segunda-feira, 19 de março de 2012

Rússia sobre OTAN-EUA no Afeganistão: “Entrevista de Sergei Lavrov”


“As Forças Especiais de OTAN-EUA ainda não cumpriram satisfatoriamente a missão que receberam do CS-ONU”

18/3/2012, Sergei Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia 
Entrevista traduzida pelo pessoal da Vila Vudu
EGLB TV, TOLOnews, Afeganistão (vídeo),

Ver também
19/3/2012, MK Bhadrakumar, “O segredo do Sgt. Bales e um impasse afegão


TOLOnews: Obrigado, ministro, por nos receber. Os afegãos querem saber que importância tem o Afeganistão, na política exterior russa.

Ministro Sergei Lavrov: O Afeganistão é vizinho tradicional dos russos. Temos longa história de amizade e relações de boa vizinhança e, claro, temos todo o interesse em ver o Afeganistão em paz, estável, democrático, neutro e, claro, queremos que as ameaças do terrorismo e do tráfico de drogas que pairam sobre os afegãos sejam neutralizadas. Estamos desenvolvendo diálogo político muito intenso. Há um ano, pouco mais de um ano, o presidente Karzai fez sua primeira visita oficial à Federação Russa. Há reuniões regulares entre o presidente Karzai e o presidente russo em vários formatos internacionais multilaterais, inclusive no contexto da Organização de Cooperação de Xangai. O próprio contexto daquele encontro, criado pelos presidentes da Rússia, Afeganistão, Paquistão e Tadjiquistão. Os ministros da economia também se reúnem regularmente. Nosso parlamento mantém contato intensivo e, pessoalmente, já recebi e já visitei meu colega afegão em Moscou. Temos muitos interesses comuns e acreditamos que esses interesses comuns são a melhor garantia de que nossas relações são sustentáveis, orientadas para o futuro.

TOLOnews: Está em curso um diálogo entre o governo afegão e os Talibã, apoiado também pelo governo dos EUA. Como a Rússia vê esse diálogo?

Lavrov: Claro que a reconciliação nacional é indispensável para uma solução pacífica dos problemas que ainda preocupam os afegãos, e apoiamos a posição do governo afegão no contexto da reconciliação nacional. Essa é a posição endossada pelo Conselho de Segurança da ONU, que favorece o diálogo com todos que rejeitem a violência como meio para alcançar objetivos políticos, que rompam todos os laços com a Al-Qaeda e outros grupos terroristas e reconheçam e respeitem a Constituição da República Islâmica do Afeganistão. Evidentemente, não é possível nenhuma negociação com grupos, como a Al-Qaeda e outros, listados pelo Conselho de Segurança da ONU como grupos terroristas.

TOLOnews: Sr. Ministro, como o senhor acaba de dizer, se o governo afegão ou o governo dos EUA não falam com grupos das listas das sanções, com quem falarão?

Lavrov: Ora, a lista não é universal! Há vários líderes Talibã não incluídos naquela lista. Afinal, os princípios a que me referi são os princípios propostos pelo governo afegão, aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU e em inúmeros fóruns internacionais. Há gente que se encaixa nesses critérios e são os supostos interlocutores do governo, no contexto da reconciliação nacional.

TOLOnews: O senhor entende, então, que alguns elementos dos Talibã não devem ser incluídos no processo de diálogo?

Lavrov: Não disse isso. Em nenhum caso os russos podemos ditar cursos de ação ao governo afegão; não se pode ditar, de fora do governo, modos pelos quais o governo deva promover o diálogo nacional e a reconciliação nacional. Nós apoiamos os princípios que o governo afegão demarcou e que orientam o governo nos contatos com os Talibã e outros que queiram participar do diálogo de reconciliação nacional.

TOLOnews: A Rússia apoia as conversações de paz com os Talibã, porque muitos afegãos temem que os Talibã voltem ao poder, como alguns creiam que seja provável?

