15/3/2012,Giorgio Griziotti, Dario Lovaglio e Tiziana Terranova, Savoirs Communs
[1]
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Há
cerca de um ano, uma nova força de manifestação da multidão pela grande rede
impôs-se à atenção do mundo inteiro, primeiro na batalha por Wikileaks, depois,
a partir da Tunísia, nas revoltas árabes e nos movimentos 15M
eOccupy.
Depois
de um ano chave, grávido de ameaças e promessas, esses recém-nascidos da
governança financeira, que nada sabem de um movimento global completamente novo
e, conscientes da forte ameaça que é, contra eles, a comunicação horizontal
entre as multidões, fazem pesar sua dominação e tentam retomar a iniciativa de
ataque contra a liberdade na grande rede.
Primeiro,
foi a tentativa de fazerem aprovar a lei SOPA, Stop Piracy Online Act,
e o projeto PIPA, Protect Internet Protocol Act. Depois, veio o
fechamento da página Megaupload nos
EUA.
Hoje
somos chamados para outro grande combate mundial, dessa vez contra o ACTA,
Anti-Counterfeiting Trade Agreement [Tratado Comercial Antipirataria],
tratado liberticida de defesa do copyright e de penalização da
pirataria.
Preparado
em segredo pelos executivos de uma quarentena de países, sem qualquer debate
público ou parlamentar, o ACTA, cujo relator francês, Kader Arif,
abandonou o projeto (“Não participarei dessa palhaçada” – disse ele), já foi
assinado por Obama, o qual, contudo, recusou-se a assinar a lei
SOPA.
O
[Tratado]
ACTA não será adotado na Europa, se não for aprovado no Parlamento
Europeu. Manifestações na Polônia e em vários países, entre os quais a França, e
as 2,5 milhões de assinaturas em desacordo levaram a Comissão Europeia a
cercar-se de algumas cautelas. Pediu o parecer da Corte Europeia de Justiça,
para determinar se o ACTA seria incompatível, de algum modo, com os
princípios da União Europeia ou contrário ao espírito da proteção dos direitos
humanos.
Reforçar os direitos de propriedade pelo
copyright põe à vista um paradoxo: de um lado, o capital precisa desse
reforço para preservar a ampliar sua posição em lucros, baseada na captura do
“tempo cerebral disponível” [na captura da “mais-valia, do trabalho da
multidão”, na formulação de Zizek, em “A
revolta da burguesia assalariada”, 17/1/2012, (NTs)] e na propriedade dos dados informacionais;
de outro lado, reforçar o copyright cria obstáculos à cooperação social,
altamente produtiva porque não se faz a partir da divisão do trabalho, mas a
partir do valor produzido pela circulação de fluxos de desejos, de percepções,
de afetos. Essa circulação produz novas sedimentações de significados, produz o
comum e produz comuns em quantidades vastíssimas, que excedem a capacidade do
capital para capturá-los.
Disputa
entre duas alas do capitalismo
Essa
contradição está no cerne da batalha interna que se trava entre duas alas do
capitalismo:
(a)
a ala dos capitalistas históricos, os “que estão no poder” [orig.
incumbent], como disse Yochai Benkler [3], constituída dos grandes
conglomerados do entertainement, para os quais o copyright é
vital; e
(b)
a ala das grandes empresas de Web 2.0, chamada, por Mackenzie Wark [4], de “a classe vetorial”, que se
alimenta, realmente, da grande produção comum.
Segue-se disso, que as leis SOPA e PIPA
são, por um lado, defendidas pelas majors e pelas cariátides das mídias
verticais, como as grandes empresas que ainda mantêm impérios jornalísticos,
como os Murdoch & Cia.
[5]; e, de outro lado, são combatidas pelos Google, Facebook, Ebay, Amazon e até pela convertida de última
hora, a Microsoft; esses, de fato,
não passam de falsas virgens, cujo objetivo nada tem a ver com alguma liberdade
de manifestação na rede, mas com a construção e demarcação de gigantescos e
muito rendáveis feudos (áreas privadas de caça?), como diz, com precisão, Infofreeflow [6].
