25/3/2012, Pepe Escobar,
Al-Jazeera, Qatar
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Into this house we're born
Into this world we're thrown
Like a dog without a bone
An actor on loan
Riders on the Storm, Jim Morrison, The Doors, 1971 [1]
Pepe Escobar |
Ver
também
20/2/2012, Pepe Escobar, “Barack
e Mitt, na dança do dragão”
18/3/2012,
MK Bhadrakumar, “Mao
sai do palco. Viva o maoísmo!”
__________________________________
Hong
Kong. Poucos
fora da China conhecem bem a nevoenta Chongqing, no alto rio Yangtze, no coração
da província Sichuan. Pois bem. É a maior megalópole do planeta, 30 milhões de
habitantes, e crescendo. Vive mais gente em Chongqing que em todo o Iraque, ou
na Malásia.
E
então, de repente, Chongqing virou o assunto da hora na cidade (global), como
uma nova Roma distópica, graças a um monumental escândalo político que eclodiu
durante o Congresso Nacional do Povo, dia 15/3: a queda de Bo Xilai, membro do
Politburo e secretário do Partido para Chongqing.
Bo,
astuto e figura ‘midiática’, era uma espécie de estrela pop na China,
principal promotor do chamado “Modelo Chongqing”: uma volta ao passado, de
inspiração parcialmente maoísta, para maior controle estatal sobre a economia,
melhores serviços sociais, dura repressão à máfia local e esforço para
redistribuir riqueza, para amenizar a desigualdade social.
Apesar
de ser “príncipe coroado” – filho de um dos oito imortais da geração
revolucionária de Mao Tse Tung – Bo cumpriu todo o percurso da hiper complexa
hierarquia do partido, desde baixo até o poder e a fama.
Em
2007, foi promovido, de ministro do Comércio, ao comando do Partido
em Chongqing.
O que mais queria, seu Santo Graal, era ser admitido ao Comitê
Dirigente, de nove membros, do Politburo (25 membros) – o pessoal que realmente
governa a China Inc., como muito seleta oligarquia.
A
arma preferida de Bo sempre foi bastante sofisticada: sua campanha política
neomaoísta de purificação (nesse caso, livrar-se da máfia local) – inspirada na
Revolução Cultural de Mao (1966-1976) reuniu muitos intelectuais locais, como
assessores e conselheiros. Não surpreende que se tenha tornado furiosamente
popular. Dezenas de milhões de chineses ressentem-se profundamente da arrogância
dos novos ricos – alguns dos quais fizeram fortuna por meios tão rápidos quanto
suspeitos; e qualquer discurso anticorrupção, combinado à luta contra a
desigualdade social, não teria como dar errado.
O
problema é que, aos olhos da liderança coletiva em Pequim, sim, deu tudo errado.
E veio a queda – precipitada pela deserção e subsequente prisão do principal
assessor de Bo, Wang Lijun, que procurou abrigo no, nada mais nada menos, prédio
do Consulado dos EUA em Chengdu, a totalmente frenética capital da província
Sichuan.
Trata-se
de uma Ferrari? Ou será um tanque blindado?
Ansiosa para decifrar o que
estaria em trânsito, de Sichuan até os corredores do poder em Pequim, a
mídia-empresa ocidental bebeu diretamente de fonte descomunalmente
conspiracional, onde encontrou farta coleção de tolices, do muito tolo [2] ao ainda
muito mais tolo [3] , com
direito a píncaros de tolice [4].
As
páginas chinesas de micro-blogging como Sina Weibo e QQ Weibo, e o mural
de notícias do browser Baidu, até especularam um pouco sobre
“anormalidades” em Pequim, na noite de 19/3. Mas, se você sabe configurar a
coisa, é muito fácil acessar Google,
YouTube e Facebook na China. A ideia de que
pudesse ter havido tanques nas ruas de Pequim, sem que ninguém nem visse nem
fotografasse é, simplesmente, grotesca, cômica.
Quase
sempre, para encontrar pistas do que realmente esteja acontecendo na atmosfera
rarefeita dos círculos internos da política chinesa, é preciso consultar a mídia
oficial. Significativamente, num ensaio não assinado, que se disseminou como
vírus, o jornal Global Times fez referência ao “incidente de Chongqing”
sem qualquer referência a Bo, e conclamou o povo chinês a confiar na liderança
do Partido.
O
que nos obriga à pergunta inevitável: qual é, nesse momento, a linha do
Partido?
Leitura
das folhas de chá diz-nos que a queda de Bo aconteceu apenas um dia antes de o
premiê Wen Jiabao anunciar oficialmente que a China precisava de profundas
reformas políticas.
