Publicado
em 29/03/2012 por Urariano Motta*
Recife (PE) - No calor das primeiras horas depois da
morte de Millôr Fernandes, é natural que as palavras sejam todas de glória para
ele, e mais natural ainda que o amor a sua pessoa ganhe todas as cores do
exagero no sentimento. Ora, se na mesma semana em que parte Chico Anysio se
disse que Chico era melhor que Chaplin, o que dizer de um humorista da palavra?
No mínimo, que melhorou Shakespeare nas traduções em português, ou que era um
Bernard Shaw, além de gênio inexcedível no desenho em todo o
mundo.
Manifestações assim de
exagero não comportam estranheza em quem lê o obituário. Apenas cabe, em quem as
lê, a surpresa de que artista desse valor não tenha sido notado em vida com tais
magnificências. Se os sobreviventes não exageram agora, foram relapsos,
mesquinhos e insensíveis antes. Mas esse não é o ponto, que procurarei destacar.
Como uma lembrança distante dos famosos retratos 3 x 4 de Millôr, tentarei
esboçar algo em preto e branco da sua pessoa, no espaço estreito de duas
páginas.
É
chover no molhado falar de suas qualidades como escritor, dono de humor moderno
e de vanguarda, gênio no desenho e nas mais diversas criações. Se estivesse
vivo, ele diria: “sim, mas fale ainda assim, chover no molhado tem lá sua
graça”.
Aquilo que se disse de
Chico Anysio, que era homem de mais de 200 personagens, porque fazia mais de 200
caricaturas, de Millôr pode ser dito que era mais de 200 criadores, sem apoio da
muleta da maquiagem. Ele era tão bom nos textos para sorrir quanto melhor nos
sérios, como no retrato de Sérgio Porto e nas frases sobre a sua infância
dickensiana. Esse chover no molhado, é fato, ainda não recebeu a consagração das
academias, talvez como uma resposta delas à antipatia de Millôr pelos estudos
acadêmicos.
De
passagem anoto que a mitificação em vida de Millôr não se deu por falta de
esforços próprios. Em trecho de sua autobiografia
escreveu:
“1943
- Começam os anos gloriosos da revista “ O Cruzeiro”, que um grupo de meninos
levaria dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a
750.000”.
E um
dos meninos era ele.
Isso
foi repetido nos obituários da televisão, mas é mais falso que nota de milhão de
cruzeiros. Millôr estava em O Cruzeiro na época, mas é tão responsável pelo
sucesso da revista quanto um relógio é responsável pela hora da passagem do
trem.
Notem: a sua página, O
Pif-Paf, em O Cruzeiro, não conseguia grande leitura porque a popularidade
sempre rejeitou a vanguarda. O que era bem diferente do maior sucesso de humor
entre o povo até hoje, em todo o Brasil: O Amigo da Onça, de Péricles Maranhão.
Péricles, mais a dupla David Nasser-Jean Manzon, repórteres desonestos e
sensacionalistas ao extremo, é que foram os responsáveis pelo sucesso de O
Cruzeiro.
E
agora, alcançamos o ponto mais sério. Com o tempo, o que era graça se tornou
azedume, ou gracinha para os amigos reacionários bem postos. Sobre o Barão de
Itararé, o primeiro humorista moderno do Brasil, na entrevista ao Roda Viva
Millôr declarou:
“Agora,
querer fazer com que eu engula o Barão de Itararé porque está engolido há 50
anos, é um idiota. A moça quer saber, é um idiota. Faz uns trocadilhos bons,
meia dúzia de trocadilhos imbecis...”.
E mais, sobre Lula, em outra
oportunidade:
“É
evidente que a ignorância lhe subiu à cabeça, não tem dúvida nenhuma. Porque de
repente ele começou a se sentir culto, falar sobre tudo.”.
Socialismo:
“A
ideia do socialismo é incrível, mas está fadada a não dar certo. Porque o ser
humano não é isso. Ele é capitalista na essência”.
E esta pérola sobre o
feminismo:
“O
melhor movimento feminino ainda é o dos
quadris”.
É uma particular tragédia que
homens brilhantes, criadores na maturidade, se tornem primeiro uma caricatura do
próprio gênio. Que respondam ao mercado com uma transformação da originalidade
em uma fórmula consagrada pela fama. Já vimos esse filme em Gabriel García
Márquez, por exemplo.
No caso de Millôr, ou de Gilberto
Freyre, entre outros, mais adiante passam da caricatura à negação de si mesmos,
como num lento apagar de luzes da velhice, em fade-out.
Para nossa felicidade, resta a
obra, o fogo da rebeldia dos melhores anos. Em Millôr há de sobreviver o
prosador das Fábulas Fabulosas,
de A história do paraíso, do
revolucionário O Pif-Paf. E de modo mais claro, o
frasista, que profetizou:
“A
ocasião em que a inteligência do homem mais cresce, sua bondade alcança limites
insuspeitados e seu caráter uma pureza inimaginável é nas primeiras 24 horas
depois da sua morte”.
Urariano
Motta* é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e
Continente também já veicularam seus textos. Autor
de Soledad
no Recife (Boitempo,
2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em
1973, e Os
corações futuristas (Recife,
Bagaço, 1997).
Enviado
por Direto da
Redação
"Há os que são Flamengo doente.
ResponderExcluirEu sou Fluminense saudável!"
ass. M. Fernandes.