15/3/2012, *Alexey Pilko,
Voice of Russia ,
Moscou
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
A
crise na Síria e o modo como desdobrou-se mostram que o modelo de relações
internacional que se desenvolveu depois do colapso do sistema bipolar mudou
consideravelmente nos últimos dez anos. A ideia da unipolaridade continua sobre
a mesa; mas cada dia menos nítida. Relações entre governos e entre estados-nação
vão-se tornando aos poucos multipolares e mais complexas.
Para
comprovar essa evidência, basta considerar a agressão pela Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a Iugoslávia em 1999. Foi situação
típica, com eclosão de um conflito étnico que levou a formação de um enclave
separatista no território de um estado soberano. Muitos estados enfrentaram
desafios semelhantes. Há vários modos para solucionar a questão. Podem ser soft e podem ser muito hard. Não se pode afirmar com certeza
que o governo em Belgrado tenha escolhido a melhor via. Contudo, a Iugoslávia
era país independente politicamente soberano e submetido à legislação
internacional: qualquer interferência nos assuntos internos da Iugoslávia seria
inaceitável.
Mas,
no caso da Iugoslávia, ninguém se preocupou com leis. Prevaleceu o princípio de
que se faz justiça e serve-se ao Direito, quando o mais forte submete o mais
fraco. Nenhum país da OTAN deu-se o trabalho de convocar reunião do Conselho de
Segurança da ONU antes da operação militar, reunião que só acontecer depois de
muita insistência dos russos. Ali, sobre as ruínas da legitimidade internacional
estabelecida desde 1945, começou a delinear-se uma nova realidade: uma
legislação internacional paralela.
Em
outras palavras, um grupo de países comandados pelos EUA nos anos 1990s
‘privatizaram’ o mecanismo de força para resolver conflitos na arena
internacional e consagraram, num pedestal, o conceito de “intervenção
humanitária”. A aliança, assim, se converteu em excelente instrumento para
intervir em assuntos internos de outros países, com certeza de
impunidade.
Deve-se
observar que, depois da campanha da OTAN na Iugoslávia, sobreveio período mais
sóbrio. O brutal assalto de três meses contra estado europeu levou a alguma
relutância a recorrer novamente aos mesmos métodos. Menos nos EUA, que decidiram
que, na primeira década do século 21, caber-lhes-ia consolidar as próprias
conquistas, fixando a hegemonia dos EUA nos Bálcãs, e iniciar a autoimplantação
dos EUA, sob controle dos EUA, também no Oriente Médio. Resultado desse
pensamento geopolítico foi, em 2003, a campanha para ‘mudança de
regime’ no Iraque.
Naquele
momento, Washington e Londres sequer se deram o trabalho de inventar esquemas
complicadíssimos de “intervenção humanitária”. O Iraque foi acusado de estar
produzindo armas de destruição em massa, as quais jamais foram encontradas, nem
depois de o Iraque já estar totalmente em ruínas. A violação do Direito
Internacional foi tão flagrante, que até os mais próximos aliados dos EUA,
França e Alemanha, uniram-se à Rússia na oposição à campanha militar que teve
traços, de fato, de crime de guerra.
A
campanha contra o Iraque durou até bem depois de 2003. A ‘operação rápida’ que os EUA
haviam previsto acabou por ser uma longa, sangrenta guerra, de oito anos, na
qual morreram mais de 4 mil soldados dos EUA e que terminou em retirada sem
honra. Especialista norte-americano próximo da Casa Branca disse, em entrevista
recente, ano passado, que o presidente Barack Obama dos EUA tentou persuadir o
primeiro-ministro do Iraque Nuri al-Maliki a manter soldados dos EUA no Iraque,
para permanência de longo prazo. Mas não conseguiu.
A
crise das finanças globais e a crise econômica nos EUA tiveram papel importante
no processo de fazer baixar as ambições de Washington. A economia dos EUA,
arcada sob o peso do déficit público, já não tem fôlego para sustentar a mesma
política externa agressiva dos anos 1990s e 2000s. Os países europeus vivem
problemas semelhantes. O derradeiro acorde foi o ataque à Líbia, onde os EUA
tentaram pela primeira vez uma mudança de tática, jogando sobre os ombros (e
bolsos) de seus aliados europeus a parte maior dos custos da
intervenção.
De
início, Londres e Paris abraçaram entusiasticamente os novos papéis, na
esperança de fortalecer as respectivas posições no Norte da África. As elites
britânicas e francesas esperavam talvez vingar-se da Líbia pelo fracasso da
aventura de Suez em 1956? Fato é que Grã-Bretanha e França, dadas suas limitadas
capacidades militares e financeiras, não se mostraram à altura da muita
confiança que os americanos depositaram nelas; e os EUA tiveram de acorrer
rapidamente para socorrê-las. No fim, depois de esforços conjuntos que se
arrastaram ao longo de quase um ano, o regime líbio foi derrubado, numa Líbia
convertida em mar de sangue e em ruínas. Mas é muito evidentemente claro que as
potências ocidentais não poderão persistir nesse tipo de
aventura.
A
atual situação na Síria mostra que Damasco pode ser osso duro de roer para
dentes de EUA e União Europeia. As instituições do estado sírio são sólidas e o
exército sírio é muito mais bem estruturado para combate que o exército líbio.
De início, os planos dos que apoiavam a intervenção apoiaram-se no levante
popular contra o governo de Bashar al-Assad e em criar fortes bolsões de
resistência controlados pela oposição, bolsões que, como previam os planos
iniciais, poderiam ser transformados em “zonas de segurança”, a serem usadas
para derrubar o governo sírio. Os fatos mostraram que esses planos estavam
errados e deram em nada.
Depois,
as forças do governo retomaram o controle da cidade de Homs; e o sucesso recente
das operações em Idlib mostra que a capacidade de resistência política do
governo de Assad continua bastante alta. Além disso, a posição firme que Rússia
e China assumiram também teve o mérito de impedir ataque militar de outros
países contra a Síria.
Manifestando-se
como uma só voz, Moscou e Pequim mostraram que não tolerarão nenhuma
unipolaridade e que continuam a defender o princípio segundo o qual as relações
internacionais devem ser regidas por leis, não por algum surto de desejo vicioso
de derrubar um ou outro governo, num ou noutro país.
Tudo
isso faz ver que, em 2012, o mundo já está mudado. Rússia, China e outros vários
estados manifestaram-se contra a agressão de que foram vítimas a Iugoslávia e o
Iraque. Mas, daquela vez, essas vozes não foram ouvidas.
Hoje,
EUA e União Europeia já não têm como não ouvir aquelas vozes divergentes. Por
isso, os ministros de Relações Exteriores de países da União Europeia votaram
contra a ideia de enviarem soldados seus para atacar a Síria. E o presidente
Barack Obama já reconheceu que empreender “ação militar unilateral” seria erro
dos EUA.
A
situação na Síria já é prova de fogo e teste pelo qual passa a multilateralidade
de todo o sistema de relações internacionais. O modo como a crise síria for
equacionada mostrará se nosso mundo tornou-se afinal mundo multipolar, ou se
continua, como é há muito tempo, uma ditadura militar unipolar.
*Alexey Pilko é Professor Associado da Universidade Estatal de Moscou, Faculdade de Política Mundial
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