31/5/2003,
Paolo Virno
[1],
Clarín,
Buenos Aires
(trad. ao espanhol de
Cristina Sardoy)
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Paolo Virno |
“A
cooperação social não remunerada, mesmo o pouco que se encontra dela hoje em dia
– e, mesmo que ainda seja vista como fetiche – tem um potente traço de trabalho
humano; recupera para a produção o corpo e a vida de boa qualidade; o sentimento
vivido dos relacionamentos; o prazer de conhecer e compreender; e o desejo de
organizar, com a máxima inteligência tática disponível, a indignação e a ira de
cada um. Dentro dessa zona diacrônica do dia de trabalho também se situa o
problema do hedonismo, da felicidade realizada, do poder restaurado da categoria
do indivíduo, bem além de todas as paródias ideológicas do self”.
(Paolo
Virno, “Sonhadores de uma vida bem-sucedida”, Autonomia,
1980)
“Não
se pode questionar o trabalho assalariado sem introduzir uma poderosa ideia de
liberdade de expressão; não se pode falar a sério de liberdade de expressão sem,
simultaneamente, trabalhar para suprimir o trabalho assalariado”. (Paolo
Virno,
Lessico Postfordista)
Tudo
aconselha a não se deixar arrastar por nenhuma forma de fetichismo no que tenha
a ver com violência e não violência. Claro: é idiota identificar a radicalidade
de uma luta e sua taxa de ilegalidade. Mas também é idiota elevar a indulgência
a critério inoxidável para a ação. Por outro lado, não há por que se preocupar
demais: no que se refere ao conflito, a passagem da latência à visibilidade
sempre se encarrega de alterar os “princípios eternos” adotados de tempos em
tempos pelos políticos profissionais assalariados.
Quanto
à velha, mas nunca esgotada, questão das formas de luta, a discussão anda em
círculos, dando lugar a sofismas simplórios e a citações sempre repetidas. Se se
analisa bem, a questão sofre os efeitos em cadeia de uma mudança drástica de
paradigma teórico. Uma tal mudança que é capaz de separar o que parecia
inseparável e juntar o que parecia vivem em antípodas. Em resumo: a luta contra
o trabalho assalariado, diferente da luta contra a tirania, já nada tem a ver
com a enfática perspectiva da “tomada do poder”.
Justamente
por causa das características já muito avançadas dessa luta, aparece como
transformação inteiramente “social”, que enfrenta bem de perto o “poder”, mas
sem sonhar com alguma organização alternativa do Estado. Pelo contrário, visa a
fazer contrair-se e a extinguir toda forma de mando sobre a atividade de homens
e mulheres e, por tanto, nu e cru, visa a extinguir o Estado. É como se se
dissesse: antes, a “revolução política” foi considerada premissa inevitável para
modificar e transformar as relações sociais; agora esse botim que se colhia
depois, passa a ser o primeiro passo, preliminar.
A
luta só pode levar a termo sua índole destrutiva na medida em que já surge outro
modo de viver, de comunicar, inclusive de produzir. Só quando já há algo a
perder, além das próprias cadeias. O tema da violência, idolatrado e exorcizado,
sempre esteve, contudo, associado aos dois gumes da “tomada do poder”. O que
acontece quando se considera a forma existente de Estado como a última forma
possível, digna de corromper-se e cair em ruínas, mas não – não, certamente não
– de ser substituída por algum Hiperestado “de todo o povo”? A não violência
passaria por acaso a ser o novo culto a ser ritualmente pregado e praticado? Não
entendo por que devesse ser assim.
Em
todo caso, há aqui um paradoxo imprevisto: o recurso à força deve ser concebido
em relação a uma ordem positiva que se deve defender e salvaguardar. O êxodo do
trabalho assalariado não é gesto algébrico, não é o que resta no côncavo quando
de lá se retira o convexo. Fugindo do trabalho assalariado, nos obrigamos a
construir relações sociais diferentes e novas formas de vida: é preciso amar
muito ativamente o presente e é preciso inventar muito. Portanto, o conflito se
travará para preservar esse “novo” que, no processo, foi sendo instituído.
Violência, se há, não acontece contra as “manhãs que cantam”, mas para prolongar
algo que já existe mesmo que exista informalmente.
Ante
a hipocrisia ou a credulidade distraída que marcam hoje a discussão sobre o que
seria legal ou ilegal, é preciso voltar a uma categoria pré-moderna: o “ius
resistentiae” [direito de resistência, direito de resistir].
Com
essa expressão, não se entendia no Direito Medieval, é claro, a óbvia faculdade
de defender-se se agredido (a chamada ‘legítima defesa’). Mas tampouco se
entendia uma sublevação geral contra o poder constituído. É claramente diferente
de
seditio
e rebellio, casos em que o levante dá-se contra o conjunto das
instituições vigentes, com o objetivo de edificar outras.
O
“direito de resistir” tem significado bastante específico e peculiar. É (ou pode
ser) exercido quando uma corporação de artesãos, ou toda uma comunidade ou,
mesmo, quando um só indivíduo entende, sente, vê que algumas de suas
prerrogativas positivas, válidas de fato ou por tradição, foram
modificadas.
O
principal ponto do
ius resistentiae (direito de resistir, direito de
resistência), o que constitui seu principal interesse em termos da questão da
legalidade ou ilegalidade, é a defesa de uma transformação efetiva, tangível,
“já” ocorrida, das formas de vida. Os passos grandes ou pequenos, os
deslizamentos ou as avalanches, da luta contra o trabalho assalariado admitem
ilimitado direito de resistir – mas excluem qualquer teoria da guerra
civil.
Nota
dos tradutores
[1]
Leia mais sobre
Paolo Virno (Nápoles,
1952). Veja também a relação de suas obras traduzidas ao inglês
e francês.
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