29/3/2012, Pepe Escobar,
Asia Times Online
Traduzido
pelo Coletivo de Tradutores da Vila
Vudu
Da
banda Gang of Four,
citada adiante, o Coletivo de Tradutores da Vila Vudu sugere, como epígrafe,
To Hell With Poverty a seguir:
Pepe Escobar |
O
novo século 21 é viciado em pornoguerra, esporte para espectadores de alta
classe consumido no sofá global com batatinhas digitais. A pornoguerra chegou ao
palco na noite de 11/9/2001, quando o governo George W Bush lançou a “guerra ao
terror” – que foi interpretada por muitos aficionados como sutil legitimação do
estado de terror norte-americano contra, predominantemente, os
muçulmanos.
Foi
também uma guerra DE terror – como manifestação de estado de terror que aplica
todo o seu poderio urbano high-tech contra, basicamente, recursos de
baixa tecnologia capenga. Os EUA não tiveram aí, qualquer monopólio: Pequim fez
o mesmo no faroeste chinês, em Xinjiang; e a Rússia, na
Checêenia.
Como
qualquer pornoprática, a pornoguerra não existe se não for baseada numa mentira
– é uma representação bruta. Mas, diferente de outras pornopráticas, a
pornoguerra é o real; diferente dos filmes baratos, brutais, o pessoal, na
pornoguerra morre de verdade – aos milhares.
A
mentira para acabar com todas as mentiras que jaz no centro dessa representação
foi fixada definitivamente com o vazamento do memorando 2005 de Downing Street [1],
no qual o chefe do MI6 britânico confirmou que o governo Bush desejava derrubar
Saddam Hussein do Iraque, ligando o terrorismo islâmico com armas (inexistentes)
de destruição em massa. Nos termos do memorando, “A inteligência e os fatos
foram fixados em torno dessa política”.
No
fim, George “você-está-conosco-ou-está-contra-nós” Bush estrelou seu próprio
pornofilme maior que a vida – que cresceu e virou invasão e destruição de todo o
flanco leste da nação árabe.
A
nova Guernica
O
Iraque pode ser de fato visto como o Star Wars da pornoguerra – uma
apoteose de sequências. Tome-se a (segunda) ofensiva de Fallujah no final de
2004. Naquela época, descrevi a cena como a nova Guernica [2].
Tomei também a liberdade de parafrasear Jean-Paul Sartre, escrevendo sobre a
Guerra da Argélia: depois de Fallujah, dois americanos nunca mais se
encontrariam sem um cadáver entre eles. Citando Apocalypse Now de
Coppola, havia cadáveres, cadáveres por toda parte.
O
Francisco Franco em Fallujah foi Iyad Allawi, o premiê provisório lá instalado
pelos EUA. Foi Allawi quem “pediu” ao Pentágono que bombardeasse Fallujah. Em
Guernica – como em Fallujah – não havia diferença entre civis e guerrilheiros:
reinou ali o “Viva la muerte!”
Comandantes
do Marine Corps dos EUA disseram aos
jornais que Fallujah era a casa de Satã (“Hell House”). Franco negou o
massacre em Guernica e culpou a população local – como Allawi e o Pentágono
negaram as mortes de civis e insistiram que a culpa teria sido dos
“insurgentes”.
Fallujah
foi reduzida a ruínas, pelo menos 200 mil moradores da cidade foram convertidos
em refugiados e milhares de civis foram mortos, para “salvar a cidade” (ecos do
Vietnã). Ninguém na mídia empresarial ocidental teve coragem de dizer que, de
fato, Fallujah foi a Halabja [3]
americana.
15
anos antes de Fallujah, em Halabja, Washington era fornecedor entusiasmado de
armas químicas para Saddam, que usou o gás para matar milhares de curdos. A CIA,
na época, disse que não foi Saddam; que foi crime do Irã de Khomeini. Mas foi
Saddam. Fez deliberadamente tudo aquilo; como os EUA, em
Fallujah.
