terça-feira, 27 de março de 2012

Pepe Escobar: China - os Viajantes na Tempestade


25/3/2012, Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Into this house we're born
Into this world we're thrown
Like a dog without a bone
An actor on loan
Riders on the Storm, Jim Morrison, The Doors, 1971 [1]

Pepe Escobar


Ver também
20/2/2012, Pepe Escobar, “Barack e Mitt, na dança do dragão 
18/3/2012, MK Bhadrakumar, “Mao sai do palco. Viva o maoísmo!


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Hong Kong. Poucos fora da China conhecem bem a nevoenta Chongqing, no alto rio Yangtze, no coração da província Sichuan. Pois bem. É a maior megalópole do planeta, 30 milhões de habitantes, e crescendo. Vive mais gente em Chongqing que em todo o Iraque, ou na Malásia.

E então, de repente, Chongqing virou o assunto da hora na cidade (global), como uma nova Roma distópica, graças a um monumental escândalo político que eclodiu durante o Congresso Nacional do Povo, dia 15/3: a queda de Bo Xilai, membro do Politburo e secretário do Partido para Chongqing.

Bo, astuto e figura ‘midiática’, era uma espécie de estrela pop na China, principal promotor do chamado “Modelo Chongqing”: uma volta ao passado, de inspiração parcialmente maoísta, para maior controle estatal sobre a economia, melhores serviços sociais, dura repressão à máfia local e esforço para redistribuir riqueza, para amenizar a desigualdade social.

Apesar de ser “príncipe coroado” – filho de um dos oito imortais da geração revolucionária de Mao Tse Tung – Bo cumpriu todo o percurso da hiper complexa hierarquia do partido, desde baixo até o poder e a fama. 

Em 2007, foi promovido, de ministro do Comércio, ao comando do Partido em Chongqing. O que mais queria, seu Santo Graal, era ser admitido ao Comitê Dirigente, de nove membros, do Politburo (25 membros) – o pessoal que realmente governa a China Inc., como muito seleta oligarquia.

A arma preferida de Bo sempre foi bastante sofisticada: sua campanha política neomaoísta de purificação (nesse caso, livrar-se da máfia local) – inspirada na Revolução Cultural de Mao (1966-1976) reuniu muitos intelectuais locais, como assessores e conselheiros. Não surpreende que se tenha tornado furiosamente popular. Dezenas de milhões de chineses ressentem-se profundamente da arrogância dos novos ricos – alguns dos quais fizeram fortuna por meios tão rápidos quanto suspeitos; e qualquer discurso anticorrupção, combinado à luta contra a desigualdade social, não teria como dar errado.

O problema é que, aos olhos da liderança coletiva em Pequim, sim, deu tudo errado. E veio a queda – precipitada pela deserção e subsequente prisão do principal assessor de Bo, Wang Lijun, que procurou abrigo no, nada mais nada menos, prédio do Consulado dos EUA em Chengdu, a totalmente frenética capital da província Sichuan.

Trata-se de uma Ferrari? Ou será um tanque blindado?

Ansiosa para decifrar o que estaria em trânsito, de Sichuan até os corredores do poder em Pequim, a mídia-empresa ocidental bebeu diretamente de fonte descomunalmente conspiracional, onde encontrou farta coleção de tolices, do muito tolo [2] ao ainda muito mais tolo [3] , com direito a píncaros de tolice [4].

As páginas chinesas de micro-blogging como Sina Weibo e QQ Weibo, e o mural de notícias do browser Baidu, até especularam um pouco sobre “anormalidades” em Pequim, na noite de 19/3. Mas, se você sabe configurar a coisa, é muito fácil acessar Google, YouTube e Facebook na China. A ideia de que pudesse ter havido tanques nas ruas de Pequim, sem que ninguém nem visse nem fotografasse é, simplesmente, grotesca, cômica.

Quase sempre, para encontrar pistas do que realmente esteja acontecendo na atmosfera rarefeita dos círculos internos da política chinesa, é preciso consultar a mídia oficial. Significativamente, num ensaio não assinado, que se disseminou como vírus, o jornal Global Times fez referência ao “incidente de Chongqing” sem qualquer referência a Bo, e conclamou o povo chinês a confiar na liderança do Partido.

O que nos obriga à pergunta inevitável: qual é, nesse momento, a linha do Partido?

Leitura das folhas de chá diz-nos que a queda de Bo aconteceu apenas um dia antes de o premiê Wen Jiabao anunciar oficialmente que a China precisava de profundas reformas políticas.

É dizer pouco, para dizer o mínimo. A China está hoje no olho do furacão não só de uma transição política que acontece pela primeira vez nessa década; está também no olho do furacão de uma transição tectônica que acontece pela primeira vez na atual geração: transita de um modelo econômico bem-sucedido modelado por investimento massivo, para a realidade emergente de uma sociedade de consumo.