É
dizer pouco, para dizer o mínimo. A China está hoje no olho do furacão não só de
uma transição política que acontece pela primeira vez nessa década; está também
no olho do furacão de uma transição tectônica que acontece pela primeira vez na
atual geração: transita de um modelo econômico bem-sucedido modelado por
investimento massivo, para a realidade emergente de uma sociedade de
consumo.
Muito evidentemente, o Partido
mostra-se mais que ultra cauteloso, no movimento Deng-Xiaopinguesco de “cruzar o
rio sentindo as pedras”. E bem nessa hora, surge o carismático Bo – uma espécie
de “Slick Willie” Clinton [5] chinês
– e desnuda todas as indecisões da cúpula. A cúpula, simplesmente, não conseguiu
lidar com ele.
Ou o
consenso ou o caos
Por milênios, a China viveu sob o
feitiço do “Mandato dos Céus [orig. Mandate of Heaven] [6]. Se o
Imperador perdesse o divino mandato, perdia a legitimidade e tinha de deixar o
trono. Nesse sentido, Mao foi O Último Imperador. O Pequeno Timoneiro Deng
Xiaoping – um dos gigantes do século 20, o homem que empurrou a China para a
pós-modernidade – detestava encenações imperiais. Seus sucessores, Jiang Zemin e
Hu Jintao, foram ainda mais discretos e
autoapagados.
O
Partido Comunista insiste absolutamente em se autodescrever como liderança
coletiva meritocrática confucionista, que administra por consenso o país. O
“consenso” acontece, sobretudo, entre os 25 membros do Politburo; e os nove
membros do Comitê Dirigente são os
decisores/implementadores.
Qualquer
crítica, na China, que conteste a legitimidade política do partido, é esmagada
sem piedade. Mas o Partido, em muitas instâncias, admite que o povo manifeste,
com relativa liberdade, a angústia social e econômica. E ver-se-á acontecer
doravante, cada vez mais frequentemente, com a nova classe média urbana que é a
que mais fala sempre contra os incontáveis casos de corrupção dentro do
Partido.
Nenhum
terremoto político impedirá que Xi Jinping, atual vice-presidente, seja nomeado
secretário-geral do Partido nesse outono e presidente em março de 2013. Em
termos de personalidade, Xi é o oposto de Bo, uma espécie de “progressista
cauteloso” pragmático – em contexto chinês –, e inimigo de “conversa vazia”. Seu
motto pessoal é “Orgulhe-se, mas sem
complacência”.
Xi
foi escolhido não só pelos nove poderosos membros do Comitê Dirigente, mas em
muito ampla eleição interna. Já demonstrou competência para governar em vários
níveis da administração: vila, condado, cidade e
província.
Governou
três regiões ultra dinâmicas da China – Fujian, Zhejiang e Xangai, essa espécie
de usina chinesa. Equivale, em termos ocidentais, a ter sido primeiro-ministro,
sucessivamente, da Grã-Bretanha, da França e da Alemanha.
Xi,
não por acaso, publicou artigo recentemente em que enterra a abordagem de Bo, e
condena líderes que “jogam para as massas” ou “almejam fama e fortuna”; e
exortou a que se busque o consenso – políticas “decididas segundo o saber
coletivo, mediante procedimentos estritos e claros”. Em outras palavras, é do
nosso jeito (liderança coletiva), ou é de cima para baixo (o que, em contexto
chinês, significa luan, o caos).
Quando
os modelos colidem
Dentro
da China, o modelo Guangdong é o principal concorrente do modelo Chongqing.
Guangdong é uma Meca provincial no sul da China, próxima de Hong Kong; ali se
pratica o mais frenético neoliberalismo pró-mercado.
A
Economia de Bo privilegiou a competição entre empresas estatais (por exemplo,
não se permitem comerciais publicitários na TV). O quê, segundo a oligarquia de
Pequim, minou a própria base do milagre chinês: um estado de certo modo
reduzido, que não se interessa por intervir nos negócios.
O
modelo Guangdong enfatiza o crescimento mais alucinado, combinado com espaço
suficiente para reformas políticas significativas, com governo sempre mais
transparente. Não por acaso, Bo foi substituído em Chongqing por Zhang Dejiang,
um vice-chanceler que estava encarregado da política industrial e que,
significativamente, foi ex-secretário do Partido em Guangdong.
Traduzindo:
para a liderança do Partido, a via a seguir é o neoliberalismo chinês; é mais
importante, até, que a luta contra a corrupção e que a luta contra a
desigualdade social. Por quê? Porque o dinamismo do mercado – estimulado por
algumas reformas – deve reinar; afinal, foi a ferramenta que fez a China crescer
à velocidade que todos viram.