Os
médicos em Fallujah identificaram cadáveres inchados e amarelados, sem
ferimentos visíveis, e “corpos derretidos” – vítimas de napalm, o coquetel de
poliestireno e combustível de jatos. Moradores que conseguiram escapar falavam
de bombardeio com “gases venenosos” e “bombas estranhas que faziam fumaça como
uma nuvem em formato de cogumelo... e depois caíam fragmentos do céu, com longas
caudas de fumaça. Esses pedaços daquelas bombas estranhas explodiam em chamas
grandes que continuavam queimando a pele mesmo se se jogava água
nelas”.
É
exatamente o que acontece com quem é atingido por napalm ou fósforo branco. A
ONU proibiu o uso de napalm contra civis em 1980. Os EUA são o único país do
mundo que continua a usar napalm.
Fallujah
também garantiu filme compacto de pornoguerra de sucesso: a execução sumária de
um iraquiano indefeso e ferido, por um Marine, dentro de uma mesquita. A
execução, filmada em vídeo e vista por milhões em YouTube, mostrou, em imagens, as regras
“especiais” de engajamento. Naquele momento, comandantes dos Marines
norte-americanos diziam aos soldados que atirassem “em tudo que se move e em
tudo que não se move”; “duas balas em cada corpo”; se vissem velhos armados nas
ruas de Fallujah, “derrubem eles”; e que limpassem a tiros de metralhadora e
canhões dos tanques “toda e qualquer casa, antes de
entrar”.
As
regras de engajamento no Iraque foram codificadas num manual de campo de 182
páginas distribuído a cada soldado e a todos os soldados, lançado pelo Pentágono
em outubro de 2004. Esse manual de contraguerrilha destaca cinco regras:
“proteger a população; estabelecer instituições políticas locais; reforçar
governos locais; eliminar capacidades dos guerrilheiros; e explorar informação
colhida de fontes locais”.
De
volta ao mundo real. A população de Fallujah não foi protegida: foi expulsa a
bombas para fora da cidade e virou uma massa de milhares de refugiados. Já havia
lá instituições políticas em pleno funcionamento: a Shura [Assembleia] de
Fallujah governava a cidade. Nenhum governo local jamais pôde ou poderá governar
uma montanha de ruínas a ser reconvertida em cidade por cidadãos revoltados; de
“reforçar” os governos locais, nunca ninguém cogitou. As “capacidades dos
guerrilheiros” não foram eliminadas: a resistência dispersou-se pelas outras 22
cidades que os EUA não conseguiram controlar nem ocupar, e avançou rumo norte
até Mosul; e os norte-americanos continuaram sem “informação de fonte local”,
porque antagonizaram de todos os modos possíveis todos os corações e mentes
locais.
Entrementes,
nos EUA, a maioria da população já estava imune à pornoguerra. Quando eclodiu o
escândalo de Abu Ghraib, na primavera de 2004, eu viajava pelo Texas, explorando
a Bushlândia. Praticamente todos com quem conversei ou atribuíram a humilhação
de prisioneiros iraquianos ou a “algumas poucas maçãs podres”, ou defendiam o
que foi feito, com argumentos de patriotismo (“temos de dar uma lição aos
terroristas”).
Eu
amo um soldado [I love a man in uniform
[4]]
Em
tese, há um mecanismo aprovado no século 21 para proteger civis de qualquer
contato com a pornoguerra. Chama-se a doutrina da “responsabilidade de
proteger”, R2P. A ideia brotou em 2001 – de fato, algumas semanas antes
de a “guerra ao terror” ser deflagrada – pelo governo canadense e algumas
fundações; disseram então que o concerto das nações teria um “dever moral” de
forçar uma intervenção humanitária em casos como o de Halabja, para nem lembrar
dos Khmer Rouge no Camboja em meados
dos anos 1970s nem do genocídio em Ruanda em meados dos 90s.
Em
2004, um painel na ONU codificou a ideia – de crucialmente importante, que o
Conselho de Segurança passava a poder autorizar a “intervenção militar” só como
“último recurso”. Depois, em 2005, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma
resolução apoiando a Responsabilidade de Proteger; e em 2006 o Conselho de
Segurança da ONU aprovou a Resolução n. 1.674 sobre “a proteção a civis em
conflito armado”; e tinham de ser protegidos contra “genocídio, crimes de
guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade”.
Rodem
a fita fast-forward até o final de 2008, começo de 2009, quando Israel –
usando jatos de combate norte-americanos adequados para criar um inferno –
dispararam ataque de larga escala contra a população civil na Faixa de Gaza.