Muito evidentemente, o Partido mostra-se mais que ultra cauteloso, no movimento Deng-Xiaopinguesco de “cruzar o rio sentindo as pedras”. E bem nessa hora, surge o carismático Bo – uma espécie de “Slick Willie” Clinton [5] chinês – e desnuda todas as indecisões da cúpula. A cúpula, simplesmente, não conseguiu lidar com ele.

Ou o consenso ou o caos 

Por milênios, a China viveu sob o feitiço do “Mandato dos Céus [orig. Mandate of Heaven] [6]. Se o Imperador perdesse o divino mandato, perdia a legitimidade e tinha de deixar o trono. Nesse sentido, Mao foi O Último Imperador. O Pequeno Timoneiro Deng Xiaoping – um dos gigantes do século 20, o homem que empurrou a China para a pós-modernidade – detestava encenações imperiais. Seus sucessores, Jiang Zemin e Hu Jintao, foram ainda mais discretos e autoapagados.

O Partido Comunista insiste absolutamente em se autodescrever como liderança coletiva meritocrática confucionista, que administra por consenso o país. O “consenso” acontece, sobretudo, entre os 25 membros do Politburo; e os nove membros do Comitê Dirigente são os decisores/implementadores.

Qualquer crítica, na China, que conteste a legitimidade política do partido, é esmagada sem piedade. Mas o Partido, em muitas instâncias, admite que o povo manifeste, com relativa liberdade, a angústia social e econômica. E ver-se-á acontecer doravante, cada vez mais frequentemente, com a nova classe média urbana que é a que mais fala sempre contra os incontáveis casos de corrupção dentro do Partido.

Nenhum terremoto político impedirá que Xi Jinping, atual vice-presidente, seja nomeado secretário-geral do Partido nesse outono e presidente em março de 2013. Em termos de personalidade, Xi é o oposto de Bo, uma espécie de “progressista cauteloso” pragmático – em contexto chinês –, e inimigo de “conversa vazia”. Seu motto pessoal é “Orgulhe-se, mas sem complacência”. 

Xi foi escolhido não só pelos nove poderosos membros do Comitê Dirigente, mas em muito ampla eleição interna. Já demonstrou competência para governar em vários níveis da administração: vila, condado, cidade e província.

Governou três regiões ultra dinâmicas da China – Fujian, Zhejiang e Xangai, essa espécie de usina chinesa. Equivale, em termos ocidentais, a ter sido primeiro-ministro, sucessivamente, da Grã-Bretanha, da França e da Alemanha.

Xi, não por acaso, publicou artigo recentemente em que enterra a abordagem de Bo, e condena líderes que “jogam para as massas” ou “almejam fama e fortuna”; e exortou a que se busque o consenso – políticas “decididas segundo o saber coletivo, mediante procedimentos estritos e claros”. Em outras palavras, é do nosso jeito (liderança coletiva), ou é de cima para baixo (o que, em contexto chinês, significa luan, o caos).

Quando os modelos colidem 

Dentro da China, o modelo Guangdong é o principal concorrente do modelo Chongqing. Guangdong é uma Meca provincial no sul da China, próxima de Hong Kong; ali se pratica o mais frenético neoliberalismo pró-mercado.

A Economia de Bo privilegiou a competição entre empresas estatais (por exemplo, não se permitem comerciais publicitários na TV). O quê, segundo a oligarquia de Pequim, minou a própria base do milagre chinês: um estado de certo modo reduzido, que não se interessa por intervir nos negócios.

O modelo Guangdong enfatiza o crescimento mais alucinado, combinado com espaço suficiente para reformas políticas significativas, com governo sempre mais transparente. Não por acaso, Bo foi substituído em Chongqing por Zhang Dejiang, um vice-chanceler que estava encarregado da política industrial e que, significativamente, foi ex-secretário do Partido em Guangdong. 

Traduzindo: para a liderança do Partido, a via a seguir é o neoliberalismo chinês; é mais importante, até, que a luta contra a corrupção e que a luta contra a desigualdade social. Por quê? Porque o dinamismo do mercado – estimulado por algumas reformas – deve reinar; afinal, foi a ferramenta que fez a China crescer à velocidade que todos viram.

A trama oculta de um trilhão de yuan é que o neoliberalismo ocidental está sendo imposto na China, mas contra a vontade de muita gente. A prova? Se houvesse eleições de estilo ocidental em Chongqing, Bo seria eleito por uma avalanche de votos.

A China também está vendo Hong Kong às voltas com, exatamente, essas “reformas políticas” de que falou Wen Jiabao; na eleição “controlada”, não exatamente democrática, para o posto ultra sensível de principal chefe executivo de Hong Kong.

Pelo paradigma “um país, dois sistemas”, de Deng, tudo que acontece de político em Hong Kong é útil para que se perceba o modo pelo qual a China está-se deslocando na direção de um sistema mais democrático.

