Questões
de distribuição da riqueza social
26/3/2012, Thomas Riggins [1], Countercurrents
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Friederich Engels |
“E
o senhor Dühring se auto-homenageia, ele mesmo, ao preocupar-se tão
comoventemente, numa mistura de inocência de pomba e astúcia de cobra, com o
mais-consumo moderado dos Dührings do futuro”.
No penúltimo capítulo de
Anti-Dühring, Engels discute as noções de Dühring, sobre como o produto
social será distribuído no “socialitarismo” dühringuiano: Anti-Dühring,
Parte III, cap. 4.
[2]
A
primeira coisa a lembrar, da discussão prévia sobre “produção” é que Dühring
nada vê de errado no modo capitalista de produzir; e o sistema de comunas pelo
qual ele organizaria a sociedade preservava esse modo de produzir. O grande mal
a ser superado estava no modo de distribuir, na
distribuição.
Engels
jamais suspeitaria que futuros “socialistas” de tradição marxista continuariam
às voltas com os mesmos conceitos (que Engels chamava de “alquimias sociais”),
quase 150 anos, no século 21, quando as “alquimias sociais” atenderiam pelo nome
de “socialismo de mercado”.
Dühring
trata a distribuição como independente da produção. Uma vez produzido o produto
social, o que se faria mediante a observância das necessárias leis operatórias
da produção capitalista, o produto poderia ser distribuído por um ato de
vontade, de modo que assim se faria “justiça universal”. Seria possível porque,
numa comuna, todos devem trabalhar e consumir baseados em que todas as formas de
trabalho teriam valor igual. Esse sistema prevaleceria tanto dentro de cada
comuna como nas relações entre as comunas. Além disso, o valor de troca estaria
ligado ao valor de metais preciosos. Esse sistema seria um passo além das
“noções enevoadas” de pensadores como Marx.
Vejamos
então no que deu essa “justiça universal”. Acompanhando Engels, tomemos uma
comuna modelo de 100 trabalhadores, que trabalham 8h/dia e produzem, cada um,
mercadorias no valor de $100 ou um total de $10.000 em produtos. Digamos que
trabalhem 250 dias/ano, com produção anual de $2,5 milhões. O modelo de “justiça
universal” de Dühring exige que cada trabalhador receba o exato valor de seu
trabalho, que seria 250 x $100 = $25 mil/ano. A comuna lhe paga todo o valor que
ele cria, portanto, como diz Engels, ao final de um ano ou de um século ou de
mil séculos, “a comuna continua tão pobre como no começo”. Não há acumulação
possível nesse sistema. Os indivíduos conseguem acumular, porque um trabalhador
sempre pode se autoprivar de algo e não gastar todo seu dinheiro num dado
período de tempo, mas a sociedade não consegue acumular para qualquer expansão
econômica nem para executar qualquer tipo de programa social.
E
esse não é o único problema da comuna de Dühring. O fato de os trabalhadores
todos receberem salário idêntico implica que um trabalhador solteiro sempre terá
mais dinheiro para economizar que um trabalhador que tenha de sustentar família
numerosa. Gradualmente, ressurgirão os ricos e os pobres, e, eventualmente,
todos os problemas da sociedade capitalista. Não há leis ou regras ou regulações
capazes de deter essa tendência, como exige a “justiça universal” de Dühring,
dado que os trabalhadores também teriam o direito de fazer o que bem entendessem
com o próprio dinheiro.
E, dado que o dinheiro seria a
“encarnação social” do trabalho humano, e operaria pelas leis da economia
capitalista, tanto na comuna dühringuiana como no mundo circundante, Engels
concluiu que todas as regulações e leis que Dühring conceba para controlar o
dinheiro “serão sempre tão impotentes contra ele quanto são impotentes contra a
tabuada ou a composição química da água”.[3]
O
sistema de Dühring não se mantém sobre as próprias pernas, porque ele, não Marx
e outros socialistas, vivem sob o fascínio de “noções enevoadas”. Dühring
absolutamente não entende as condições básicas de operação do sistema
capitalista. Não foi o único, nos dias de Engels, a pretender explicar a
economia sem realmente entender o que se passa no mundo – fenômeno tão rampante
hoje, no século 21, quanto foi no século 19. Por isso, nesse ponto da polêmica
contra Dühring, Engels faz uma pausa, para dar uma aula aos trabalhadores, de
Introdução à Economia para o 1º ano do ginásio.
