21/1/2012, Dan
McQuillan, Media and Social
Change
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Dan McQuillan |
Como
entender as implicações políticas dos Anonymous? Como explicar a “atmosfera de
contestação” mediada por computador, que liga a Primavera Árabe e o movimento Occupy global? Sugiro aqui um exame da
história esquecida dos movimentos antinomistas, sobretudo dos radicais da Guerra
Civil Inglesa.
Os
próprios Anonymous resistem a
qualquer definição fácil; é um nome, invocado para coordenar e (des) identificar
um conjunto de ações frouxamente conectadas entre elas. É um meme, uma cultura,
um modo de organização
online – uma máscara mal
aderida a rostos que, sim, como se sabe, inclui um conjunto de hackers excepcionalmente competentes. Nunca foi
fácil identificar um antinomista – é quem “prega que, se o Evangelho traz a
palavra da graça, a lei moral não obriga ninguém, porque basta a fé para
assegurar a salvação”; e “antinomista é aquele que rejeita qualquer moralidade
socialmente estabelecida”.
LulzSec
& os
Ranters
Os Ranters
foram antinomistas ativos entre 1640 e 1660, tempo de torvelinho e revolução na
Inglaterra. A volta deles hoje parece bem claramente sinalizada: a retórica do
LulzSec, alguma espécie de subdivisão
dos Anonymous, é bem clara versão à
moda dos hackers dos panfletos de Abiezer Coppe [2],
LulzSec |
De
LuzSec:
“Somos Lulz
Security, e esse é nosso comunicado final, porque hoje é data significativa
para nós. Há 50 dias, abrimos velas de nosso humilde barco, rumo a um oceano
difícil, brutal: a Internet. A máquina de ódio, a máquina do amor, a máquina
movida por muitas máquinas. Somos parte dela, para fazê-la crescer, e deixar que
ela cresça dentro de nós”. [3]
E
de Coppe:
“E o mar, a terra, sim, agora tudo se torna possível. E
as coisas que foram, são e algum dia serão visíveis... Mas cuidado, cuidado! Ele
ergue-se hoje com uma testemunha, para salvar Sion com vingança, ou para
confundir e arrastar todas as coisas na direção delas mesmas”. [4]
Reavaliar
o 4chan
Avaliar conexões profundas entre a dissidência digital e
o antinominismo implica examinar as raízes dos Anonymous no 4chan e no portal
/b/ (o painel “random”) [5]. /b/ é
marcado por imagens escuras e chocantes, carregado de piadas internas, cujos
membros autodesignam-se como “/b/tards” [6 ].
“À primeira vista, /b/ parece caótico e ofensivo. E é,
em certo sentido. Em termos da antropologia de Turner, pode-se ver /b/ como
espaço limítrofe em que se cumpre um ritual de iniciação sempre em modificação”
[7]. “Não tem qualquer “política de regras” e exibe a
floreada rejeição de todas as convenções de um antinomismo que já coloria os Anonymous, enquanto iam evoluindo do
4chan para o ativismo”. (Gabriella Coleman, “Anonymous: Indiscutivelmente
discutível...”) [8]
Pode-se assim entender o compromisso fundacional dos Anonymous com a livre manifestação do
pensamento (como disse um Anon: “a
livre manifestação de ideias não é negociável” [9]) não como liberalismo adolescente geekliberalism, nem como antiestatismo, mas
como a robustez que houve antes dessas modernas categorias políticas, livre
manifestação de pensamento como se viu nos Ranters, Levellers [10]
e Diggers [11]. O laço histórico entre essa forma de livre discurso e
a luta contra todas as tiranias permite entender melhor, como menos
surpreendente, a OpTunisia [12], quando os Anonymous, repentinamente, saltaram, do
hackerativismo online, para o mundo difícil da
política disputada nas ruas, e para a luta para derrubar a ditadura na
Tunísia.
Commons
&
heresia
Os Anonymous foram um elo direto entre a Primavera Árabe e o movimento Occupy global, com presença visível nos acampamentos e protestos, tanto quanto online. Mas são apenas uma parte de uma pluralidade de correntes que fazem eco aos Dissenters [aprox. “dissidentes”] ingleses do Interregnum [13]. Quem primeiro “ocupou” a Colina de St. George, em 1649, foram os Diggers, em nome de “fazer da terra um tesouro comum de todos” [14]; e foram os Levellers que pela primeira vez falaram, nos debates de Putney, exigindo transparência democrática e financeira dos governos; exigências que se ouvem também no discurso do movimento Occupy.