Lavrov: Veja... Como já disse, não podemos impor a um Estado soberano ideias ou “diretivas’ sobre como o país deva ser governado. Há aqui um problema de reconciliação nacional que tem de ser resolvido. Apoiamos os esforços do governo legítimo do Afeganistão, na direção de resolver aquele problema, e seus esforços regidos pelo que lhes pareça aceitável, nos termos do que determina a Constituição da República Islâmica do Afeganistão, que claramente define como proibidas as práticas terroristas.

TOLOnews: Alguns grupos da oposição afegã opõem-se totalmente àqueles diálogos e acham que haveria algum tipo de ‘acerto’ em andamento, entre o governo afegão e os Talibã, que pode pôr a perder todos os avanços dos dez últimos anos. Isso não o preocupa?

Lavrov: Não podemos julgar a discussão política que se trava dentro do Afeganistão. Não interferimos em questões internas de outros países. Muita gente discute os muitos aspectos da situação no Afeganistão. Mas os russos, diferentes de outros governos, não ‘ordenamos’ ao governo de Cabul o que fazer para construir o processo de reconciliação nacional. Sabemos que, além de pashtuns, há uzbeques, tadjiques, hazaras. Todos esses precisam encontrar seu caminho até o sistema político, para que se sintam incluídos, não isolados, no processo. Esse é o princípio geral; como aplicá-lo na prática, não cabe aos russos dizer às autoridades afegãs.

TOLOnews: Recentemente, o governo dos EUA anunciou que começará a reduzir o número de soldados no Afeganistão. Há preocupação crescente com a saída dos soldados, que poderia gerar instabilidade. Como o senhor analisa esse quadro?

Lavrov: Nós analisamos essa questão, do ponto de vista da lei internacional. A presença de uma força internacional de estabilização no Afeganistão foi missão decidida no Conselho de Segurança da ONU. O mandado do Conselho de Segurança é bem claro. Só depois de cumprida a missão que receberam, as Forças Internacionais serão autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU a sair do Afeganistão. E antes de saírem do Afeganistão, evidentemente, as Forças Internacionais que operaram no Afeganistão em nome do Conselho de Segurança têm de apresentar relatório exaustivo do que foi feito, para demonstrar ao Conselho de Segurança que o mandado do Conselho de Segurança foi cumprido. 

Todos entendem que, para que as Forças Internacionais retirem-se do Afeganistão, o governo afegão deve já estar capacitado para manter a lei e a ordem e para atender os afegãos em seus problemas nacionais de segurança. Evidentemente, a plena capacitação dos afegãos e a retirada das Forças Internacionais são processos necessariamente ligados entre eles e, claro, têm de ser sincronizados. Não se pode cogitar de retirada, antes que o governo afegão, os próprios afegãos, tenham adquirido as competências para manter a lei e a ordem. 

TOLOnews: Queria saber, por favor, do ponto de vista da Rússia: os russos entendem que os EUA cumpriram a ‘missão afegã’ que receberam do Conselho de Segurança? 2014 é data indicada para a retirada?

Lavrov: Não. Não vejo como se possa dizer que os EUA fizeram o que o Conselho de Segurança os mandou fazer no Afeganistão. É visível que os problemas continuam, que os ataques terroristas não foram contidos. Preocupa-nos, sobretudo, que as atividades terroristas tenham chegado já ao norte do Afeganistão, onde, há três anos, a situação era calma. Os terroristas estão sendo empurrados, basicamente, para os territórios do norte do Afeganistão, de onde passam facilmente para países da Ásia Central vizinhos da Federação Russa. Nada disso favorece a estabilidade dessa região. É preciso que as Forças Especiais façam, no Afeganistão, o que foram mandadas fazer lá, por mandado do Conselho de Segurança. E é indispensável que apresentem relatório do que tenha sido conseguido e do que tenha ficado sem fazer.

TOLOnews: Em tempos recentes, tem havido um diálogo entre o governo afegão e o governos dos EUA sobre parceria de longo prazo e sobre a presença de soldados dos EUA no Afeganistão depois de 2014. Qual a posição russa?

