16/3/2012,
Pepe Escobar, Al-Jazeera,
Qatar
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
“Temos
de matá-los... Temos de incinerá-los.
Porco a porco... vaca a vaca... vila a vila... exército a
exército.”
Coronel
Kurtz [Marlon Brando], em Apocalypse Now, de Francis Ford
Coppola (1979)
Um
soldado dos EUA massacrou 16 civis (mulheres, velhos e crianças) no Afeganistão.
Foi o momento “Mi-Lai” no Afeganistão, segundo Pepe Escobar. (Foto EPA)
|
Hong Kong – Começou muito antes de um matador solitário, sargento do Exército dos EUA, casado e pai de dois filhos, andar até um vilarejo em Panjwayi, sudoeste da cidade de Kandahar e, “supostamente” num surto psicótico, ter assassinado 16 civis.
Foi o momento Haditha do Afeganistão [2]
– como no
Iraque; ou o momento Mi-Lai, como no Vietnã [3].
Pepe Escobar |
Já
estava em formação, crescendo, desde os bombardeios seriais com aviões-robôs,
os drones, contra festas de
casamento tribais; desde os “raids
aéreos” seriais secretos das Forças Especiais dos EUA; desde os
assassinatos seriais secretos das “equipes de matadores”, em 2010; desde o
ritual de urinação sobre cadáveres de afegãos, por “nossos rapazes em uniforme”;
até, a ofensa mais recente e não menos importante, da queima de exemplares de
livros sagrados em Bagram. Será que... “Missão cumprida”?
Segundo a mais recente pesquisa Post/ABC – feita antes
do massacre de Kandahar – 55% dos norte-amerianos desejam o fim da guerra do
Afeganistão [4].
O
presidente Barack Obama dos EUA repetiu que, depois de dez anos de guerra que
custou, por baixo, $400 bilhões, o “papel de combate” das tropas da OTAN
terminará em 2014. Segundo Obama, Washington só quer garantir que “a al-Qaeda
não esteja operante e haja suficiente estabilidade para que não haja lá uma
terra de ninguém”. [5]
A
Al-Qaeda não está “operante” por lá, faz muito tempo; só há um punhado de
instrutores norte-americanos, e não estão “lá”, mas nos Waziristões, nas áreas
tribais paquistanesas.
E
quanto à “estabilidade”, esqueçam. As “forças de segurança afegãs” que
teoricamente assumirão o comando em 2014, ou talvez antes, são nada, estão
destroçadas. A taxa de analfabetismo é de espantosos 80%. Pelo menos 25%
desertam. O estupro de crianças é endêmico. Mas de 50% dos soldados afegãos
vivem permanentemente chapados de haxixe, de esteroides.
O
nível de desconfiança entre afegãos e norte-americanos é cósmico. Segundo estudo
de 2011, que o Pentágono classificou como secreto, depois de ter vazado para
o Wall Street Journal [6]
– os militares norte-americanos veem os afegãos como covardes
corruptos; e os afegãos veem os militares norte-americanos como covardes
intrometidos.
Considere
o momento Saigon-1975, seja agora seja em 2014, e os fatos em campo são sempre
os mesmos: instabilidade suficiente para sacudir os pilares do Hindu
Kush.
Dê
cara ou dê coroa na Contrainsurgência... Ganhei!
O
Afeganistão sempre foi uma tragédia trespassada pela farsa. Considerem as 83
restrições originais da OTAN nas regras de engajamento, que levaram, por
exemplo, a um surto de soldados franceses mortos em 2008, porque a França,
pressionada pelos EUA, parou de pagar aos Talibã por proteção; ou imaginem
Berlim dizendo que a coisa não é guerra, só “missão humanitária”.
As
batalhas internas – diferente do que se via no Vietnã – já são legendárias. Como
os Contrainsurgentistas – a gangue da contrainsurgência, apoiada pelo chefe do
Pentágono Bob Gates – investidos numa “nova missão” e sob “nova liderança
militar”, vencendo a aposta contra a estratégia “Contraterrorismo Plus” (CT-PLUS), ou
“Contrainsurgenterrorismo”, do vice-presidente Joe Biden, de menos soldados em
campo e trabalhando no contraterrorismo.