Para
Engels, a economia capitalista baseia-se na produção de mercadorias e o único
valor que o capitalismo considera é o valor da mercadoria. Dizer que determinada
mercadoria tem tal valor é dizer quatro coisas sobre ela:
(1)
que tem um valor de uso (serve para alguma função socialmente reconhecida);
(2)
que foi produzida privadamente [num exemplo de modelo simples de capitalismo,
não numa economia complexa nem no capitalismo de estado];
(3)
que é produto de trabalho individual, mas “inconscientemente e
involuntariamente” também é um produto social que contém trabalho humano em
geral, avaliado mediante troca; e
(4)
o valor do trabalho social contido naquela mercadoria é avaliado por outra
mercadoria.
Engels
dá o exemplo de um relógio que tenha o mesmo valor que alguns metros de pano,
digamos “50 shillings”.
Isso
significa, apenas, que se mobilizou a mesma quantidade de tempo de trabalho
socialmente necessário para fazer o relógio e para fazer aqueles metros de pano.
Dado que não vivemos numa sociedade de trocas, desenvolveu-se uma mercadoria
especial, usada para aferir os valores sociais relativos de todas as
mercadorias, umas em relação às outras – e a essa mercadoria chamou-se
dinheiro.
A
expressão “valor relativo” é importante. Não se pode determinar o “valor
absoluto” de todas as mercadorias – i.e., calcular o exato valor da força de
trabalho usada para criar cada mercadoria. Isso, por causa da complexidade do
sistema capitalista e das variações do custo do trabalho e do tempo de trabalho
de fábrica para fábrica, de local para local. Com o tempo, todos esses fatores
foram-se organizando e as mercadorias passaram refletir seus respectivos valores
relativos, a quantidade relativa de tempo de trabalho socialmente necessário
para criá-las, que passou a ser expressa em quantidades de dinheiro. Os preços
são reflexo do valor relativo, não do valor absoluto, e podem flutuar muitíssimo
em torno do valor real das mercadorias –, mas ao longo do tempo, acabam por
refletir os valores reais que subjazem nos preços, mas de um modo
relativo.
Engels
oferece um exemplo, da química de seu tempo. Diz que os pesos atômicos absolutos
dos elementos eram desconhecidos; então os cientistas usaram o hidrogênio como
“1” e
expressaram os pesos atômicos relativos dos outros elementos como se fossem
múltiplos do hidrogênio. É como elevar “ouro” [ou o que se use como dinheiro] ao
nível de mercadoria absoluta, equivalente geral de todas as demais mercadorias”
e usá-lo para medir o valor relativo do trabalho humano (social) contido nas
mercadorias.
Também
é importante entender a expressão “trabalho social”. Não é o trabalho individual
cru que determina o valor de uma mercadoria. O que dá às mercadorias o valor que
tenham é a quantidade de trabalho que numa dada sociedade é necessário para
produzir cada mercadoria – a quantidade socialmente necessária de tempo de
trabalho. Pelo menos, isso é “valor”, como expresso numa sociedade
capitalista.
Numa
sociedade comunista, o “valor” não será expresso assim. Uma sociedade comunista
terá economia planejada e os trabalhadores conhecerão o valor da força de
trabalho que devotarão para produzir os produtos de que a sociedade necessita. O
“dinheiro” não será necessário para aferir esse valor.
Engels
observa que o que restará, numa sociedade comunista, do “conceito
político-econômico de valor” será que os trabalhadores/ planejadores
terão conhecimento “dos efeitos úteis dos diversos objetos de uso entre eles e
das quantidades de trabalho necessárias para produzi-los, ao tomar decisões
sobre a produção.”
A
noção de “valor” é a pedra inaugural de uma economia baseada na mercadoria e,
diz Engels, “contém o germe, não só do dinheiro, mas também de todas as formas
mais desenvolvidos da produção e da troca de
mercadorias”.
O
fato de que essa troca acontece mediada pelo dinheiro, e considerando a
complexidade da produção (i.e., que em alguns campos pode estar envolvido mais
ou menos do trabalho socialmente necessário), “admite a possibilidade de que a
troca jamais aconteça; ou de que, pelo menos, não se realize o valor certo”.
Isso é especialmente verdade quando a mercadoria é a própria força de trabalho
que, como qualquer mercadoria, tem seu valor determinado pela quantidade de
tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, mas também pode ser
forçada a trabalhar por períodos mais longos que o tempo socialmente necessário
para que se reproduza.
