Quanto mais escritórios, melhor. 

Aonde tudo isso está levando? Em retrospecto, o envolvimento unilateral dos EUA no processo de reconciliação afegão foi completo erro. O papel dos EUA dever-se-ia ter limitado a dar assistência a negociações exclusivamente entre os afegãos. 

Mas, calma. Os Talibã realmente fizeram aquilo? O coronel e o major foram mortos, um tiro em cada nuca, no local de trabalho, um dos complexos mais fechados, vigiados e protegidos de todo o Afeganistão. Na sala, havia câmeras de vigilância sempre acionadas e portas e fechaduras especiais. 

O assassino só chegou até eles porque teve passagem livre, acesso liberado até os mais altos níveis da hierarquia da segurança; ou não entraria naquela sala. O general Carsten Jacobsen, porta-voz da Força de Assistência Internacional de Segurança disse que:

“...as perguntas agora são como [o assassino] chegou àquele setor do ministério do Interior, local de tão alta segurança; o que o (ou a) teria motivado a matar a sangue frio”. 

O ministério do Interior é chefiado por Bismillah Khan, do Panjshir. Sempre foi homem da Aliança do Norte, com impecáveis credenciais anti-Talibã. E o prédio vivia cheio de panjshiris (tadjiques), que sempre se opuseram implacavelmente aos Talibã. 

Muito significativamente, Karzai recusa-se a acusar os Talibã e o Paquistão. “Não sabemos quem fez isso, se é afegão ou estrangeiro” – disse como se falasse em código, no domingo, indiferente às descobertas instantâneas do Ministério do Interior, segundo as quais o crime teria sido obra de um motorista de 25 anos de nome Abdul Saboor, oriundo do Vale Salaang, que desapareceu. 

Abdul Saboor é nome tadjique muito comum. Salaang é próxima do vale Panjshir. E muitos grupos da Aliança do Norte também têm dados sinais de profundo desagrado com o estilo norte-americano de construir a paz. 

De fato, os métodos que os norte-americanos adotaram, ao longo do último ano, de contato direto (e clandestino) com os Talibã, exacerbaram muito a fragmentação já existente dentro do Afeganistão.

No sábado, até o vice-presidente Karim Khalili, que sempre trabalhou bem com os norte-americanos, já dava sinais de impaciência:

“O processo [de paz] pode ter sucesso, se for conduzido com transparência, de modo que os afegãos confiem no processo”. 

Não há dúvidas, o chão do Hindu Kush altera-se perigosamente sob os pés dos norte-americanos. Os britânicos tampouco estavam preparados para a insurreição em Cabul, em novembro de 1841. Não perceberam o que significava a multidão que cercou a Villa onde Sir Alexander Burnes morava em Cabul. O diplomata britânico tentou oferecer dinheiro à multidão. Nada conseguiu. A multidão invadiu a casa e ele e seu irmão ambos assassinados. 

Os britânicos finalmente entenderam que era mais que hora de deixar o Afeganistão, quando seu acantonamento em Cabul foi cercado, um mês depois. Então, até a retirada organizada já se tornara problemática.


*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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