sexta-feira, 16 de março de 2012

A crise síria é teste para o mundo multipolar


15/3/2012, *Alexey Pilko, Voice of Russia, Moscou
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


A crise na Síria e o modo como desdobrou-se mostram que o modelo de relações internacional que se desenvolveu depois do colapso do sistema bipolar mudou consideravelmente nos últimos dez anos. A ideia da unipolaridade continua sobre a mesa; mas cada dia menos nítida. Relações entre governos e entre estados-nação vão-se tornando aos poucos multipolares e mais complexas.

Para comprovar essa evidência, basta considerar a agressão pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a Iugoslávia em 1999. Foi situação típica, com eclosão de um conflito étnico que levou a formação de um enclave separatista no território de um estado soberano. Muitos estados enfrentaram desafios semelhantes. Há vários modos para solucionar a questão. Podem ser soft e podem ser muito hard. Não se pode afirmar com certeza que o governo em Belgrado tenha escolhido a melhor via. Contudo, a Iugoslávia era país independente politicamente soberano e submetido à legislação internacional: qualquer interferência nos assuntos internos da Iugoslávia seria inaceitável.

Mas, no caso da Iugoslávia, ninguém se preocupou com leis. Prevaleceu o princípio de que se faz justiça e serve-se ao Direito, quando o mais forte submete o mais fraco. Nenhum país da OTAN deu-se o trabalho de convocar reunião do Conselho de Segurança da ONU antes da operação militar, reunião que só acontecer depois de muita insistência dos russos. Ali, sobre as ruínas da legitimidade internacional estabelecida desde 1945, começou a delinear-se uma nova realidade: uma legislação internacional paralela. 

Em outras palavras, um grupo de países comandados pelos EUA nos anos 1990s ‘privatizaram’ o mecanismo de força para resolver conflitos na arena internacional e consagraram, num pedestal, o conceito de “intervenção humanitária”. A aliança, assim, se converteu em excelente instrumento para intervir em assuntos internos de outros países, com certeza de impunidade.

Deve-se observar que, depois da campanha da OTAN na Iugoslávia, sobreveio período mais sóbrio. O brutal assalto de três meses contra estado europeu levou a alguma relutância a recorrer novamente aos mesmos métodos. Menos nos EUA, que decidiram que, na primeira década do século 21, caber-lhes-ia consolidar as próprias conquistas, fixando a hegemonia dos EUA nos Bálcãs, e iniciar a autoimplantação dos EUA, sob controle dos EUA, também no Oriente Médio. Resultado desse pensamento geopolítico foi, em 2003, a campanha para ‘mudança de regime’ no Iraque.

Naquele momento, Washington e Londres sequer se deram o trabalho de inventar esquemas complicadíssimos de “intervenção humanitária”. O Iraque foi acusado de estar produzindo armas de destruição em massa, as quais jamais foram encontradas, nem depois de o Iraque já estar totalmente em ruínas. A violação do Direito Internacional foi tão flagrante, que até os mais próximos aliados dos EUA, França e Alemanha, uniram-se à Rússia na oposição à campanha militar que teve traços, de fato, de crime de guerra.

A campanha contra o Iraque durou até bem depois de 2003. A ‘operação rápida’ que os EUA haviam previsto acabou por ser uma longa, sangrenta guerra, de oito anos, na qual morreram mais de 4 mil soldados dos EUA e que terminou em retirada sem honra. Especialista norte-americano próximo da Casa Branca disse, em entrevista recente, ano passado, que o presidente Barack Obama dos EUA tentou persuadir o primeiro-ministro do Iraque Nuri al-Maliki a manter soldados dos EUA no Iraque, para permanência de longo prazo. Mas não conseguiu.

A crise das finanças globais e a crise econômica nos EUA tiveram papel importante no processo de fazer baixar as ambições de Washington. A economia dos EUA, arcada sob o peso do déficit público, já não tem fôlego para sustentar a mesma política externa agressiva dos anos 1990s e 2000s. Os países europeus vivem problemas semelhantes. O derradeiro acorde foi o ataque à Líbia, onde os EUA tentaram pela primeira vez uma mudança de tática, jogando sobre os ombros (e bolsos) de seus aliados europeus a parte maior dos custos da intervenção.

De início, Londres e Paris abraçaram entusiasticamente os novos papéis, na esperança de fortalecer as respectivas posições no Norte da África. As elites britânicas e francesas esperavam talvez vingar-se da Líbia pelo fracasso da aventura de Suez em 1956? Fato é que Grã-Bretanha e França, dadas suas limitadas capacidades militares e financeiras, não se mostraram à altura da muita confiança que os americanos depositaram nelas; e os EUA tiveram de acorrer rapidamente para socorrê-las. No fim, depois de esforços conjuntos que se arrastaram ao longo de quase um ano, o regime líbio foi derrubado, numa Líbia convertida em mar de sangue e em ruínas. Mas é muito evidentemente claro que as potências ocidentais não poderão persistir nesse tipo de aventura.

A atual situação na Síria mostra que Damasco pode ser osso duro de roer para dentes de EUA e União Europeia. As instituições do estado sírio são sólidas e o exército sírio é muito mais bem estruturado para combate que o exército líbio. De início, os planos dos que apoiavam a intervenção apoiaram-se no levante popular contra o governo de Bashar al-Assad e em criar fortes bolsões de resistência controlados pela oposição, bolsões que, como previam os planos iniciais, poderiam ser transformados em “zonas de segurança”, a serem usadas para derrubar o governo sírio. Os fatos mostraram que esses planos estavam errados e deram em nada.

Depois, as forças do governo retomaram o controle da cidade de Homs; e o sucesso recente das operações em Idlib mostra que a capacidade de resistência política do governo de Assad continua bastante alta. Além disso, a posição firme que Rússia e China assumiram também teve o mérito de impedir ataque militar de outros países contra a Síria. 

Manifestando-se como uma só voz, Moscou e Pequim mostraram que não tolerarão nenhuma unipolaridade e que continuam a defender o princípio segundo o qual as relações internacionais devem ser regidas por leis, não por algum surto de desejo vicioso de derrubar um ou outro governo, num ou noutro país.

Tudo isso faz ver que, em 2012, o mundo já está mudado. Rússia, China e outros vários estados manifestaram-se contra a agressão de que foram vítimas a Iugoslávia e o Iraque. Mas, daquela vez, essas vozes não foram ouvidas. 

Hoje, EUA e União Europeia já não têm como não ouvir aquelas vozes divergentes. Por isso, os ministros de Relações Exteriores de países da União Europeia votaram contra a ideia de enviarem soldados seus para atacar a Síria. E o presidente Barack Obama já reconheceu que empreender “ação militar unilateral” seria erro dos EUA.

A situação na Síria já é prova de fogo e teste pelo qual passa a multilateralidade de todo o sistema de relações internacionais. O modo como a crise síria for equacionada mostrará se nosso mundo tornou-se afinal mundo multipolar, ou se continua, como é há muito tempo, uma ditadura militar unipolar.



*Alexey Pilko é Professor Associado da Universidade Estatal de Moscou, Faculdade de Política Mundial 






Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.