domingo, 18 de março de 2012

Pepe Escobar: “O horror, o horror” [1]


16/3/2012, Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“Temos de matá-los... Temos de incinerá-los. Porco a porco... vaca a vaca... vila a vila... exército a exército.”
Coronel Kurtz [Marlon Brando], em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (1979)

Um soldado dos EUA massacrou 16 civis (mulheres, velhos e crianças) no Afeganistão. 
Foi o momento “Mi-Lai” no Afeganistão, segundo Pepe Escobar. (Foto EPA)

Hong Kong
– Começou muito antes de um matador solitário, sargento do Exército dos EUA, casado e pai de dois filhos, andar até um vilarejo em Panjwayi, sudoeste da cidade de Kandahar e, “supostamente” num surto psicótico, ter assassinado 16 civis.


Foi o momento Haditha do Afeganistão [2] – como no Iraque; ou o momento Mi-Lai, como no Vietnã [3].
Pepe Escobar
Já estava em formação, crescendo, desde os bombardeios seriais com aviões-robôs, os drones, contra festas de casamento tribais; desde os “raids aéreos” seriais secretos das Forças Especiais dos EUA; desde os assassinatos seriais secretos das “equipes de matadores”, em 2010; desde o ritual de urinação sobre cadáveres de afegãos, por “nossos rapazes em uniforme”; até, a ofensa mais recente e não menos importante, da queima de exemplares de livros sagrados em Bagram. Será que... “Missão cumprida”?

Segundo a mais recente pesquisa Post/ABC – feita antes do massacre de Kandahar – 55% dos norte-amerianos desejam o fim da guerra do Afeganistão [4].

O presidente Barack Obama dos EUA repetiu que, depois de dez anos de guerra que custou, por baixo, $400 bilhões, o “papel de combate” das tropas da OTAN terminará em 2014. Segundo Obama, Washington só quer garantir que “a al-Qaeda não esteja operante e haja suficiente estabilidade para que não haja lá uma terra de ninguém”. [5]

A Al-Qaeda não está “operante” por lá, faz muito tempo; só há um punhado de instrutores norte-americanos, e não estão “lá”, mas nos Waziristões, nas áreas tribais paquistanesas.

E quanto à “estabilidade”, esqueçam. As “forças de segurança afegãs” que teoricamente assumirão o comando em 2014, ou talvez antes, são nada, estão destroçadas. A taxa de analfabetismo é de espantosos 80%. Pelo menos 25% desertam. O estupro de crianças é endêmico. Mas de 50% dos soldados afegãos vivem permanentemente chapados de haxixe, de esteroides.

O nível de desconfiança entre afegãos e norte-americanos é cósmico. Segundo estudo de 2011, que o Pentágono classificou como secreto, depois de ter vazado para o Wall Street Journal  [6] – os militares norte-americanos veem os afegãos como covardes corruptos; e os afegãos veem os militares norte-americanos como covardes intrometidos.

Considere o momento Saigon-1975, seja agora seja em 2014, e os fatos em campo são sempre os mesmos: instabilidade suficiente para sacudir os pilares do Hindu Kush.

Dê cara ou dê coroa na Contrainsurgência... Ganhei!

O Afeganistão sempre foi uma tragédia trespassada pela farsa. Considerem as 83 restrições originais da OTAN nas regras de engajamento, que levaram, por exemplo, a um surto de soldados franceses mortos em 2008, porque a França, pressionada pelos EUA, parou de pagar aos Talibã por proteção; ou imaginem Berlim dizendo que a coisa não é guerra, só “missão humanitária”.

As batalhas internas – diferente do que se via no Vietnã – já são legendárias. Como os Contrainsurgentistas – a gangue da contrainsurgência, apoiada pelo chefe do Pentágono Bob Gates – investidos numa “nova missão” e sob “nova liderança militar”, vencendo a aposta contra a estratégia “Contraterrorismo Plus” (CT-PLUS), ou “Contrainsurgenterrorismo”, do vice-presidente Joe Biden, de menos soldados em campo e trabalhando no contraterrorismo.