Lavrov: Não se entende por que isso deva ser encaminhado desse modo, porque, de um lado, se você precisa de presença militar, é sinal que o mandado do Conselho de Segurança ainda não foi satisfatoriamente cumprido. E se você não quer cumprir o mandado do Conselho de Segurança, ou se supõe que o mandato já tenha sido cumprido... Para que, então, seriam necessárias as bases militares? Não me parece que haja aí qualquer lógica. Acho também que o território afegão não deve ser usado para implantar espaços militarizados, que evidentemente preocuparão outros povos. 

Não vejo que lógica haveria em supor que, em 2014, o mandado do Conselho de Segurança possa ser dado por cumprido... se ainda for necessário haver lá muitos soldados, dentro das bases militares. Não se entende que finalidade teriam as tais bases militares e, além disso, os EUA estão em contato com países da Ásia Central, pedindo que autorizem presença militar de longo prazo. 

A Rússia quer entender o motivo disso tudo. Por que as tais bases seriam necessárias? Não acreditamos que esse grande número de bases militares contribua para a estabilidade da região.

TOLOnews: Sr. Ministro, como o senhor vê a conferência de Chicago, que deve focar-se no Afeganistão? Que ajuda a Rússia poderia dar à OTAN, sobretudo na questão das rotas de suprimento?

Lavrov: Não fomos convidados para a conferência de Chicago. Não posso, portanto, comentar o assunto. Quanto a ajudar a OTAN, já estamos ajudando. Oferecemos às forças internacionais de estabilização a possibilidade de utilizarem território russo, a chamada “Rede Norte”, na qual a Rússia está ativamente envolvida. Acho que a Rede Norte já é a principal rota de suprimentos para os exércitos da ISAF no Afeganistão; alguma coisa como 2/3 das entregas viajam pela Rede Norte. Entendemos que é nosso dever contribuir para o pleno cumprimento do mandado que o Conselho de Segurança da ONU deu às forças da ISAF lideradas pelos EUA. E temos o direito de exigir que o mandado para implementar algo para cuja implementação contribuímos, seja plenamente cumprido. Claro que tudo isso tem de ser coordenado com o governo afegão.

[...]

TOLOnews: Quanto à construção do exército nacional afegão, o governo afegão sempre solicitou ajuda internacional. Em que a Rússia pode ajudar, em termos de treinamento e equipamento para o exército afegão?

Lavrov: Sim, podemos ajudar, para o futuro; e já ajudamos bastante, no passado. Há alguns anos, associados à Alemanha, os russos doamos dois helicópteros-ambulância para evacuação de ferido, ao Ministério do Interior do Afeganistão – doação, não venda. Temos fornecido regularmente armas leves e munição. Estamos entregando 21 helicópteros, compra que contratamos com os EUA, para o exército afegão. Anualmente, damos treinamento a várias centenas de especialistas em segurança das agências afegãs. Também treinamos anualmente dezenas e dezenas de pessoal militar e agentes das políticas antidrogas afegãs. Essa ajuda, com certeza, será mantida.

TOLOnews: Outra questão importante a discutir é o Irã, país muito importante para o Afeganistão e para a Rússia. Há preocupações no ocidente, que teme que o Irã venha a desenvolver armas atômicas. Em sua opinião, essa percepção seria errada?

Lavrov: Bem... Há muita informação sobre essa questão, acessível a quem se interesse. Todos podem ler e formar opinião própria. A Agência Internacional de Energia Atômica está trabalhando no Irã. Seus especialistas, técnicos, e um vasto equipamento monitoram todos os sítios onde os iranianos produzem combustível nucelar, e os sítios onde enriquecem urânio para finalidades médicas e outras destinações humanitárias, no reator nuclear de pesquisas, em Teerã. A AIEA tem informado, em relatórios oficiais, que até agora não constatou qualquer dimensão militar no programa iraniano. 

Mais recentemente, disseram que ainda havia algumas questões a elucidar, às quais os iranianos devem responder, para que a AIEA possa concluir, com 100% de certeza, que o programa nuclear iraniano é inteiramente pacífico. Logo que se cumpra essa última etapa, o Irã conseguirá livrar-se das sanções, depois de atender a todas as exigências da comunidade internacional. O Pentágono e a comunidade de inteligência norte-americana também têm falado sobre o assunto, sempre na mesma direção. Recentemente, declararam que não há qualquer informação de que o governo do Irã algum dia tenha tomado a decisão política de produzir armas nucleares. Essa é a informação que se tem de fontes autorizadas. Evidentemente, não faz qualquer sentido desconsiderar a informação que há.