A
trama oculta de um trilhão de yuan é que o neoliberalismo ocidental está sendo
imposto na China, mas contra a vontade de muita gente. A prova? Se houvesse
eleições de estilo ocidental em Chongqing, Bo seria eleito por uma avalanche de
votos.
A
China também está vendo Hong Kong às voltas com, exatamente, essas “reformas
políticas” de que falou Wen Jiabao; na eleição “controlada”, não exatamente
democrática, para o posto ultra sensível de principal chefe executivo de Hong
Kong.
Pelo
paradigma “um país, dois sistemas”, de Deng, tudo que acontece de político
em Hong Kong
é útil para que se perceba o modo pelo qual a China está-se deslocando na
direção de um sistema mais democrático.
Os
dois principais candidatos receberam o selo de aprovação de Pequim. O terceiro,
Albert Ho – presidente do Partido Democrático de Hong Kong – sabia que não era
elegível. Pelo menos, disse que “Obrigar-me a escolher [entre os outros dois
candidatos] seria como meter uma pistola na minha testa. E eu diria, ‘Atirem!’.”
No
final, aqueles super eleitores elegeram Leung Chun-ying, conhecido ali como CY
Leung, por 689, contra 285 votos de Henry Tang (Ho teve apenas 76
votos).
Mas
em Hong
Kong , diferente da China, houve muitas manifestações e muito
barulho nas ruas em frente ao Centro de Convenções onde aconteciam as
eleições
[7]. Os
manifestantes exigiram eleições diretas e brandiam faixas em que se lia: “Sem
revolta, não há mudança”.
Pode-se
imaginar o desconforto em Pequim. Embora Pequim
não decida imperialmente quem governa Hong Kong, a ordem do Partido é que o
líder escolhido tem de ser “aceitável” aos olhos do povo de Hong Kong. Seria
interessante pesquisar em profundidade, para saber se “o povo de Hong Kong” crê
que CY Leung zelará pelos interesses do povo.
Imaginem
agora a possibilidade de milhões de chineses da nova classe média urbana
decidirem, de repente, que “Sem revolta, não há mudança”. Para impedir que
aconteça, a oligarquia de Pequim não podia correr o risco de deixar ativo o
populista Bo, para servir de modelo. Bo ameaçava não só a estabilidade no topo;
ameaçava também o modo como essa tão cuidadosamente divulgada estabilidade é
percebida pelos 1,3 bilhão de chineses na base da
pirâmide.
Portanto,
a coesão, o consenso e a estabilidade tiveram de prevalecer como mensagem única,
ao mesmo tempo em que as fragilidades da China vão ficando cada dia mais
expostas: como arrancar dezenas de milhões mais de chineses do beco agrário sem
saída onde ainda estão; como dar assistência decente à saúde desses dezenas de
milhões de chineses; e como combater as várias instâncias da corrupção do
partido.
Não
há dúvidas de que a China modernizada por inspiração de Deng impôs um massivo
desafio estratégico, ideológico e político a um ocidente ainda embasbacado e
confuso.
A China é lar de civilização
antiga e imensamente sofisticada. Vive lá um oceano de humanidade, e está sendo
modernizada há apenas três décadas (um minuto, pelos padrões chineses). O caso
Bo é um pormenor. Só teremos visão mais clara de onde estará a China em 2020
depois de passado o próximo outono, ou lá pela primavera de 2013. Mas que
ninguém se engane: a estabilidade, como o budismo ensina, é ilusão. Os líderes
chineses são hoje viajantes na tempestade [8].
Notas
dos tradutores
[1] Epígrafe
acrescentada pelos tradutores.
[2] 22/3/2012 - Daily Mail, UK, em: “Tanks in the streets of Beijing':
Chinese leaders order internet whitewash amid rumours of attempted military
coup”.
[3] 21/3/2012 - Washington Times, USA, em: “Inside the Ring: Beijing coup rumors”.
[4] 22/3/2012 - Foreign Policy, The Great Rumor Mill of China
[5] Lit. “Willie escorregadio”. No Urban Dictionnary lê-se, no verbete “Slick Willy”: “Apelido que o pres. Bill Clinton
recebeu, pela reconhecida incapacidade para encontrar a palavra certa na hora
certa e para negócios; e pela competência com que se mete em tais confusões que,
volta e meia é ameaçado de impeachment. Sinônimo de “não pode ver rabo de
saia”. Na Grã-Bretanha, é sinônimo de “pênis”.
[6] “Mandate of Heaven” - Conceito tradicional na filosofia chinesa, semelhante ao que, no ocidente, se entende por “direito divino dos reis”.
[7] 25/3/2012 - Al-Jazeera, em: “Hong Kong elite choose Leung as leader”
[8] Orig. Riders on the Storm [viajantes na tempestade], é título de rock de Jim Morrison, do álbum “
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