O vencedor, como todos lembrarão, foi o general-rockstar Stanley McChrystal, que dizia que o plano Biden levaria ao “Caos-zistão”, por acaso palavra que dava título a uma análise sigilosa da CIA.

Stanley McChrystal – porta-voz do Pentágono em março de 2003, durante a invasão do Iraque – queria muito mudar a cultura da OTAN e do Exército dos EUA no Afeganistão. Queria destruir a cultura “atire-primeiro-e-faça-voar-aquela-merda” e evoluir para “proteção à população civil”. Em suas próprias palavras, aquela “munição ar-terra” e “fogo indireto” contra casas de famílias afegãs “só eram autorizadas som condições muito limitadas e bem claras”.

Venceu – protegido pelo escudo de general-rockstar – mas só por um rápido momento.

Tudo isso, com o Departamento de Estado, a DEA e o FBI avisando sobre os terríveis contrabandistas de drogas e cesta sortida de bandidagem; e, do lado oposto, a CIA e o Pentágono elogiando a mesma rapaziada, que seria fonte de informações de inteligência “da boa”, que sempre venceria.

E tudo era plenamente justificado por um bando de relutantes guerreiros/falcões liberais, em postos como o Center for a New American Security [Centro para uma Nova Segurança Americana] – abarrotado de jornalistas “respeitáveis”.

Hamid Karzai venceu as eleições afegãs mediante fraude gigantesca. Seu meio-irmão Ahmed Wali Karzai – então chefe de conselho provincial em Kandahar – vivia livre para manter azeitado seu massivo negócio de drogas, e fazia pouco caso das eleições (“o povo nessa região não entende disso”).

Quem se importava, se o governo afegão em Kabul era/é de fato um sindicato do crime? Comandantes locais “leais” – “os nossos filhos da puta” – recebiam dinheiro cada vez mais farto e até mantinham dedicadas Forças Especiais como assessores e conselheiros pessoais, deles e dos respectivos esquadrões da morte.

McChrystal, diga-se a seu favor, admitiu que os soviéticos nos anos 1980s fizeram várias coisas certas (por exemplo, construir estradas, promover governo central, garantir educação igual para meninos e meninas, modernizar o país).

Mas eles também fizeram muitas coisas terrivelmente erradas, como varrer a terra à bomba e matar 1,5 milhão de afegãos. Se os planejadores do Pentágono tivessem pelo menos presença de espírito e lessem Afgantsy: The Russians in Afghanistan 1970-89 (Profile Books), escrito pelo ex-embaixador britânico Rodric Braithwaite, a partir de várias ricas fontes russas, da KGB à Fundação Gorbachev; da internet ao livro espetacular do falecido general Alexander Lyakhovsky.

Você tem direito de ser mal informado

O Pentágono jamais aceitará a retirada em 2014: caminha da direção absolutamente oposta à sua própria doutrina da Dominação de Pleno Espectro, que depende das muitas bases no Afeganistão para monitorar/ controlar/ infernizar concorrentes estratégicos – Rússia e China.

A saída será farsa. O Pentágono transferirá suas operações especiais para a CIA; tornar-se-ão “espiões”, em vez de “soldados em campo” [7].

O que significará, essencialmente, uma extensão ad infinitum do Programa Fênix no Vietnã, que se encarregou do assassinato premeditado [“targeted killing”] de mais de 20 mil “suspeitos” de apoiar o vietcong.

E isso nos leva ao atual diretor da CIA, o midiático general David Petraeus e sua cria –o COIN field manual FM 3-24 [Manual de campo MC 3-24 da Contrainsurgência], resposta do Pentágono ao Casamento do Céu com o Inferno [Marriage of Heaven and Hell] de William Blake, como casamento da contrainsurgência com a guerra ao terror. E isso, mesmo depois de um estudo da RAND de 2008, intitulado Como terminam os grupos terroristas [How Terrorist Groups End], ter insistido em que o único modo de derrotar grupos terroristas é mediante boa velha operação de aplicação da lei.