No
instante em que o dinheiro é inventado no interior de uma sociedade que produza,
sobretudo, mercadorias, vemos logo esse seu “primeiro e mais essencial efeito”:
a mercadorização de todos os aspectos da sociedade na qual, rapidamente, todas
as relações começam a ser convertidas em relações de dinheiro, baseadas em
interesses individuais privados. Engels menciona a dissolução do sistema de
preparo do solo entre os camponeses indianos e o mesmo processo entre camponeses
russos e suas comunidades. Inspirados em Marx, bem se poderia dizer “Privatizem,
privatizem! Como se privatização fosse Deus, o Evangelho, o Papa e a igreja!”
Voltemos
a Dühring e sua turma. Não se pode falar com algum sentido sobre “valor do
trabalho” e como cuidar para que o trabalhador receba “todo o valor”, como faz
Dühring ao expor seu sistema de comunas. Se se mede o valor das mercadorias pelo
trabalho nelas contido, não se pode falar, nos mesmos termos, sobre o valor do
trabalho. Engels diz que o mesmo acontece com o peso.
Pode-se
medir o quanto pesa uma mercadoria, numa balança, pelo peso; mas não se pode
falar em peso do peso. O que Dühring e outros tentam fazer é medir o “valor” do
trabalho, pelos produtos produzidos (quando, de fato, é preciso medir pelo
tempo) e, em seguida, pensam que fazer operar o socialismo é cuidar para que “o
pleno resultado do trabalho” seja pago ao trabalhador. Isso significa que todo o
valor que a classe trabalhadora cria é devolvido em termos de cada indivíduo
receber todo o valor que criou.
Aí,
é claro, nada sobra para os capitalistas. Dühring não vê que “a função mais
progressista da sociedade” é a acumulação social. Por isso, aliás, os marxistas
tanto prezam o Fundo Geral de Consumo [orig. General Consumption Fund
(GCF)]. Os trabalhadores não recebem de volta 100% do valor que criaram. O
‘estado’ ou seja qual for o arranjo social que o substitua, toma uma parte do
valor criado e o guarda no Fundo Geral de Consumo, o qual o dispersa para toda a
sociedade (subsídios para aluguéis e alimento, atendimento à saúde, educação
pública, manutenção e reparo de máquinas etc.) A classe trabalhadora recebe,
assim, o valor que cria, tanto coletivamente como individualmente. O sistema
dühringiano acabaria estagnado e viria abaixo – é nonsense
econômico.
Por
fim, Engels observa que a lei do valor é a “lei fundamental” da produção de
mercadorias e, assim, também do capitalismo – “a mais alta forma” de produzir
mercadoria. A lei do valor afirma que mercadorias criadas por trabalho social
igual são iguais entre si – quer dizer, são mutuamente intercambiáveis. Em
nossos dias, como nos dias de Engels, o único modo de manter válida essa lei, no
capitalismo, “é considerá-la cegamente, como lei da natureza, inerente às coisas
e às relações, e independente do desejo ou da ação dos produtores.”
E
Dühring apela exatamente a essa lei, quando sonha com criar comunas onde
trabalho igual seja trocado por trabalho igual baseado em seu “princípio
universal de justiça”. Pensa que seja possível preservar relações econômicas
capitalistas, e abolir os abusos aos quais essas relações levam. Nesse sentido,
parece Proudhon, que também queria “abolir as consequências reais da lei do
valor, pelos meios mais fantásticos.”
Engels
fecha seu capítulo comparando a busca de Dühring por uma nova sociedade baseada
em suas ideias de distribuições justas, à busca do Don Quixote pelo elmo de
Mambrino que, bem examinado, nunca passou de uma bacia de
barbeiro.
Notas
dos tradutores
[1]
Thomas Riggins é editor associado
da revista Political Affairs
e colaborador da
revista People's World , ambas
online.
*Epígrafe
acrescentada pelos tradutores.
[2]
ENGELS, Friederich,
Anti-Dühring [publicado na revista Vorwärts, de 3/1/1877 a
7/7/1878]. Parte
do livro é acessível em português (e detalhes da tradução). O capítulo aqui comentado (Parte III,
Socialismo; cap. IV, Distribuição), infelizmente, não aparece traduzido
lá, mas pode ser lido em espanhol.
[3]
“O dinheiro impõe a forma de mercadoria e arrasta ao mercado até objetos
produzidos para consumo próprio direto. Assim, a forma mercadoria e o dinheiro
irrompem até no interior doméstico das comunidades diretamente associadas para
produzir, e quebram, um depois do outro, os laços comunitários e fazem explodir
a comunidade num monte de produtores privados” (Engels, Anti-Dühring,
III-4, p. 308).
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