Os Anonymous foram um elo direto entre a Primavera Árabe e o movimento Occupy global, com presença visível nos acampamentos e protestos, tanto quanto online. Mas são apenas uma parte de uma pluralidade de correntes que fazem eco aos Dissenters [aprox. “dissidentes”] ingleses do Interregnum [13]. Quem primeiro “ocupou” a Colina de St. George, em 1649, foram os Diggers, em nome de “fazer da terra um tesouro comum de todos” [14]; e foram os Levellers que pela primeira vez falaram, nos debates de Putney, exigindo transparência democrática e financeira dos governos; exigências que se ouvem também no discurso do movimento Occupy.
Até a tensão que hoje se vê entre diferentes correntes
da cultura digital tem paralelos nas lutas dos anos 1640s. As discussões entre
Gerard Winstanley, porta-voz dos Diggers, e os Ranters
(para Winstalnley, os “princípios dos Ranters” [15]
denotavam falta geral de valores morais [no
Brasil, fala-se da falta de uma tal de “ética na política”, que ninguém sabe o
que significa (NTs)] e de moderação no usufruto dos prazeres mundanos –
discussões que se veem também entre os Creative Commons e os hackerativistas.
Como se viu no antinomismo, qualquer movimento que se
sirva hoje das ferramentas da computação e na internet tenderiam sempre à
heresia aos olhos do
Establishment (ver a
transcrição da palestra de Cory Doctorow “The Coming War on General Computation”
[16]). Essa moderna heresia aparece praticada nas atividades
de hacking – “o desafio
intelectual de superar, criativamente, limitações em geral” e “tática para
transformar elementos pre-existentes, para evocar significados não originalmente
previstos na matéria prima” [17]. Como diz
Otto von Busch em Abstract
Hacktivism:
“Hacking
e heresia podem ser vistos como duas práticas de reinterpretação
distribuída de sistemas e protocolos políticos, especialmente em relação a
sistemas de redes orgânicas nos quais o hacker (o herege) reivindica o direito de ser
coautor e coprogramador”. [18]
Los Indignados (Puerta del Sol - Madri) |
Los Indignados
O pequeno grupo que iniciou o catalítico acampamento pre-Occupy em Madrid em maio de 2011 incluía vários hackers. Naquele momento se misturaram os hacker ativismos técnicos e abstratos:
O pequeno grupo que iniciou o catalítico acampamento pre-Occupy em Madrid em maio de 2011 incluía vários hackers. Naquele momento se misturaram os hacker ativismos técnicos e abstratos:
“Nas primeiras horas da madrugada de 16 de maio,
aconteceu algo inesperado. Um grupo de cerca de 40 manifestantes decidiram
montar acampamento na praça central de Madrid, Puerta del Sol, em vez de voltar
para casa. Um deles, do grupo
hacker Isaac Hacksimov,
explicou mais tarde: ‘Só fizemos um gesto, que quebrou o bloqueio mental
coletivo’. Temendo que as autoridades os expulsassem da praça, distribuíram
mensagens pela internet, pedindo apoio. O primeiro a chegar para juntar-se a
eles soubera do acampamento pelo Twitter”. [19]
Tomados
em conjunto, esses desenvolvimentos tornaram-se típicos do momento e
generalizaram-se, ao erguer a cortina que ocultava formas sociais esquecidas,
deixadas do lado de fora do quadro da globalização capitalista. Comentando a
dinâmica fluida da nova política, a Virtual Policy Network estabelece um
laço bem claro com movimentos da era pré-industrial:
“Uma nova política emergiu das facilidades que a
internet oferece, e movimentos ágeis estão continuamente emergindo do fluxo
subjacente de atos de micropolítica (...). Se se examinam por dentro esses
movimentos, vê-se complexidade e pode-se detectar um núcleo de comportamentos
humanos pré-industriais mediados através de uma sociedade global digitalmente
interconectada”. [20]
O Exodus
Por
tudo isso, o que se deve esperar de uma atmosfera antonomista de dissidência que
sopra através da internet e condensa-se nas ruas e praças? Se nossos English Dissenters podem oferecer alguma
orientação, haverá nos novos movimentos inovação baseada nos commons. Como Charlie Leadbeater
destaca em Digging for the
Future,
“... os
Levellers queriam
aumentar a produção de alimentos mediante a propriedade coletiva e o uso
coletivo da terra, que permitiria que se implantassem novas tecnologias”; e
acreditavam que “aquele conhecimento, inclusive da palavra de Deus, surgiria de
dentro para fora, sem ter de ser metido goela abaixo pelos padres. Uma
comunidade cooperativa produtiva criaria e partilharia conhecimento, em vez de
ser governada pelo dogma do saber de uma pequena elite”. [21]
Como
Nicolas Mendoza conclui sobre 4chan &
Wikileaks:
“Em vez de resultar de uma violenta luta de classes para
pôr fim à hegemonia capitalista, talvez seja o resultado de um lento processo de
migração, possibilitado pela internet, um ‘gotejar’ (usando mais uma vez o
logotipo de WikiLeaks e a metáfora do vazemento, do gotejar) na direção de
sociedades que se organizam em torno de commons”. [22].