O
vencedor, como todos lembrarão, foi o general-rockstar Stanley McChrystal, que dizia que o plano
Biden levaria ao “Caos-zistão”, por acaso palavra que dava título a uma análise
sigilosa da CIA.
Stanley
McChrystal – porta-voz do Pentágono em março de 2003, durante a invasão do
Iraque – queria muito mudar a cultura da OTAN e do Exército dos EUA no
Afeganistão. Queria destruir a cultura
“atire-primeiro-e-faça-voar- aquela-merda” e evoluir para “proteção à
população civil”. Em suas próprias palavras, aquela “munição ar-terra” e “fogo
indireto” contra casas de famílias afegãs “só eram autorizadas som condições
muito limitadas e bem claras”.
Venceu
– protegido pelo escudo de general-rockstar
– mas só por um rápido momento.
Tudo
isso, com o Departamento de Estado, a
DEA e o FBI
avisando sobre os terríveis contrabandistas de drogas e cesta sortida de
bandidagem; e, do lado oposto, a
CIA e o Pentágono
elogiando a mesma rapaziada, que seria fonte de informações de inteligência “da
boa”, que sempre venceria.
E
tudo era plenamente justificado por um bando de relutantes guerreiros/falcões
liberais, em postos como o Center
for a New American Security [Centro
para uma Nova Segurança Americana] – abarrotado de jornalistas
“respeitáveis”.
Hamid
Karzai venceu as eleições afegãs mediante fraude gigantesca. Seu meio-irmão
Ahmed Wali Karzai – então chefe de conselho provincial em Kandahar – vivia livre
para manter azeitado seu massivo negócio de drogas, e fazia pouco caso das
eleições (“o povo nessa região não entende disso”).
Quem
se importava, se o governo afegão em Kabul era/é de fato um sindicato do crime?
Comandantes locais “leais” – “os nossos filhos da puta” – recebiam dinheiro cada
vez mais farto e até mantinham dedicadas Forças Especiais como assessores e
conselheiros pessoais, deles e dos respectivos esquadrões da
morte.
McChrystal,
diga-se a seu favor, admitiu que os soviéticos nos anos 1980s fizeram várias
coisas certas (por exemplo, construir estradas, promover governo central,
garantir educação igual para meninos e meninas, modernizar o
país).
Mas
eles também fizeram muitas coisas terrivelmente erradas, como varrer a terra à
bomba e matar 1,5 milhão de afegãos. Se os planejadores do Pentágono tivessem
pelo menos presença de espírito e lessem
Afgantsy: The Russians in Afghanistan 1970-89 (Profile Books), escrito pelo ex-embaixador
britânico Rodric Braithwaite, a partir de várias ricas fontes russas, da KGB
à Fundação Gorbachev; da internet ao livro espetacular do falecido
general Alexander Lyakhovsky.
Você tem
direito de ser mal informado
O
Pentágono jamais aceitará a retirada em 2014: caminha da direção absolutamente
oposta à sua própria doutrina da Dominação de Pleno Espectro, que depende das
muitas bases no Afeganistão para monitorar/ controlar/ infernizar concorrentes
estratégicos – Rússia e China.
A saída será farsa. O Pentágono transferirá suas
operações especiais para a CIA;
tornar-se-ão “espiões”, em vez de “soldados em campo” [7].
O
que significará, essencialmente, uma extensão
ad infinitum do Programa
Fênix no Vietnã, que se encarregou do assassinato premeditado [“targeted
killing”] de mais de 20 mil “suspeitos” de apoiar o
vietcong.
E
isso nos leva ao atual diretor da
CIA, o midiático general David Petraeus e sua cria –o COIN field manual FM 3-24 [Manual de
campo MC 3-24 da Contrainsurgência], resposta do Pentágono ao Casamento do Céu
com o Inferno [Marriage of Heaven and Hell] de William Blake, como
casamento da contrainsurgência com a guerra ao terror. E isso, mesmo depois de
um estudo da RAND de 2008, intitulado
Como terminam os grupos terroristas
[How Terrorist Groups End], ter insistido em que o único modo
de derrotar grupos terroristas é mediante boa velha operação de aplicação da
lei.