A matança de afegãos tensiona as relações com os EUA 

Petraeus não dá a mínima bola. Afinal, suas “operações de informação” – massiva manipulação da mídia, combinada com massiva distribuição das proverbiais malas cheias de dólares americanos – ganhou a “sua” e de George W Bush “avançada” [surge] no Iraque.

Os orgulhosos pashtuns foram osso muito mais duro de roer que os xeiques sunitas no deserto. Tornaram-se tão “sem tecnologia” – fabricando dezenas de milhares de bombas caseiras com fertilizante, madeira e munição mofada – que de fato neutralizaram, a ponto de inutilizar, nas estradas e trilhas, a alta tecnologia de morte dos EUA, o que levou à infinidade de matérias nos jornais sobre “considerável aumento na atividade de Dispositivos Explosivos Improvisados [Improvised Explosive Devices, IEDs]”.

Desde a posse de Obama, o Pentágono vem jogando extra-sujo para conseguir a exata guerra que sempre quiseram fazer no Afeganistão.

Conseguiram. Petraeus entrou em modo “progresso”, todos os dias e noites na mídia, ininterruptamente. As populações locais estar-se-iam “tornando mais receptivas” aos soldados dos EUA, apesar de a National Intelligence Estimate (NIE) – que manifesta o saber acumulado de 17 agências de inteligência dos EUA – ter continuado sombria.

Petraeus fez o que faz melhor: remixou a NIE. Jamais admitiu que a guerra prosseguiria para além de 2014. Disparou ataques aéreos, lançou número astronômico de ataques com helicópteros Apache e Kiowa, triplicou o número de raids noturnos da Forças Especiais, autorizou uma minioperação “Choque e Pavor”, bombardeou até a pulverização [8] a cidade de Tarok Kolache no sul do Afeganistão.

Depois de mais um massacre norte-americano em fevereiro de 2011 na província Kunar, que deixou 64 civis mortos, Petraeus ainda teve o atrevimento de acusar os afegãos de queimarem as próprias crianças [9] para apresentá-las como dano colateral. Bom para ele. Naquele momento, suas relações com Obama estavam até melhorando.

O governo Obama está, de fato, convencido de que a “avançada” de Obama, liderada por Petraeus e agendada para terminar em setembro, “estabilizou” o Afeganistão, pelo menos na região conhecida como “comando regional leste”; é o que Petraeus chama de “o suficientemente bom afegão”.

A maior parte do país, de fato, alcançou o “suficientemente bom talibã”, mas quem se preocupa com isso? Quando a queimar bebês, será apresentado pelos mais cínicos, talvez, como traço do excepcionalismo americano. Basta lembrar o Abrigo Amiriya, em Bagdá, dia 13/2/1991, quando nada menos que 408 crianças e as mães foram queimadas vivas pelos EUA.

Nunca mais o olharei nos olhos...

Como não lembrar o inimitável Dennis Hopper, na pele do fotojornalista psicodélico em Apocalypse Now, falando sobre o coronel Kurtz/Marlon Brando: “É um guerreiro-poeta no sentido clássico...” [10]

“Guerreiro-poeta” McChrystal estava convencido de que o Afeganistão não era o Vietnã; no Vietnã os EUA combatiam uma “insurgência popular”, mas não no Afeganistão (errado: as muitas tendências emaranhadas por trás da fachada “Talibã” foram-se tornando mais populares, na direta proporção do desastre de Karzai, para nem dizer que, no Vietnã, a conversa oficial do Pentágono pela mídia era a de que o vietcong nunca fora popular).

Generais, afinal, não têm surtos de assassinatos ao estilo Kurtz. Petraeus foi promovido, para lançar a Guerra Clandestina & Co., na CIA. Depois de demitido, na sequência de um “perfil” publicado na revista Rolling Stone – que droga de rockstar é esse? – McChrystal terminou por ser reabilitado pela Casa Branca.