Não podemos, portanto, concordar com o que diz Manuel
Castells em entrevista recente, que “Google é mais aliada que inimiga”
[7], porque é simplesmente “um negócio, não uma ideologia”.
Há contradição em termos, se se fala de uma das primeiras capitalizações
mundiais; e o que dizer, depois disso, da estratificação étnica praticada em seu
célebre
campus, Googleplex, no
qual os trabalhadores têm faixas de cores diferentes, diferentes direitos de
acesso e diferentes proibições para a socialização?
Em
termos mais gerais, o debate sobre a internet depois do fechamento da página Megaupload pelo FBI, reforçado pela
decisão, da empresa Twitter, de
implantar regime de autocensura, que faz o jogo dos poderes constituídos, está
marcado por duas tendências: de um lado, os entusiastas da rede, que veem em Megaupload um veículo importante, graças
aos seus traços de horizontalidade e de liberdade para a troca de informações.
De outro lado, os que criticam um capitalismo especificamente digital, baseado
na captura e na exploração de dados.
O
conceito “capitalismo digital” sugeriria a separação entre um capitalismo em
rede e um outro capitalismo, “material”, separação na qual o primeiro seria
marcado por um conflito dialético entre o parasitismo e a cooperação social; e o
segundo, por outro conflito, entre o empresário e o
operário.
Em todas essas, o capitalismo não faz distinção entre a
produção imaterial e a produção material – o que é válido para empresas de
computação, como Amazon ou Apple. O capitalismo digital não é uma esfera em si,
para retomar a crítica tradicional ao capitalismo cognitivo, cuja definição
exclui a dimensão material da produção e da exploração, tese defendida no artigo
de Wu Ming sobre
Fétichisme de la marchandise digitale et exploitation cachée : les cas
Amazon et Apple [8]
(O fetichismo da mercadoria digital e exploração oculta: os casos
de Amazon e Apple). As condições de trabalho nas
empresas digitais – vida carregada de stress e depressões, e número alarmante
de suicídios – indicam claramente que o que se produz nos armazéns da Amazon e nas fábricas de smartphones da chinesa Foxconn não é diferente, no fundo, dos
implacáveis métodos de “ou aumenta a produção ou cai fora”, que forçam à
competitividade até a última gota de sangue nos arranha-céus de La Défense [9].
Mesmo no setor das tecnologias digitais da informação e
da comunicação, veem-se grandes investidores e investimentos, que vão das
imensas, embora ocultadas e antiecológicas servers farms da empresa Google [10]
e da Cloud Computing, até a oferta de novas
redes (4G), e que, todos, utilizam as mesmas práticas possíveis de redução de
custos e de discriminação do trabalho assalariado. A massiva deslocalização de
fábricas na direção da Índia e de outros países onde os salários são menores e,
também, a recente lei francesa que precariza e torna expulsáveis os jovens
imigrados recém formados nas Faculdades de Engenharia privadas e pagas a preço
de ouro, são provas desse processo.
O
capitalismo digital está também fortemente implicado na governança global do
capitalismo rentista. Esse capitalismo opera num continuum de produção e de circulação que, ao
mesmo tempo, intensifica os ritmos da exploração e da proletarização do trabalho
assalariado e se apropria de grande parte do trabalho livre produzido com os
dispositivos (PCs, smartphones e tablets) não raras vezes comprados a
prestações. Tudo isso força a utilização de meio de pagamento obrigatório
(empresas iTunes, Ebay/Paypal, Amazon Oneclick) e empurra muitos
compradores para as garras do endividamento e da exploração
financeira.
Sem
negar a existência da exploração da produção material, sobretudo nas fábricas e
escritórios, queremos chamar a atenção para a evidência de que a grande rede é o
atrator que catalisa e reorganiza o conjunto das configurações produtivas além
de qualquer divisão ficcional entre trabalho material e imaterial, real e
virtual, ou entre mídias verticais e horizontais. A grande rede, de fato, não é
constituída só dos fluxos de dados, programação ou desenvolvimento e instalação
de programas; também é constituída das infraestruturas, servidores, laptops, smartphones e outros tablets; e, como consequência implícita,
a grande rede também é exposta à invasão pervasiva desses
dispositivos.