Observem
a reação oficial dos EUA: “Israel obviamente decidiu proteger-se e proteger seu
povo” – disse o então presidente Bush. O Congresso dos EUA aprovou, por
vastíssima diferença a favor, 390 votos a 5, reconhecer “o direito de Israel de
defender-se contra ataques vindos de Gaza”. O governo Barack Obama já eleito,
mas antes de tomar posse, manteve-se ruidosamente em silêncio. Só a futura
secretária de Estado Hillary Clinton disse que “Apoiamos o direito de Israel à
autodefesa”.
Pelo
menos 1.300 civis – legiões de mulheres e crianças – foram assassinados pelo
terror de estado em Gaza. Ninguém invocou a “responsabilidade de proteger”.
Ninguém denunciou o fracasso escancarado de Israel, na sua “responsabilidade de
proteger” os palestinos. Ninguém clamou por “intervenção humanitária” a favor
dos palestinos e contra Israel.
A
simples noção de que uma superpotência – e outras potências menos super –
construiriam suas decisões de política externa baseadas em princípios
humanitários, que chamariam para elas algum responsabilidade ou dever de
proteger povo sitiado, já é piada. Assim sendo, naquele momento aprendemos como,
dali em diante, o princípio da “responsabilidade de proteger” seria
instrumentalizado. Nunca se aplicaria aos EUA no Iraque ou no Afeganistão. Nunca
se aplicaria a Israel na Palestina. Vez ou outra se aplicaria, para enquadrar um
ou outro ditador “bandido”, desde que não fosse um dos “nossos filhos da puta”,
como aconteceu no caso de Muammar Gaddafi na Líbia em 2011. Intervenção
“humanitária”, sim; mas só contra “eles” (os bandidos), nunca contra “nós” (os
mocinhos).
E
a beleza da “responsabilidade de proteger” era que, a qualquer momento, podia
ser virada ao contrário. Bush clamou pela “libertação” dos afegãos sofredores –
com atenção especial às sofredoras mulheres afegãs aprisionadas nas
burqas –, das garras dos Talibã “do mal”; assim, de fato, configurou o
Afeganistão como caso de intervenção humanitária.
E
quando os laços inventados entre a al-Qaeda e as inexistentes armas de
destruição em massa foram desmascarados, Washington passou a justificar a
invasão, ocupação e destruição do Iraque... pela “responsabilidade de proteger”
os iraquianos, contra Saddam; e, depois, “responsabilidade de proteger” os
iraquianos contra eles mesmos.
O
matador acordou cedo (The killer awoke before dawn [5])
O
mais recente episódio dessa pornoguerra serial foi o massacre de Kandahar onde,
segundo a versão oficial (ou versão cover) do Pentágono, um sargento do
exército dos EUA, atirador treinado e veterano da guerra do Iraque – assassino
altamente adestrado –, matou a tiros 17 civis afegãos, entre os quais nove
mulheres e quatro crianças, em duas vilas distantes 3 km uma da outra, e pôs
fogo em alguns cadáveres.
Como
no caso de Abu Ghraib, houve a usual cascata de negativas do Pentágono – “não
somos assim” ou “não agimos desse modo”; para nem falar do tsunami de matérias
publicadas na imprensa-empresa nos EUA, que tratou de humanizar o tal
herói-que-virou-assassino serial, como um “tão bom sujeito... homem de família”.
E nem uma palavra sobre O Outro – as vítimas afegãs, os mortos: sem rosto;
ninguém nos EUA ouviu ou leu os nomes deles. [Os mortos de Kandahar-2012 são:
“Mohamed Dawood, filho de Abdullah; Khudaydad, filho de Mohamed Juma; Nazar
Mohamed; Payendo; Robeena; Shatarina, filha de Sultan Mohamed; Zahra, filha de
Abdul Hamid; Nazia, filha de Dost Mohamed; Masooma, filha de Mohamed Wazir;
Farida, filha de Mohamed Wazir; Palwasha, filha de Mohamed Wazir; Nabia, filha
de Mohamed Wazir; Esmatullah, filha de Mohamed Wazir; Faizullah, filho de
Mohamed Wazir; Essa Mohamed, filho de Mohamed Hussain; Akhtar Mohamed, filho de
Murrad Ali” [6].]
