Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Pepe Escobar |
A tarefa que terá pela frente é gigantesca. Seu modelo
vertical de soberania democrática – concebida pelo ex-conselheiro Vladislav
Surkov [2]
– já
começa a beliscar. Tem de simultaneamente combater a corrupção horrenda, dobrar
a burocracia e disciplinar as oligarquias centrais e
locais.
Tem
de enfrentar a drenagem ininterrupta de cérebros russos: até aqui, mais de dois
milhões de russos já partiram.
Vladimir Putin |
Tem
de maximizar os lucros de espantosos $1,5 trilhão das exportações de petróleo,
desde que chegou ao poder pela primeira vez, em março de 2000. E que ainda não
bastam para melhorar substancialmente a infraestrutura russa.
Recordo
vivamente março de 2000 em Moscou: ninguém sabia, sequer, se o Czar teria
competência para erguer a Rússia, depois dos pantanosos anos de Yeltsin e
dependência de Washington; ou se, ao contrário, deixar-se-ia arrastar como um
fantoche.
E ninguém nem de longe imaginava que ele rebentaria a
banca, com o hoje lendário discurso de fevereiro 2007 em Munique [3]
–
quando denunciou claramente a obsessão bélica do governo Bush e declarou o fim
do velho mundo unipolar.
Washington
enlouqueceu de fúria. Afinal, a nova estratégia recém projetada acabava de pôr a
Rússia no papel de, no máximo, um vassalo confiável. E, de repente, a Rússia
surgia em cenário global, com política internacional própria e autônoma. A
Rússia voltava a modelar a própria influência sobre os ‘-stãos’ da Ásia Central.
Os BRICSs Rússia e China começaram a se reaproximar, justamente quando os EUA
supunham que a Rússia aceitaria sem qualquer protesto o escudo antimísseis da
OTAN e lá ficaria, sem protestar, cumprindo a missão de “conter” a
China.
Não
surpreende que as elites de Washington – e seus hagiógrafos nas redes Time Warner, News Corporation e New York Times – continuem boquiabertas até hoje, mal
conseguindo disfarçar o estupor.
Foi
Putin quem, praticamente sozinho, reorganizou na Rússia a empresa-superpotência
no campo da energia controlada pelo estado, a Gazprom – maior exportadora
mundial de gás natural e segunda maior mundial de exportação de petróleo, atrás
só da Arábia Saudita.
Agora,
o desafio é oferecer “vida decente” a cada russo e a todos os russos. Segundo o
Sberbank, maior banco de empréstimos da Rússia, o Czar terá despesas da ordem de
nada menos que $170 bilhões anuais, ao longo dos seis anos de mandato. Orçamento
muito apertado, considerando-se as despesas necessárias para organizar a
Olimpíada de Inverno de 2014 e a Copa do Mundo de 2018.
E
ainda mais apertado, se que considera que a fuga de capitais que saíram da
Rússia em 2011 alcançou espantosos $84 bilhões. O Czar quer muito reverter esse
movimento e tornar a Rússia atraente para o capital estrangeiro – fazendo-a
saltar de um triste 120º lugar, para, pelo menos, o 20º.
O
mundo segundo Putin
Não
há qualquer tipo de conspiração. A essência da visão de mundo de Putin está
claramente exposta em “Is Putin’s Russia keeping up
with a changing world?”, 1/3/2012 (em inglês).
Nada
de guerra contra o Irã. Nada de bombardeio “humanitário”. Nada de predominância
de “instrumentos ilegais de poder
soft” (um novo conceito, útil para esmagar as chamadas “revoluções
coloridas”). O pilar central da ordem mundial continua a ser “o princípio,
consagrado na história, da soberania do Estado”. Contem essa às Três Graças
da R2P (“responsabilidade de
proteger”) – Clinton, Rice e Power.
Será crucial que haja maior coordenação geopolítica
entre os países BRICSs – as principais potências emergentes, que produzem mais
de 25% (e aumentando) do PIB global. Para Putin, os BRICSs são “os mais
eloquentes símbolos de transferência, de uma ordem mundial unipolar, para uma
ordem mundial mais justa” [4].
Putin
vê a Rússia aberta para negociar com todos. Jamais economicamente autárquica, a
Rússia está mais que pronta para “aproveitar o vento chinês, que venha inflar as
velas de nossa economia”.
Indiferente
ao Oriente Médio Expandido de Washington – que, para o Pentágono, cobriria da
África Ocidental até Xinjiang na China – Putin focar-se-á na Eurásia, que inclui
toda a China, o sul da Ásia Central, o Irã e o sudoeste asiático (também chamado
Oriente Médio). A Índia com certeza gosta da ideia – porque um relacionamento
íntimo com Moscou serve de contrapeso ao eixo sino-paquistanês; e para Moscou,
uma Índia mais assertiva na Ásia Central serve de contrapeso à
China.
O
mais importante: esqueçam para sempre o “reset” Clinton-Lavrov, de março
de 2009, das relações EUA-Rússia da Guerra Fria. Não por acaso, a palavra
escrita no botão que os dois apertaram foi traduzida para o russo como
“repetir”, não como “reiniciar”!