TOLOnews: Recentemente, o primeiro-ministro de Israel disse que Israel considera a possibilidade de atacar as instalações atômicas do Irã, dentro do Irã. A Rússia ajudaria nesse movimento?

Lavrov: Os russos entendemos que isso seria erro gigantesco, esperamos que jamais aconteça. Nossa posição coincide com a dos EUA que, como se viu durante recente visita do primeiro-ministro Netanyahu a Washington, já disseram que desejam uma solução política. É a abordagem mais inteligente. O uso da força, nessa região, seria catastrófico.

TOLOnews: É importante para o povo afegão compreender se os russos estão preocupados com uma possível volta dos Talibã ao poder. Já temos visto movimentos no governo na direção de exigir que as mulheres usem trajes islamistas e não saiam de casa, salvo se acompanhadas por homem da família.

Lavrov: Não tenho dúvidas de que o povo afegão encontrará soluções adequadas para equacionar seus problemas domésticos. Não nos envolvemos em questões internas, nem no Afeganistão nem em outro país. Ajudamos e ajudaremos, o mais possível, o Afeganistão, a construir vida em paz. Há apenas alguns dias, houve a primeira reunião da Comissão Bilateral Rússia-Afeganistão sobre comércio e cooperação econômica.

Assinaram lá um Memorando de Entendimento, para a reconstrução da área urbana em Kabul e alguns outros projetos que interessam à Rússia e ao Afeganistão e que serão importantes para outros projetos – como a reconstrução do túnel Salang; reconstrução de várias fábricas em Mazar-e Sharif; construção de pequenas estações e usinas hidrelétricas, dentre outros projetos. Há mais tempo, chegaram a haver em andamento 150 projetos construídos no Afeganistão com ajuda soviética. Muitos daqueles projetos seriam muito úteis ao povo afegão e estamos prontos a revitalizar todos esses projetos de cooperação, ajudando a construir a economia afegã, a solucionar os problemas sociais da população e, claro, também queremos preservar e ampliar nossos laços culturais e humanitários. Estamos reconstruindo o antigo Centro Cultural Soviético em Kabul. Será um centro cultural russo, e ficará como símbolo da amizade entre nossos povos.

TOLOnews: O senhor falou do túnel Salang, muito usado como ligação entre o norte e o sul do Afeganistão. O que os russos farão?

Lavrov: Apenas citei esse projeto, porque é um dos que estamos discutindo com o governo afegão. Aquele túnel foi projetado e construído por engenheiros soviéticos, e ainda temos todas as plantas da construção original. Várias empresas russas trabalharão nesse projeto. A questão do financiamento terá ainda de ser discutida, e estamos nesse ponto das conversações, com afegãos e outros parceiros. Será provavelmente projeto conjunto, de vários empreendedores.

TOLOnews: Minha última pergunta: que previsões o senhor faz para o Afeganistão pós-2014?

Lavrov: [risos] Ainda não abracei o ramo da adivinhação, mas... Evidentemente, preferimos que as tropas das Forças Internacionais deixem a região, depois de os afegãos já estarem perfeitamente capacitados para garantir a própria segurança. Com certeza, queremos que a ameaça terrorista seja efetivamente derrotada; que a ameaça das drogas seja eliminada de todo o território afegão; que o Afeganistão volte a ser nação pacífica e neutra. Nada há de excepcional nisso, parecem-me aspirações razoáveis e lógicas. Mas são opções e decisões políticas que cabem aos próprios afegãos. Todos desejamos ver um Afeganistão próspero, amistoso, pacífico, neutro. Mas nada disso faz-se por milagre. Os esforços de todos nós – dos amigos do Afeganistão – serão necessários para que as coisas aconteçam, apoiando o governo do Afeganistão e o povo do Afeganistão na trilha rumo ao futuro brilhante que os afegãos merecem.

==== FIM DA ENTREVISTA ====

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