Investigação
– séria – conduzida pelos afegãos descobriu que há indícios de que cerca de 20
soldados participaram do massacre – como em My Lai no Vietnã; e que duas
mulheres foram estupradas. Faz perfeito sentido. A pornoguerra é subcultura
letal, de grupo – e inclui várias modalidades: assassinatos planejados [orig.
targeted assassinations], matanças de retaliação, violação de cadáveres,
recolha de troféus (dedos e orelhas decepados), queima de livros do Corão e
mijar sobre cadáveres. Nunca foi esporte individual: é essencialmente esporte
coletivo.
Um
“Esquadrão de matadores” dos EUA deliberadamente executou vítimas colhidas ao
acaso, civis afegãos inocentes, muitos adolescentes, por esporte; plantaram
armas nos cadáveres e fizeram-se fotografar ao lado dos cadáveres: como troféus.
Não por acaso, estavam reunidos numa base de operações ali perto, bem próxima da
área onde aconteceu o massacre de Kandahar.
E
não se pode esquecer o ex-principal comandante norte-americano no Afeganistão,
general Stanley McChrystal, o qual, dia 10/4/2010, admitiu, sem meias palavras:
“Atiramos e matamos bom número de gente por aqui” – e ninguém, naquela gente
assassinada representava qualquer tipo de ameaça para os EUA ou a civilização
ocidental.
O
Pentágono diz e vende no Afeganistão o que disse e vendeu no Iraque (e também,
tempos atrás, no Vietnã: a ideia de que o que há ali seria uma “contraguerrilha
centrada na população” –COIN, de Counterinsurgency, para “ganhar
corações e mentes” e parte de um grande projeto de construção da nação).
Que
monumental mentira! A “avançada” [orig. surge] de Obama no Afeganistão –
com base na doutrina da Contraguerrilha, COIN – foi fracasso total. E foi
logo substituída por guerra suja, clandestina, imunda, conduzida por “Esquadrões
de matadores” das Forças Especiais. Implica superinflação de ataques aéreos e
raids noturnos. E nem se comentam aqui os ataques dos aviões-robôs, os
drones pilotados a distância, nas áreas tribais dos dois países,
Afeganistão e Paquistão, cujos alvos preferenciais são festas de casamento dos
pashtuns.
Sobre
isso, a CIA diz, com orgulho, que desde março de 2010 os ultra precisos
drones já teriam assassinado mais de 600 alvos humanos “cuidadosamente
predeterminados” – e, milagre - nenhum civil.
Esperem
até ver essa extravaganza pornoguerreira celebrada numa orgia de próximos
filmes arrasa-quarteirão, com produção conjunta Pentágono-Hollywood. Na vida
real, a mesma pornoguerra tem sido cantada em prosa e verso por gente como John
Nagl, do staff do general David Petraeus no Iraque, e que hoje dirige o
Center for New American Security,
empresa privada e centro de estudos, um think-tank privado, que trabalha
para o Pentágono.
Os
novos macho, macho men da hora são os comandos de matadores que obedecem
ordens do Comando Conjunto das Operações Especiais [Joint Special Operations
Command, JSOC]. Mas a produção é do Pentágono, que criou, nas palavras de
Nagl, “uma máquina de matar de dimensões industriais, a serviço do
contraterrorismo”.
A
realidade porém é bem mais prosaica. O sucesso das técnicas de contraguerrilha
COIN, aplicadas por McChrystal, dependia completamente de três
precondições: aviões-robôs (drones) de espionagem ativos 24h/dia;
monitoramento de telefones celulares; e localização física, no mapa, de cada
telefone celular, pelos sinais que emitissem.
O
“método” implica que qualquer um, em área espionada por avião-robô, que use um
telefone celular, é marcado no mapa como “terrorista” ou, no mínimo, como
“simpatizante de terrorista”. Nessa época, o foco dos raids noturnos no
Afeganistão mudou: a mira feita sobre “alvos de alto valor” (gente de alto nível
e dos níveis intermediários da al-Qaeda e dos Talibã), passou a fechar sobre
qualquer um que fosse acusado de ajudar os Talibã.