As
eleições russas em números
Washington
e a OTAN – obcecadas com mísseis de defesa – logo sentirão a plena força do Putinator. Embora Putin admita que
talvez houvesse sinceridade na ideia de Obama, de um “reset”, os
resultados, para ele, foram zero: “Deu em nada, quanto ao plano dos mísseis de
defesa”. Por isso, os EUA dedicam-se a comprar “invulnerabilidade total” com
seus mísseis de defesa, e nada garante completamente que, um dia, a Rússia não
vire alvo. Assumindo que haja um Obama II, será preciso dar reset no
reset.
Chris
Hutchins, biógrafo da princesa Diana e do bilionário Roman Abramovich,
proprietário do Chelsea e autor de um novo livro, Putin [6], cuja
pesquisa exigiu-lhe seis anos de trabalho, jura que o Czar é “o político mais
interessante que há hoje no cenário mundial”.
Fãs
do carnavalesco Silvio “Bunga Bunga” Berlusconi – amigão de Putin – talvez
discordem. Mesmo assim o Czar pode realmente personificar o último
“homem-sem-qualidades” [o último “herói-sem-nenhum-caráter” (NTs)], sempre
mudando de pele e cheio de expedientes e recursos, tão demonizado no ocidente –
mas não no oriente. Chamem o Dr. Freud – e culpem os medos que o ocidente padece
do próprio declínio. Diferente disso, a autoconfiança do Putinator é infatigável, na crítica sem refinamento,
mas implacável, da ilimitada hipocrisia do ocidente.
Poucas
elites anglo-norte-americanas – diferentes das alemãs, com as quais Putin
firmará uma parceria estratégica – reconhecerão em Putin sequer o mérito de
lutar sem descanso para posicionar a Rússia no mundo multipolar
emergente.
Seu motto de antes – “estabilidade” – funcionou tão
bem, que a maioria dos russos jamais se sentiram tão estáveis como durante seu
governo, desde o colapso da União Soviética. Agora, é quase como se um odor à
Rosa Luxemburgo flutuasse no ar. Reforma ou revolução?
Esqueçam
qualquer revolução colorida na Rússia. Haverá reformas. Mas nos termos do Putinator.
Notas
dos tradutores
[1]
Orig. Get over
it. É título de canção de Amy Winehouse e, ali, significa
aproximadamente “superar [vício ou mania]”. Também pode ser traduzido por
“resolver, encontrar solução”, como em “It took us a long time to get over the problems with the computer system”. E há
outras possibilidades.
[2] 28/12/2011, New York Times: “Architect
of Russia’s Political System Under Putin Is
Reassigned”
[3]
Vladimir Putin, “Discurso à 43ª Conferência
sobre Políticas de Segurança”, Munich, Alemanha, 2/10/2007. (em inglês).
Aqui, alguns excertos traduzidos:
“A
Rússia – nós – recebemos incansáveis aulas de democracia. Mas, por alguma razão,
nossos ‘professores’ recusam-se a aprender sobre democracia... Um estado, e,
sim, claro, mais que todos, os EUA todos os dias ultrapassam suas fronteiras
nacionais de todos os modos imagináveis. Vê-se na economia, na política, na
cultura, em políticas educacionais que os EUA impõem a todo o planeta. Quem quer
isso? Quem vive feliz nesse mundo falsamente multipolar? (...)
Quem
poderia viver feliz e em segurança, se a lei internacional é usada como muralha
para proteger só eles e sempre eles? E é claro que política internacional desse
tipo só faz estimular uma corrida armamentista. (...)
Creio
que seja óbvio para todos que a expansão da OTAN nada tem a ver com a
modernização da Aliança em si, com com qualquer intenção de aumentar a segurança
da Europa. Ao contrário, é grave provocação, que compromete o nível
indispensável de confiança mútua. E temos todo o direito de perguntar: contra
quem se orienta toda essa expansão? E que fim levaram as garantias e promessas
que ouvimos de nossos parceiros ocidentais, depois da dissolução do Pacto de
Varsóvia? Onde andarão hoje aquelas declarações? Ninguém lembra delas! Mas
permito-me relembrar os presentes do que então se disse. Cito, por exemplo, o
que disse o secretário-gera da OTAN, Sr. Woerner, em Bruxelas, dias 17/5/1990:
“o fato de que estamos dispostos a não plantar um exército da OTAN fora de
território alemão é firme garantia de segurança para a União Soviética”. Sim
mas... e onde está a garantia?”
[5]
Orig. “May you
live in interesting timesӎ
frase frequentemente apresentada como uma espécie de “praga” chinesa, que seria
atualização de antigo provérbio chinês. Variantes da mesma “praga” seriam
“Tomara que você atraia a atenção dos poderosos” e “Tomara que você encontre o
que tanto procura” ,
inclusive uma versão segundo a qual a frase teria nascido em 1939, em American Society of International Law
Proceedings, vol. 33 .
[6]
Lançado na Rússia e na Inglaterra essa semana. Ver na Amazon.
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