Dado
que não se vê qualquer choque entre esses dois capitalismos, mas um processo de
reconfiguração que se organiza em torno da hegemonia das finanças, da informação
e da circulação, parece bem claro que o único modo de alterar a situação
presente passa pela auto-organização do trabalho vivo das multidões no
território e nas redes.
ANONYMOUS
e
OCCUPY
Dentre os exemplos de auto-organização da multidão em
rede que emergiram há alguns anos, a experiência dos Anonymous parece-nos absolutamente
crucial. Esse grupo está no centro da grande reação-resposta ao fechamento da
página Megaupload e da mobilização
contra o tratado
ACTA. Sem aspirar a refazer toda a história do grupo em poucas
linhas, os Anonymous nasceram
praticamente com a campanha contra a seita da Cientologia e afirmaram-se com o
apoio que dão a Wikileaks, quando
atacaram diretamente as plataformas nevrálgicas de pagamento online,
como Visa, Mastercard, Paypal, que haviam bloqueado, por
iniciativa das próprias empresas, e sem qualquer justificativa legal, todas as
doações a WikiLeaks. [11]
Interessante
destacar o quanto a ação dos Anonymous e de seus hackers
ativos na grande rede é cada vez mais claramente complementar e integrada aos
movimentos Occupy e 15M e,
simultaneamente, surge como alternativa às plataformas empresariais de
comunicação social como Facebook ou
Twitter. Além da osmose e das
evidentes diferenças de contexto e modo de ação entre as grandes instâncias do
movimento global, já emergem semelhanças marcantes no campo dos princípios e das
modalidades de organização.
A infraestrutura técnica na qual se trava o debate
público provocado e feito pelos Anonymous é o IRC (Internet Relay
Chat), a primeira modalidade surgida de comunicação instantânea
(chat) por Internet, que permite o diálogo simultâneo de grupos de
pessoas, em “salas de bate-papo” chamadas ali “canais”. A topologia da rede IRC,
como escreveu Dmytri Kleiner [12], preserva
os princípios da comunicação entre usuários (peer to peer, P2P), em
oposição à configuração atual de tipo cliente/servidor das plataformas de rede
social [orig.
social networking] baseadas na rede.
Os
Anonymous criaram e utilizam vários
canais autônomos, como lugares de debates públicos e para outras atividades de
fundo humorístico (“só pelo sarro”, Lulz, LoL, \o/) ou consagrados a
discussões sobre o social. Os canais de debate têm função semelhante à das
assembleias dos movimentos Occupy e
15M, e nos três casos a coordenação das discussões é não
hierárquica.
Como lembrado em artigo recente [13], há um
código ético de funcionamento dos Anonymous, segundo o qual nem a
liderança, nem a celebridade, em nenhum caso, são fim em si. Os Anonymous oferecem o que Mike Wesch
[14] definiu como “uma crítica virulenta contra o culto
pós-moderno da celebridade, do individualismo e do conceito de identidade”. Tudo
isso se manifesta, em primeiro lugar, na recusa a identificarem-se por nome e
sobrenome civis, identificação que, em geral, define o modelo político-econômico
de plataformas como Facebook. O
anonimato, nesse caso, permite adotar, no ambiente eletrônico, o mesmo tipo de
andamento e de procedimentos adotado nas assembleias do movimento 15M, para
evitar comportamentos egocêntricos; e favorece a que se insista sempre em
buscar, escrupulosa e incansavelmente, o consenso possível caso a
caso.
Os
canais
IRC, onde se constituem as várias facções dos Anonymous, são abertos ao público, mas
os Anons exigem um mínimo de
competências técnicas e de conhecimento do ambiente, para entrar ou para
tornar-se administrador (ops) de operações. Os Ops têm a tarefa de manter a ordem e
podem excluir pessoas que desrespeitem as regras culturais e decisões vigentes:
no canal Anonops, por exemplo, é
proibido fazer apologia da violência e discutir com a mídia. Os Ops podem participar do debate, mas não
determinam os planos de ação nem as operações (raids) dos Anonymous.