Em
maio de 2009, antes da chegada de McChrystal, as Forças Especiais dos EUA
estavam fazendo 20 raids noturnos por mês. Em novembro, já eram 90/mês.
Na primavera de 2010, 250/mês. Quando McChrystal foi demitido – por causa de
matéria publicada na revista Rolling Stone (naquela edição, McChrystal e
Lady Gaga eram candidatos à capa; Lady Gaga venceu) – e Obama
substituiu-o por Petraeus, no verão de 2010, os raids noturnos chegavam a
600/mês. Em abril de 2011, passavam de 1.000/mês.
E
é assim que funciona. Ninguém nem pense em usar telefone celular em Kandahar e
em outras províncias afegãs. Se usar, saiba que “os olhos que vigiam no céu”
acharão você. O mínimo que pode acontecer é você ser mandado para a prisão, onde
já estão milhares de outros civis rotulados como “simpatizante de terrorista”; e
os analistas da inteligência usarão seus dados para obter outros nomes a serem
acrescentados à lista deles, de “alvos a matar/prender”; e assim, vão prendendo
em suas redes (e matando) número sempre crescente de civis afegãos.
Quanto
aos “danos colaterais” (civis mortos) nos raids noturnos, sempre foram
apresentados pelo Pentágono como “terroristas”. Por exemplo: num raid em
Gardez, dia 12/2/2010, dois homens foram mortos: um procurador do governo local
e um oficial da inteligência afegã, além de três mulheres (duas das quais,
grávidas). Os matadores disseram ao comando da Organização do Tratado do
Atlântico Norte, OTAN, em Kabul, que os dois homens seriam “terroristas”; e que
as duas mulheres foram encontradas amarradas e amordaçadas. Dias depois, o
verdadeiro alvo do raid apresentou-se espontaneamente para ser
interrogado; e foi libertado em seguida, porque nada havia contra ele.
E
isso, até agora, é só o começo. Os assassinatos predefinidos – como praticados
no Afeganistão – serão adotados como tática preferencial do Pentágono, em todas
as futuras guerras dos EUA.
Querida,
não esqueça a camisinha
Na
Líbia, a exibição de perversões da pornoguerra alcançou píncaros jamais vistos,
com o “bárbaro” derrotado, arrastado pelas ruas e executado, imagens que o mundo
viu pelo YouTube.
Tudo
aquilo foi anunciado pela secretária de Estado Hillary Clinton, em
passagem-relâmpago por Trípoli, menos de 48 horas antes de as imagens
aparecerem: Gaddafi seria “capturado ou morto”. Ao ver as imagens na tela de seu
BlackBerry, ela deixou escapar um
gritinho e terremoto semântico: “uau!”
A
resolução da ONU que impôs uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia, com a
“responsabilidade de proteger” como pretexto, foi como a senha para a mudança de
regime. O Plano A sempre foi prender e assassinar Gaddafi – ao estilo dos
assassinatos predefinidos ao estilo dos EUA no Afeganistão. E foi a política
oficial do governo Obama. Nunca houve Plano B.
Obama
disse que a morte de Gaddafi comprovava “a força da liderança norte-americana em
todo o mundo”. Foi o equivalente obamista do “Pegamos ele!” bushista de quando
Saddam foi preso.
Embora
Washington esteja pagando nada menos que 80% de todos os custos operacionais dos
vai-e-vens da OTAN (em números redondos, $2 bilhões), a Líbia saiu barata. Ainda
assim, foi estranho os EUA terem declarado sua “vitória na Líbia”, porque a Casa
Branca sempre disse e repetiu que não estava em guerra na Líbia. Que a Líbia não
passava de alguma-coisa-lá “cinética”, que repetiam muito. Que os EUA não
estavam na Líbia.
Só
os mais irrecuperavelmente ingênuos engoliram a propaganda do bombardeio
“humanitário” da OTAN contra a Líbia: mais de 40 mil bombas, que destruíram a
infraestrutura do país e o devolveram à idade da pedra, numa versão em câmera
lenta da Operação Choque e Pavor. Nada disso jamais teve alguma coisa a ver com
a doutrina da “responsabilidade de proteger”.