A
matança de afegãos tensiona as relações com os EUA
Petraeus
não dá a mínima bola. Afinal, suas “operações de informação” – massiva
manipulação da mídia, combinada com massiva distribuição das proverbiais malas
cheias de dólares americanos – ganhou a “sua” e de George W Bush “avançada”
[surge] no Iraque.
Os
orgulhosos pashtuns foram osso muito mais duro de roer que os xeiques sunitas no
deserto. Tornaram-se tão “sem tecnologia” – fabricando dezenas de milhares de
bombas caseiras com fertilizante, madeira e munição mofada – que de fato
neutralizaram, a ponto de inutilizar, nas estradas e trilhas, a alta tecnologia
de morte dos EUA, o que levou à infinidade de matérias nos jornais sobre
“considerável aumento na atividade de Dispositivos Explosivos Improvisados [Improvised Explosive
Devices,
IEDs]”.
Desde
a posse de Obama, o Pentágono vem jogando extra-sujo para conseguir a exata
guerra que sempre quiseram fazer no Afeganistão.
Conseguiram.
Petraeus entrou em modo “progresso”, todos os dias e noites na mídia,
ininterruptamente. As populações locais estar-se-iam “tornando mais receptivas”
aos soldados dos EUA, apesar de a
National Intelligence Estimate (NIE) – que manifesta o saber acumulado de 17
agências de inteligência dos EUA – ter continuado sombria.
Petraeus fez o que faz melhor: remixou a NIE. Jamais admitiu que a guerra
prosseguiria para além de 2014. Disparou ataques aéreos, lançou número
astronômico de ataques com helicópteros Apache e Kiowa, triplicou o número de
raids noturnos da Forças
Especiais, autorizou uma minioperação “Choque e Pavor”, bombardeou até a
pulverização [8] a cidade de Tarok Kolache no sul
do Afeganistão.
Depois de mais um massacre norte-americano em fevereiro
de 2011 na província Kunar, que deixou 64 civis mortos, Petraeus ainda teve o
atrevimento de acusar os afegãos de queimarem as próprias crianças [9]
para
apresentá-las como dano colateral. Bom para ele. Naquele momento, suas relações
com Obama estavam até melhorando.
O
governo Obama está, de fato, convencido de que a “avançada” de Obama, liderada
por Petraeus e agendada para terminar em setembro, “estabilizou” o Afeganistão,
pelo menos na região conhecida como “comando regional leste”; é o que Petraeus
chama de “o suficientemente bom afegão”.
A
maior parte do país, de fato, alcançou o “suficientemente bom talibã”, mas quem
se preocupa com isso? Quando a queimar bebês, será apresentado pelos mais
cínicos, talvez, como traço do excepcionalismo americano. Basta lembrar o Abrigo
Amiriya, em Bagdá, dia 13/2/1991, quando nada menos que 408 crianças e as mães
foram queimadas vivas pelos EUA.
Nunca
mais o olharei nos olhos...
Como não lembrar o inimitável Dennis Hopper, na pele do
fotojornalista psicodélico em
Apocalypse Now, falando sobre o coronel Kurtz/Marlon Brando: “É um
guerreiro-poeta no sentido clássico...” [10]
“Guerreiro-poeta”
McChrystal estava convencido de que o Afeganistão não era o Vietnã; no Vietnã os
EUA combatiam uma “insurgência popular”, mas não no Afeganistão (errado: as
muitas tendências emaranhadas por trás da fachada “Talibã” foram-se tornando
mais populares, na direta proporção do desastre de Karzai, para nem dizer que,
no Vietnã, a conversa oficial do Pentágono pela mídia era a de que o vietcong
nunca fora popular).
Generais,
afinal, não têm surtos de assassinatos ao estilo Kurtz. Petraeus foi promovido,
para lançar a Guerra Clandestina & Co., na
CIA. Depois de demitido,
na sequência de um “perfil” publicado na revista Rolling Stone – que droga de rockstar é esse? – McChrystal terminou por ser
reabilitado pela Casa Branca.
