Fecho os olhos, para melhor falar,
abro-os e ergo-os para um céu deserto de tudo, até da esperança. E por isto
mesmo, por mais sem razão e sem nexo, o peito que desejaria gritar, fala e
balbucia baixinho, ainda que seja inútil o afã de encontrar uma razão para o que
vejo.
Publicado por *Urariano Mota em 19 de março
de 2012
Chico Soares, o "Canhoto da Paraíba" |
Minha Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro mostrai que sois verdadeiramente mãe de todos artistas caídos em
desgraça na terra.
Existe um homem que é grande no
tocar, existe um sereno e augusto artista que é largo e alto de coração, existe
um violonista de nome Francisco Soares de Araújo, que a simplificação da gente
achou por bem chamar de Canhoto da Paraíba.
Minha Nossa Senhora, esta súplica
seria inútil se tivésseis a graça de ouvi-lo um só minuto. Então saberíeis como
ele transporta o céu para a brutalidade e para a angústia de todos animais que
somos.
Então sorriríeis com ele, e como
ele, porque irradiante e empática e comungante sempre foi a sua ventura no
tocar. Esta prece poderia ser tão-só e somente um insulto à dignidade de
Francisco Soares de Araújo, se Canhoto da Paraíba não se encontrasse no estado e
no ânimo em que se encontra. Sabei, erguida e nobre Senhora dos sonhos dos
desesperados, sabei que Canhoto se acha numa cadeira de rodas, com a voz falha,
e todo lado esquerdo do corpo, e toda a mão esquerda, cruel e certeira maldição,
paralisada.
(É assim que
a Providência castiga os bons da alma? Se um homem canta pela mão esquerda, será
ela a ferida? Se um artista se expande pela voz, será na garganta o seu
câncer?).
Sabei, Senhora, que Canhoto mal
falando, a tropeçar nas sílabas, como uma grande criança que cresceu para ser
coroada por uma cadeira de rodas, sabei, Senhora, que Canhoto ainda assim sorri.
Com quase o mesmo sorriso com que o vi um dia, à luz do dia, ao meio-dia na
Avenida Guararapes. Com este assim:
O guitarrista Pedro Soler, aquele
mesmo guitarrista flamenco a quem Miguel Angel Astúrias declarou, “os teus
dedos, Soler, são os cinco sentidos da guitarra”, este Pedro um dia esteve no
Recife, em 1975. E disse, “Canhoto da Paraíba é um dos três grandes guitarristas
do mundo”. E por ser lembrado dessa referência, ao ser encontrado na Avenida
Guararapes, Canhoto assim respondeu, com o mesmo sorriso de menino bom, que
agora insiste na paralisia em que se encontra, com o peito bom de menino que
recebe pedras e se alarga, para abraçar as pedras como abraça facas e
elogios:
- Num foi? Eu disse a ele, “Tu é
doido, Soler?”
E como eu lhe repetisse o elogio
de vexame, e para não ficar com a cara gorda e limpa exposta à luz do sol, como
uma criança que se descobre despida em rua de adultos, Canhoto assim respondeu à
consagração:
- Tu quer um
confeitinho? Toma um de menta. É bom, rapaz.
E dessa maneira a receber
caramelos, a vez de se encabular foi minha. Agora sinto, agora percebo que na
pessoa de Canhoto aura nenhuma poderia ser posta, porque o seu maior elogio era
a sua própria pessoa: Canhoto a sorrir, a tocar. E digo isto, Senhora, quase que
em estado de raiva e convulsão, por entre estremeços. Porque o vejo agora e me
vem num assalto: Não é assim que se trata um homem. Não é assim que se destrói
um artista. Não é assim que se faz reduzir e insultar a memória da
gente.