Foi
a “responsabilidade de proteger” em modalidade de sexo seguro – e a “comunidade
internacional” era a camisinha. A “comunidade internacional”, como todos sabem,
é composta de Washington, uns muito depauperados membros da OTAN e as muito
democráticas monarquias do Golfo Persa, Qatar e Emirados Árabes Unidos, além da
Casa de Saud atrás da cortina. A União Europeia, que vivia a lamber a barra das
túnicas de Gaddafi, não demorou a entregar-se, ela mesma, ao ridículo, em
editoriais sobre os 42 anos de reinado de “um bufão”.
Quanto
a qualquer conceito de lei internacional, foi-se pelo ralo. Saddam, pelo menos,
ainda recebeu uma encenação de julgamento, antes de ser enforcado (enforcamento
que também chegou ao YouTube). Osama
bin Laden foi sumariamente executado, ao estilo de qualquer esquadrão da morte,
depois de os EUA invadirem território do Paquistão (não, não deu no YouTube, motivo pelo qual tanta gente
ainda duvida que tenha acontecido). Gaddafi foi derrubado por uma mistura de
guerra de vento e simples assassinato. Saddam, bin Laden e Gaddafi: eis os Três
Primeiros Escalpos da Pornoguerra.
Doce
emoção [Sweet emotion [7]]
A
Síria é mais uma declinação, na narrativa da pornoguerra: se você não pode
garantir “responsabilidade de proteger”, finja, encene.
E
pensar que tudo isso está codificado há muito tempo! Já em 1997, a revista US
Army War College Quarterly definia o que chamaram de “o futuro da guerra”.
Para
eles, seria:
“...o
conflito entre os mestres da informação e as vítimas da informação.” (...) “A
informação destrói os empregos tradicionais e as culturas tradicionais; ela
seduz, trai e, mesmo assim, permanece invulnerável.” (...)
“Nossa
sofisticação no uso da máquina de guerra da informação nos capacitará a deslocar
e superar todas as culturas hierárquicas (...)”. “Nós já somos os senhores da
guerra de informação (...).” Nossa criatividade é devastadora. Hollywood está
“preparando o campo de batalha” (...).
“Sociedades
que temem ou não conseguem administrar o fluxo de informação não podem,
simplesmente, ser competitivas.” (...) Conseguirão dominar as tecnologias para
assistir aos vídeos, mas nós estaremos escrevendo os roteiros, produzindo os
vídeos e recolhendo os royalties.
“A
guerra de informação pós-tudo nada tem a ver com geopolítica (...)”. Ela será
“disseminada” – como qualquer drama de Hollywood – mediante emoções nuas.”
“Ódio, ciúme e ganância – emoções, mais que estratégias – definirão os termos
das lutas na guerra de informação. [8]
Exatamente
assim, a mídia-empresa ocidental concebeu e construiu o roteiro do filme
“Síria”: pode-se dizer que são as táticas para a “guerra de informação”
concebidas pelo War College em 1997,
postas em prática. O governo sírio jamais teve nem sombra de chance contra os
que lá estão “escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os
royalties”.
Por
exemplo: a oposição armada, o chamado Exército Sírio Livre (repulsivo coquetel
de desertores, oportunistas, jihadis e mercenários de várias
nacionalidades) arrastou jornalistas ocidentais para Homs e em seguida passou a
insistir em retirá-los, em condições extremamente perigosas, por uma via onde
havia guerra, pelo Líbano, em vez de aceitar a ajuda do Crescente Vermelho.
Estavam, pura e simplesmente, escrevendo o roteiro do novelão do “corredor
humanitário” que seria muito necessário ali, e a ser aberto por exércitos
ocidentais, até Homs. Foi puro teatro. Pornoguerra em embalagem de dramalhão hollywoodiano.
O
problema é que a opinião pública ocidental é hoje refém dessa modalidade de
guerra de informação. Esqueçam para sempre até a possibilidade de que haja
negociações de paz na Síria, entre grupos adultos, com interesses adultos. Só
resta ali uma trama infantilizada e infantilizante, de mocinhos contra bandidos,
segundo a qual o Super Bandidão tem de se destruído a qualquer custo (e a esposa
dele também tem de ser castigada, proibida de entrar na Europa, doidivanas,
“mulher-rica” snob, que vive em
lojas, viciada em compras!).