Deu
aulas em Yale, entrou para o ramo da consultoria, está fazendo fortuna no
circuito das conferências – destilando sabedoria sobre “liderança” e o Oriente
Médio Expandido – e Obama nomeou-o conselheiro não remunerado de famílias de
militares.
McChrystal
vê o Afeganistão preso “em alguma espécie de pesadelo pós-apocalíptico”. “O
horror... O horror...” de Conrad é perene. A lição chave que o Pentágono
aprendeu do Vietnã foi encaixotar o horror, vedar a caixa e voluptuosamente,
abraçar-se a ela.
Portanto,
não surpreende que McChrystal não consiga ver que olha como o coronel Kurtz
remixado – enquanto Petraeus foi o mais metódico, mas não menos mortal, Capitão
Willard.
Diferente do Vietnã, contudo, dessa vez não haverá um
Coppola para ganhar a guerra para Hollywood. Mas muitos Homens Ocos [11]
continuarão no
Pentágono.
Notas
dos tradutores
[1]
É
expressão que aparece em Joseph Conrad,
O Coração das Trevas
(1902), num fragmento no qual fala “o criminoso” falando do seu crime
(aqui traduzido, tradução de trabalho):
“Eu
estava fascinado. Foi como se o véu se abrisse. Vi naquele rosto de marfim a
expressão do orgulho obscuro, de poder cruel, de terror profundo – de um
desespero intenso e sem esperança. Teria visto a vida passar ante os olhos, cada
detalhe de desejo, tentação, rendição, naquele momento de conhecimento completo?
Ante alguma imagem, soluçou um suspiro, alguma coisa que via – soluçou duas
vezes, soluço sem ar: O horror! O horror!”
Expressão
semelhante (horror... horror... o horror tem face.) aparece em Apocalypse Now (1979), adaptação do romance de Conrad
para o cinema, mas em contexto interpretativo diferente, como se vê e ouve:
...
na cena antológica em que Kurz/Brando fala longamente. O nome do personagem de
Coppola/Brando [Coronel Kurz], é quase o mesmo do personagem de Conrad [Kurtz],
e o deslocamento da trama, do Congo colonial, em Conrad, para a guerra do
Vietnã, em Coppola, muda a chave interpretativa.
Além
disso, uma frase do romance de Conrad, sobre a morte de Kurz (Mistah Kurtz-he
dead / A penny for the Old Guy [‘Sêo Kurtz ‘tá morto / Um tostão, pelo
coitado]) aparece na epígrafe do poema de T.S. Eliot (The Hollow
Men [Os homens ocos], de 1925),
citado adiante nesse artigo cheio de ecos e ressonâncias difíceis de traduzir
(ver nota 11).
[2]
O “massacre de Haditha” aconteceu dia 19/11/2005, na cidade de Haditha, na
província de Al Anbar, no Iraque, onde um grupo de Marines dos EUA matou 24 civis iraquianos (várias
mulheres e crianças) desarmados.
[3]
O “massacre de May Lai” aconteceu dia 16/3/1968 (há exatos, ontem, 54 anos! Será
que a matança nunca acabará?!), no Vietnã do Sul, onde soldados norte-americanos
assassinaram quase 500 civis desarmados.
[4] 11/3/2012, Washington Post, em:
“Amid
anger over Afghan killings, U.S. faces
growing public weariness about war”
[5]
Ver
também, sobre as declarações de Obama, 11/3/2012, MK Bhadrakumar, “Quando a visita esquece de ir
embora...”.
[7] 26/1/2012, Stars and
Stripes, em: “Bin Laden raid commander seeks global expansion of
special ops”.
[8] 19/1/2011, Wired, em: “25
Tons of Bombs
Wipe Afghan Town Off Map [Updated]”
[9] 21/2/2011, Antiwar News, em: “Petraeus
Accuses Afghan Parents of Burning Kids to Make US Look Bad”
[10]
Pode-se ver/ouvir em: “Words and wisdom”
http://www.voltairenet.org/Gulf-Arabs-offered-bribe-to-Russia
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