Este a quem encontro em Maranguape
I, periferia do Recife, para lá de Olinda, é o mesmo homem que era convidado
como estrela máxima de saraus, shows
e banquetes? Este, na obscuridade da sua sala, olhando um disco na parede, como
um mamute, como um gordo pacífico sem fala, é o mesmo genial violonista de
Pisando em Brasa? Algo procuro, busco uma razão, e para não ser tão cru e cruel
como a Providência, que assim pune os nossos grandes, prefiro balbuciar estas
desrazões:
Imaculada Virgem e Mãe minha,
Maria Santíssima, a vós que sois a Mãe de meu Salvador, Rainha do Céu, Advogada,
esperança e refúgio dos pecadores, recorro:
Canhoto da Paraíba tem a perna, as
articulações sacrificadas, porque não dispõe de recursos para fazer uma...
terapia. Não esta terapia que ora faço, da súplica do milagre, da clemência aos
céus, mas a mais elementar, humana, elementar, uma fisioterapia. Por isso, por
falta desta, já reclama, reclama, não, que ele sequer se queixa, por isso já se
refere a dormência nas pernas, porque passa o dia entre a cadeira e a cama. Mas
disso ele não se queixa – está em repouso, não é? Sabei, Senhora, que Canhoto é
homem de grande resignação.
Minto. Menti para ficar dentro da
forma beatífica do requerimento a Seus poderes. O que toda a gente toma por
resignação (digo-o baixinho, bem baixinho, como um chorinho solado, murmurando)
o que toda gente toma por resignação é uma imensa generosidade. Canhoto sempre
foi um deus de fertilidade, tocava e distribuía seus dons com louca e desmedida
prodigalidade, como se os seus recursos, porque lhe chegavam, fossem
inesgotáveis. Depois do derrame, do AVC, esses recursos subitamente se
esgotaram. Mas disso ele não se deu conta. É um Buda que vive e se alimenta dos
restos e da sombra do seu nirvana.
Daí que não se queixa, daí que de
nada reclama. Canhoto espera que de uma hora para outra seus dedos esquerdos
voltem a se articular como antes, e aí, que bom que será! Todas as portas
voltar-se-ão para ele, todas as graças, todos os violões, até mesmo a Santa, que
acorrerá para ouvi-lo sem necessidade de invocação.
Nós, que não somos Canhoto, é que
percebemos que o Rei perdeu o seu cetro, seu poder, seu trono. Nós, que o vemos
transparente pela bonomia da sua fala de criança, é que sabemos: à causa
“natural” da isquemia, da idade dos seus 76 anos, soma-se a natural organização
do mundo.
Canhoto vive de uma modesta
aposentadoria que não lhe dá margem para um tratamento de luxo; e o luxo,
Imaculada, é uma fisioterapia. Sabei, Santa sobre as santas, que ele recebe
aposentadoria por suas atividades de burocrata, de funcionário do SESI, por ser
Francisco Soares de Araújo. Da sua razão de ser - da sua razão de viver, da sua
razão de morrer – do gênio de ser Canhoto da Paraíba ... nada, nada, nada. Assim
não são os bens espirituais? Nada, nada, nada. Dos políticos, dos deputados,
senadores, governador do estado, prefeitos, nada, nada, e minto. Minto, minha
Santa: destes tem recebido uma segura e intransponível distância. Ou melhor,
nesta altura, fui injusto. Agora em junho deste ano, o nosso violonista foi a
Brasília, para inaugurar, com chave de ouro, o Projeto Pixinguinha. Ali, Canhoto
recebeu um aperto de mão do Presidente.
Por isto, minha Santa, por isto,
Imaculada, já que sois tão poderosa diante de Deus, fulminai para sempre e
eternamente com vossos raios a insensibilidade humana. Porque existe um homem,
que um dia foi Canhoto da Paraíba, que jaz numa cadeira de rodas, em Maranguape
I, Paulista. Sem se queixar e a sorrir, e por assim estar, a machucar o coração
da gente.
*Urariano
Motta é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor de
Soledad
no Recife (Boitempo,
2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em
1973, e Os
corações futuristas (Recife,
Bagaço, 1997).
Enviado pelo autor
(comentário do Urariano enviado por e-mail junto com o texto/oração e postado por Castor)
ResponderExcluirO texto, que escrevi para ele, "Oração para Chico Soares, o Canhoto da Paraíba", que gerou uma pensão para o gênio, está aqui postado neste 19 de março. Mas Nossa Senhora não me ouviu. Canhoto faleceu com todas as sequelas do AVC, sem uma fisioterapia.
Urariano