Em Hong Kong, só votaram os 1.200 membros do Comitê Eleitoral de Hong Kong – uma seleção de ricos magnatas, altos funcionários públicos e políticos.

Os dois principais candidatos receberam o selo de aprovação de Pequim. O terceiro, Albert Ho – presidente do Partido Democrático de Hong Kong – sabia que não era elegível. Pelo menos, disse que “Obrigar-me a escolher [entre os outros dois candidatos] seria como meter uma pistola na minha testa. E eu diria, ‘Atirem!’.”

No final, aqueles super eleitores elegeram Leung Chun-ying, conhecido ali como CY Leung, por 689, contra 285 votos de Henry Tang (Ho teve apenas 76 votos).

Em Hong Kong, como na China, a corrupção ainda é parte do quadro. CY Leung é alvo de investigação num caso de conflito de interesses num projeto de construção (como se adivinharia facilmente, CY é empresário do ramo de empreendimentos imobiliários em Hong Kong).

Mas em Hong Kong, diferente da China, houve muitas manifestações e muito barulho nas ruas em frente ao Centro de Convenções onde aconteciam as eleições [7]. Os manifestantes exigiram eleições diretas e brandiam faixas em que se lia: “Sem revolta, não há mudança”. 

Pode-se imaginar o desconforto em Pequim. Embora Pequim não decida imperialmente quem governa Hong Kong, a ordem do Partido é que o líder escolhido tem de ser “aceitável” aos olhos do povo de Hong Kong. Seria interessante pesquisar em profundidade, para saber se “o povo de Hong Kong” crê que CY Leung zelará pelos interesses do povo.

Imaginem agora a possibilidade de milhões de chineses da nova classe média urbana decidirem, de repente, que “Sem revolta, não há mudança”. Para impedir que aconteça, a oligarquia de Pequim não podia correr o risco de deixar ativo o populista Bo, para servir de modelo. Bo ameaçava não só a estabilidade no topo; ameaçava também o modo como essa tão cuidadosamente divulgada estabilidade é percebida pelos 1,3 bilhão de chineses na base da pirâmide.

Portanto, a coesão, o consenso e a estabilidade tiveram de prevalecer como mensagem única, ao mesmo tempo em que as fragilidades da China vão ficando cada dia mais expostas: como arrancar dezenas de milhões mais de chineses do beco agrário sem saída onde ainda estão; como dar assistência decente à saúde desses dezenas de milhões de chineses; e como combater as várias instâncias da corrupção do partido.

Não há dúvidas de que a China modernizada por inspiração de Deng impôs um massivo desafio estratégico, ideológico e político a um ocidente ainda embasbacado e confuso.

A China é lar de civilização antiga e imensamente sofisticada. Vive lá um oceano de humanidade, e está sendo modernizada há apenas três décadas (um minuto, pelos padrões chineses). O caso Bo é um pormenor. Só teremos visão mais clara de onde estará a China em 2020 depois de passado o próximo outono, ou lá pela primavera de 2013. Mas que ninguém se engane: a estabilidade, como o budismo ensina, é ilusão. Os líderes chineses são hoje viajantes na tempestade [8].



Notas dos tradutores

[1] Epígrafe acrescentada pelos tradutores.


[3] 21/3/2012 - Washington Times, USA, em: “Inside the Ring: Beijing coup rumors”.

 

[4]  22/3/2012 - Foreign Policy, The Great Rumor Mill of China


[5] Lit. “Willie escorregadio”. No Urban Dictionnary lê-se, no verbete “Slick Willy”: “Apelido que o pres. Bill Clinton recebeu, pela reconhecida incapacidade para encontrar a palavra certa na hora certa e para negócios; e pela competência com que se mete em tais confusões que, volta e meia é ameaçado de impeachment. Sinônimo de “não pode ver rabo de saia”. Na Grã-Bretanha, é sinônimo de “pênis”.

[6] Mandate of Heaven” - Conceito tradicional na filosofia chinesa, semelhante ao que, no ocidente, se entende por “direito divino dos reis”.


[7]  
25/3/2012 - Al-Jazeera, em: “Hong Kong elite choose Leung as leader

[8] Orig. Riders on the Storm  [viajantes na tempestade], é título de rock de Jim Morrison, do álbum “LA Woman” (The Doors), de 1971 com letra traduzida. A letra faz referência à história de Billy Cook, assassino serial que se fazia passar por caminhoneiro, nos EUA, nos anos 50s e que ganhou notoriedade quando chacinou uma família inteira (esse é um possível “viajante na tempestade” de que fala a letra). Snoop Dogg recriou a gravação histórica de Morrison, com intervenções, em que canta como se o viajante na tempestade fosse ele próprio, perseguido pela polícia (e é mais um tipo de “viajante na tempestade”; há muitos), para a trilha sonora do jogo “Need For Speed: Underground 2” da Electronic Arts.


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