Como no movimento dos Indignados, também nos Anonymous são as pessoas que mais
trabalham que acabam por ser investidas de alguma autoridade; mas não são
liberadas para exercer influência específica. As regras são mais rígidas para os
contatos com o exterior: um Anon que
se recuse a participar das ações diretas, de tipo “Negação Distribuída de
Serviço” (DDoS) [15], e que fale com jornalistas, corre risco de expulsão.
Entre os
Indignados, todos podem falar aos veículos verticais de
comunicação de massa (rádios, jornais, revistas e televisões) sobre o movimento,
mas sempre, exclusivamente, em seu próprio nome: ninguém pode apresentar-se como
representante ou porta-voz do movimento.
Se se considera essa convergência real, pode-se esperar
que, no futuro, as barreiras técnicas que ainda separam essas instâncias do
movimento da multidão venham a diluir-se; hoje, carregamos dispositivos
conectados cada dia mais potentes, que permitem que nosso corpo, nosso espírito,
nossa inteligência interajam com as redes. As vidas (do grego bios) estão
hoje mais socialmente integradas, de modo mais intenso e contínuo, pela internet
portátil, mediante várias redes e milhões de aplicações. Esse é um novo
paradigma, que definimos como “bio-hipermidiático” [16].
É
nossa impressão hoje, nosso sentimento, que a bio-hipermídia será um meio chave
que permitirá integrar ainda mais significativamente os movimentos da rua e que
se manifestam em rede.
Notas
dos tradutores
[1]
A
página-rede Savoirscommuns.org
nasceu em fevereiro de 2011, durante a Reunião Transnacional de Paris, sobre a
constituição da rede KLF (Knowledge
Liberation Front / Frente para a Libertação do Conhecimento) e ao tempo dos
levantes no Mediterrâneo. Essa página-rede visa a ser mais um dos vários espaços
de expressão da multidão de trabalhadores precários, estudantes, assalariados,
migrantes, que se queiram reapropriar da riqueza que produzimos juntos. O espaço
de nossa ação política é transnacional, porque nossas lutas comuns travam-se
contra o sistema mundial da dívida, contra as políticas de austeridade e contra
a precariedade. Por essa razão, recusamos a captura de nossa vida pelo
endividamento perpétuo e pela arrogância da finança e dos financistas globais e
seus bancos, suas empresas de seguro, seus fundos de pensão (de Savoirs
Communs, “Quem somos”).
[2]
Publicado
originalmente em italiano, por Uninomade.org; em inglês na página
Opendemocracy.net; em francês noLe MondeDiplo.com. Traduzido do italiano
ao francês por Giorgio Griziotti. Traduzido do francês ao português do Brasil
pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu, de: “Netwar
2.0 : Vers une convergence de la rue et du réseau”
(recebido
por e-mail).
[5] Em: “Murdoch,
Berlusconi: chute de deux empires médiatiques et la force de la multitude en
réseau” e “Berlusconi
et Murdoch dans le même vieux bateau qui coule”
[7] Em: “Auto-comunicazione
di massa”.
[9]
“La Défense”
é
“a Wall Street de Paris”. O bairro está localizado no extremo oeste de Paris. É
o maior centro empresarial desenvolvido na Europa.
[10] “Google Platform”
- Os
conjuntos de milhares de computadores onde opera o “cérebro” computacional da
empresa Google, sempre cercado de sigilo máximo.
[11]
Sobre os Anonymous, ver “Anonymous: A ética da ação digital
direta”, 27/1/2012. A partir daquela página, pode-se ler
também vários artigos publicados pelo blog redecastorphoto, sobre os Anonymous.
[13] 6/4/2011, MediaCommons,
Biella Coleman em: “Anonymous:
From the Lulz to Collective Action”
[15] Em: “Attaque par
déni de service”
[16] 11/5/2011, André Steidel e Giorgio Griziotti, Savoirs Communs em: “Production du
commun, réseaux et bio-hypermedia”
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