Não seria a primeira vez que se veria um êxodo. Como
David Graeber destaca em Fragments
of an Anarchist Anthropology [23], há exemplos históricos de retirada,
como há exemplos de sociedades que resistiram contra a hierarquia e a
acumulação. Mesmo microexemplos como os Crop Mob [24]
mostram
que as ferramentas que a internet oferece podem garantir suaporte a modalidades
pré-industriais de agricultura e a Foundation for P2P Alternatives cataloga
incansavelmente, em todo o mundo, protótipos de alternativas peer-to-peer [entre usuários das redes], “uma dinâmica
relacional na qual as pessoas trocam entre elas, não como indivíduos, mas
mediante um commons (...) em escala global, possibilitado pelas
tecnologias de internet”. [25]
Atmosferas
antinomistas
Atualmente,
nas ruas e praças tocadas por ventos digitias, há momentos liminares do tipo que
o antropólogo John Postill acompanhou com os
Indignados da
Espanha:
“Muitos participantes relataram reações psicossomáticas,
como arrepios e lágrimas de alegria. Sinto como se um interruptor tivesse sido
acionado, uma cadeia de gestalt,
e que despertei para uma nova realidade
política. Já não era mero observador participantes do movimento: eu era o
movimento. Daquele momento em diante, virais como #takethesquare ou #Iam15M (#yosoy15M) adquiriram para mim – e para
vários outros “convertidos” – um significado muito diferente: tornaram-se
constitutivos do novo paradigma que agora organiza minha compreensão êmica [26]
do
movimento”. [27]
Gabriella (Biella) Coleman |
Gabriella (Biella) Coleman identificou a ressonância dos
Anonymous com as formas de rede
horizontal e descentralizada, de consenso democrático não hierárquico
[28], padrão
que se reproduz bem claramente em Occupy. Mas em vez de focar na forma
organizacional, podemos nos abrir para suas circulações, seus ecos, seus tempos e suas transmutações. Concentrando-nos nas
texturas e densidades, podem-se ver os dois movimentos, Anonymous e Occupy, como crescimentos do que
Kathleen Stewart descreve como uma atmosfera:
“Uma atmosfera não é um contexto inerte, mas um campo de
força no qual as pessoas apercebem-se. Não é efeito de outras forças, mas um
afeto vivido – uma capacidade para afetar e ser afetado que empurra um presente
para uma composição, uma expressividade, o senso de potencialidade e evento. É
um afinamento dos sentidos, dos trabalhos e imaginários para modos potenciais de
viver nas coisas, ou de viver através das coisas. Um viver através que se mostra
na precariedade gerativa das sensibilidades comuns de não saber o que nos agita,
não ser capaz de ficar parado, sentir-se exaurido, sentir que se ficou para trás
ou que se está muito além da curva, sentir-se enamorado de alguma forma de vida
que surge, estar prontos para que algo – qualquer coisa – aconteça”.
[29]
Os sempre ativados antecedentes dos Ranters foram as
ideias da Confraria do Espírito Livre [orig.
Brethren of the Free Spirit] [30], uma heresia antinomiana e igualitarista que se
propagou pela Europa nos séculos 13 e 14, que desafiou todos os poderes
políticos e sobreviveu a grandes ondas de repressão. Ao propor paralelos entre
os antinomistas de 1649 e o espírito dos Anonymous, sugiro, talvez, a emergência
de uma Confraria da Internet Livre.