Só
ingênuos ou tolos terminais acreditariam que aqueles jihadis – incluídos
aí os “rebeldes” líbios da OTAN, mantidos com dinheiro do Clube
Contrarrevolucionário do Golfo, também conhecido como Conselho de Cooperação do
Golfo (CCG) seriam educado grupo de reformistas democráticos, ardentes de boas
intenções. Até os militantes da ONG Human
Rights Watch tiveram de reconhecer, afinal, que aqueles “ativistas” armados
são responsáveis por “sequestros, detenções e tortura”, depois de receber
relatos de “execuções, pelos grupos de oposição, de membros das forças de
segurança e civis”.
O
que essa narrativa da pornoguerra (soft e hard) não conta, no
final, é a verdadeira tragédia síria: a impossibilidade do muito “defendido” e
“protegido” “povo sírio” livrar-se de todos esses escroques – o sistema Assad, o
Conselho Nacional Sírio controlado pela Fraternidade Muçulmana e o Exército
Sírio Livre, infestado de mercenários.
Ouçam o som do caos (Listen to the sound of chaos)
Esse
catálogo – muito incompleto – de sofrimentos nos leva inevitavelmente ao supremo
filme-arrasa-quarteirão do neogênero “pornoguerra”: o psicodrama do Irã.
2012
é o neo-2002; o Irã é o neo-Iraque; e, seja por qual caminho for, sempre para
evocar hoje o motto dos neoconservadores norte-americano: “homens de
verdade vão para Teerã via Damasco”. Ou, como hoje: homens que são homens vão
para Teerã, sem escalas.
Talvez
no Ártico, submerso, alguém consiga escapar do cortejo de cacofonia dos
direitistas norte-americanos – e seus correspondentes poodles europeus –
que salivam à vista de sangue, e vivem de repetir o festival de falácias de
sempre (“Irã quer varrer Israel do mapa”, “a diplomacia já fez o que podia
fazer”, “as sanções chegaram tarde demais” ou “o Irã está a um ano, seis meses,
uma semana, um dia ou um minuto de ter a bomba pronta”). Claro que esses cães de
guerra jamais se darão o cuidado de acompanhar o que a Agência Internacional de
Energia Atômica está realmente fazendo, para nem falar sobre o que dizem os
documentos oficiais divulgados pelas 17 agências norte-americanas oficiais.
Porque,
em vasta medida, são eles que “estão escrevendo os roteiros, produzindo os
filmes e recolhendo os royalties”, em
termos de imprensa-empresa, eles continuam a conseguir safar-se, com uma atitude
que é fusão tóxica de arrogância e ignorância – sobre o Oriente Médio, a cultura
persa, a integração da Ásia, a questão nuclear, a indústria do petróleo, a
economia global, sobre “o resto”, em comparação com “o Ocidente”.
Exatamente
como se viu no Iraque 2002, o Irã é sempre desumanizado. A “narrativa”
incansável, totalmente histérica, para meter medo, do “bombardeamos já, ou
bombardeamos mais tarde?” é sempre sobre “ah! aquelas bombas tão inteligentes,
que penetram em rochedos!” Ou aqueles “oh! mísseis de precisão que fazem limpeza
e destruição ampla, geral e irrestrita em grande escala, servicinho ultra limpo,
com garantia de que nunca haverá qualquer dano colateral”. É como sexo seguro.
E
mesmo depois de até a voz do próprio establishment – o New York
Times – ter admitido que nem a inteligência de Israel nem a inteligência dos
EUA acreditam que o Irã tenha decidido construir uma bomba (conclusão à qual
facilmente chega qualquer criança de jardim de infância), mesmo assim a histeria
continua, em quantidades intergalácticas.
Entrementes,
enquanto se apronta – o próprio Obama continua a repetir que “todas as opções
estão sobre a mesa – para ainda mais outra guerra no que costumava chamar de
“arco de instabilidade”, até o Pentágono encontrou tempo para produzir mais
pornoguerra do futuro.