Deu aulas em Yale, entrou para o ramo da consultoria, está fazendo fortuna no circuito das conferências – destilando sabedoria sobre “liderança” e o Oriente Médio Expandido – e Obama nomeou-o conselheiro não remunerado de famílias de militares.

McChrystal vê o Afeganistão preso “em alguma espécie de pesadelo pós-apocalíptico”. “O horror... O horror...” de Conrad é perene. A lição chave que o Pentágono aprendeu do Vietnã foi encaixotar o horror, vedar a caixa e voluptuosamente, abraçar-se a ela.

Portanto, não surpreende que McChrystal não consiga ver que olha como o coronel Kurtz remixado – enquanto Petraeus foi o mais metódico, mas não menos mortal, Capitão Willard.

Diferente do Vietnã, contudo, dessa vez não haverá um Coppola para ganhar a guerra para Hollywood. Mas muitos Homens Ocos [11] continuarão no Pentágono.



Notas dos tradutores

[1]  É expressão que aparece em Joseph Conrad, O Coração das Trevas (1902), num fragmento no qual fala “o criminoso” falando do seu crime (aqui traduzido, tradução de trabalho):

“Eu estava fascinado. Foi como se o véu se abrisse. Vi naquele rosto de marfim a expressão do orgulho obscuro, de poder cruel, de terror profundo – de um desespero intenso e sem esperança. Teria visto a vida passar ante os olhos, cada detalhe de desejo, tentação, rendição, naquele momento de conhecimento completo? Ante alguma imagem, soluçou um suspiro, alguma coisa que via – soluçou duas vezes, soluço sem ar: O horror! O horror!” 

Expressão semelhante (horror... horror... o horror tem face.) aparece em Apocalypse Now (1979), adaptação do romance de Conrad para o cinema, mas em contexto interpretativo diferente, como se vê e ouve:


... na cena antológica em que Kurz/Brando fala longamente. O nome do personagem de Coppola/Brando [Coronel Kurz], é quase o mesmo do personagem de Conrad [Kurtz], e o deslocamento da trama, do Congo colonial, em Conrad, para a guerra do Vietnã, em Coppola, muda a chave interpretativa.
Além disso, uma frase do romance de Conrad, sobre a morte de Kurz (Mistah Kurtz-he dead / A penny for the Old Guy [‘Sêo  Kurtz ‘tá morto / Um tostão, pelo coitado]) aparece na epígrafe do poema de T.S. Eliot (The Hollow Men [Os homens ocos], de 1925), citado adiante nesse artigo cheio de ecos e ressonâncias difíceis de traduzir (ver nota 11).

[2] O “massacre de Haditha” aconteceu dia 19/11/2005, na cidade de Haditha, na província de Al Anbar, no Iraque, onde um grupo de Marines dos EUA matou 24 civis iraquianos (várias mulheres e crianças) desarmados.

[3] O “massacre de May Lai” aconteceu dia 16/3/1968 (há exatos, ontem, 54 anos! Será que a matança nunca acabará?!), no Vietnã do Sul, onde soldados norte-americanos assassinaram quase 500 civis desarmados.


[5]  Ver também, sobre as declarações de Obama, 11/3/2012, MK Bhadrakumar, “Quando a visita esquece de ir embora...”.  
[6] 17/6/2011, Wall Street Journal, em: “Report Sees Danger in Local Allies”. 
[7] 26/1/2012, Stars and Stripes, em: “Bin Laden raid commander seeks global expansion of special ops”.
  
[8] 19/1/2011, Wired, em: “25 Tons of Bombs Wipe Afghan Town Off Map [Updated]


[10] Pode-se ver/ouvir em: “Words and wisdom

[11] The Hollow Men [Os homens ocos], poema de T.S.Eliot, 1925 (em inglês)

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