Ver também
“Keiser Report: D.I.C.s and Hackers (E257)”, Russia
Today (entrevista)
[1]
Antinomismo
(termo cunhado
por Lutero, do grego
anti
[contra]
+
nomós
[lei]) é a
corrente de ideias que afirma que, dado que o evangelho é portador da graça, a
lei moral é inútil e não obriga ninguém, porque, para alcançar a salvação, basta
a fé. Embora o conceito esteja relacionado à crença fundacional do
Protestantismo da
Sola
Fide
[ap. “só a
fé”] que se autojustifica exclusivamente pela fé em Cristo, os antinomistas
levaram ao extremo esse conceito, visto ainda hoje por alguns como a noção de
que a obediência a um código religioso assegura a salvação. Para os cristãos, o
antinomismo é considerado heresia, embora a discussão jamais tenha sido
oficialmente encerrada. O termo “antinomista” começou a circular logo depois da
Reforma Protestante (c.1517), usado principalmente em sentido pejorativo contra
seitas e pensadores cristãos. Lutero, por exemplo, pregava que a fé se
autojustifica, mas, mesmo assim, sempre se opôs ao antinomismo (p. ex.,
em
Against the
Antinomians,
1539). Hoje, poucos grupos e seitas religiosas, exceto cristãos e judeus
anarquistas, apresentam-se como “antinomistas”.
[2]
Abiezer
Coppe
(1619-72). Pregador Batista, muito ativo durante as Guerras Civis Inglesas. Em
1647, Coppe viveu uma “iluminação espiritual”: depois de quatro dias em transe,
acordou convencido de ter sido transformado em “filho de Deus”, ao qual já não
se aplicavam as convenções sociais. Certo de que, com o Apocalipse já próximo,
tornavam-se irrelevantes as velhas noções de pecado, reuniu à sua volta vários
seguidores, que, com “suas práticas lascivas de beber, blasfemar e frequentar
prostíbulos”, logo alarmaram os Puritanos, entre os quais o pastor Richard
Baxter. Coppe também foi denunciado pela prática da nudez, do adultério e da
poligamia.
[4] A Fiery Flying Roll, Abiezer Coppe, Londres, 1650, em:
[5]
Em http://boards.4chan.org/b/
[7] 31/12/2011, “I don’t speak on behalf of…” Agile Movements, Fluid
Politics and the new Democratic Bargain”, em: http://www.virtualpolicy.net/agilemovementsfluidpolitics.html.
[10]
Os Levellers [lit. “niveladores”] eram grupos ingleses
que reivindicavam, entre outras coisas, o voto universal masculino, a sociedade
de pequenos proprietários e a defesa da igualdade de propriedade
(não-coletivista). Mesmo depois de servirem de apoio para executar Carlos I,
durante as Guerras Civis Inglesas, foram duramente reprimidos por Oliver
Cromwell em sua "república", a partir de 1653.
[11]
Os Diggers [lit. “escavadores”] foram um movimento de
trabalhadores rurais pobres, liderado por Gerrard Winstanley, ativos entre 1649
e 1650 na Inglaterra, e que pretendiam substituir a ordem feudal, recentemente
derrotada na Guerra Civil Inglesa, por uma sociedade socialista, agrária e
cristã anticlerical. Tb se denominavam osTrue Levellers [lit. “Niveladores Verdadeiros”], por
pretender levar a igualdade política proposta pelos Levellers (nota 10) também à esfera econômica [mais em
HILL, Christopher. O Mundo de
Ponta-Cabeça. São Paulo: Cia das Letras, 1987].
[26]
É expressão que os linguistas usam muito. Apareceu pela primeira vez em artigo
do linguista norte-americano Kenneth L. Pike, que falou de “fonêmica”, para
designar os saberes reunidos no campo do estudo dos fonemas, quando esses
conhecimentos apenas começavam a ser construídos. A frase “minha
compreensão êmica do movimento”, deve ser interpretada como
“compreensão do movimento a partir de saberes reunidos no próprio
movimento”.
[29]
Em: http://thefutureofoccupy.org/2011/11/18/collaborative-thinking-is-an-essential-part-of-our-movement/
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