O
resultado são vídeos de 60 segundos, distribuídos por Internet e que já estão no
YouTube: um vídeo feito de minivídeos
de 60 segundos, um seriado, intitulado (o seriado) Toward the Sound of Chaos
[Rumo ao Som do Caos].
Foi
lançado poucos dias depois do massacre de Kandahar. Público-alvo? O vasto
mercado dos norte-americanos jovens, pobres, desempregados e politicamente muito
ingênuos
[9].
Ouçam
o que diz o locutor, voz off, na abertura do vídeo feito de minivídeos:
“Onde
reina o caos, aí emergem os Raros. Os Marines movem-se rumo ao som do caos
da tirania, da injustiça, do desespero – com muita coragem e determinação, até
silenciá-lo. Pondo fim aos conflitos, implantando a ordem, ajudando os incapazes
de se autoajudarem, os Marines
enfrentam todas as ameaças do nosso tempo”.
Talvez,
nesse universo orwelliano, devamos
encomendar aos afegãos mortos sobre os quais os Marines dos EUA mijaram,
ou aos milhares de mortos em Fallujah, que escrevam a crítica do tal vídeo. OK.
Mortos não escrevem críticas.
Talvez
devamos pensar sobre o dia em que veremos a OTAN implantar uma zona aérea de
exclusão sobre a Arábia Saudita, para proteger os xiitas sauditas da província
oriental, enquanto os drones-robôs do Pentágono disparam um tapete de
mísseis Hellfire sobre aqueles milhares de príncipes arrogantes, medievais,
corruptos da Casa de Saud. Não, não, nunca acontecerá.
Decorrida
já uma década desde o início da guerra ao terror, eis o mundo ao qual nos levou:
do telespectador virtualmente global abúlico, imbecilizado, chapado, tonto, que
salta de distração em distração, dependente, movido a vício, irremediavelmente
rebocado pela sempre mesma incansável exibição de atrocidades da pornoguerra.
Notas
dos tradutores
*Versão
muito abreviada de “La era de la señora de la muerte” [A era da senhora da
morte], Conferência no XII Seminar de Solidaridad Política, Universidad
de Zaragoza, Espanha, 27/3/2012.
[2] “From Guernica to
Fallujah”, Pepe Escobar, 2/12/2004, Asia Times Online.
[3]
O ataque com gás venenoso em Halabja (em curdo: Kîmyabarana Helebce), também
conhecido como “O massacre de
Halabja” ou “a 6ª-feira sangrenta” aconteceu dia 16/3/1988, ao final da
Guerra Irã-Iraque, quando o governo do Iraque usou armas químicas na cidade
curda de Halabja, no Curdistão iraquiano. O ataque foi oficialmente definido
como um ato de genocídio contra o povo curdo no Iraque; foi e continua sendo o
maior ataque de armas químicas contra uma área com população civil na história.
[4]
É título de rock gravado pela banda “Gang of Four” [Camarilha dos
Quatro], do pós-punk de Leeds, Inglaterra, muita ativa entre 1977 e 1984.
I love a man in
uniform, foi lançada em disco single em 1971 e relançada em
álbum em 1982, durante a guerra das Malvinas; a segunda versão, considerada
‘dançável demais’, foi banida pela BBC . A primeira versão, que os
especialistas consideram a melhor, pode ser ouvida a seguir:
[5] Verso de The End [O fim], Jim Morrison & The Doors, de
1967. Blue rock. Letra
e tradução em: “The
Doors – The End”.
[6]
21/3/2012, “Kandahar:
os nomes das vítimas sem nome”, Qais Azimy, Al-Jazeera,
redecastorphoto (traduzido).
[7]
Sweet Emotion foi o quinto single da banda norte-americana Aerosmith,
em 1975 - Letra,
tradução . Melhor versão em vídeo a seguir:
[8] Constant Conflict, “Parameters”,
Summer 1997, pp. 4-14. Sobre
o mesmo artigo, ver também “Síria:
até onde o mundo se deixará enganar?” 8/3/2012, Alastair Crooke,
redecastorphoto.
[9]
São filmes de propaganda dos Marines, em campanha de recrutamento.
Podem ser vistos em: “Toward the Sounds of
Chaos”. Como
se lê ali: “Clique num dos títulos acima, para assistir aos Marines em
luta contra o caos, em todo o mundo”.
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