sexta-feira, 30 de março de 2012

Pepe Escobar: “Pornoguerra: o neossexo seguro*”


29/3/2012, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu

Da banda Gang of Four, citada adiante, o Coletivo de Tradutores da Vila Vudu sugere, como epígrafe, To Hell With Poverty a seguir:

Pepe Escobar
O novo século 21 é viciado em pornoguerra, esporte para espectadores de alta classe consumido no sofá global com batatinhas digitais. A pornoguerra chegou ao palco na noite de 11/9/2001, quando o governo George W Bush lançou a “guerra ao terror” – que foi interpretada por muitos aficionados como sutil legitimação do estado de terror norte-americano contra, predominantemente, os muçulmanos.

Foi também uma guerra DE terror – como manifestação de estado de terror que aplica todo o seu poderio urbano high-tech contra, basicamente, recursos de baixa tecnologia capenga. Os EUA não tiveram aí, qualquer monopólio: Pequim fez o mesmo no faroeste chinês, em Xinjiang; e a Rússia, na Checêenia.

Como qualquer pornoprática, a pornoguerra não existe se não for baseada numa mentira – é uma representação bruta. Mas, diferente de outras pornopráticas, a pornoguerra é o real; diferente dos filmes baratos, brutais, o pessoal, na pornoguerra morre de verdade – aos milhares.

A mentira para acabar com todas as mentiras que jaz no centro dessa representação foi fixada definitivamente com o vazamento do memorando 2005 de Downing Street [1], no qual o chefe do MI6 britânico confirmou que o governo Bush desejava derrubar Saddam Hussein do Iraque, ligando o terrorismo islâmico com armas (inexistentes) de destruição em massa. Nos termos do memorando, “A inteligência e os fatos foram fixados em torno dessa política”.

No fim, George “você-está-conosco-ou-está-contra-nós” Bush estrelou seu próprio pornofilme maior que a vida – que cresceu e virou invasão e destruição de todo o flanco leste da nação árabe.

A nova Guernica

O Iraque pode ser de fato visto como o Star Wars da pornoguerra – uma apoteose de sequências. Tome-se a (segunda) ofensiva de Fallujah no final de 2004. Naquela época, descrevi a cena como a nova Guernica [2]. Tomei também a liberdade de parafrasear Jean-Paul Sartre, escrevendo sobre a Guerra da Argélia: depois de Fallujah, dois americanos nunca mais se encontrariam sem um cadáver entre eles. Citando Apocalypse Now de Coppola, havia cadáveres, cadáveres por toda parte.

O Francisco Franco em Fallujah foi Iyad Allawi, o premiê provisório lá instalado pelos EUA. Foi Allawi quem “pediu” ao Pentágono que bombardeasse Fallujah. Em Guernica – como em Fallujah – não havia diferença entre civis e guerrilheiros: reinou ali o “Viva la muerte!”

Comandantes do Marine Corps dos EUA disseram aos jornais que Fallujah era a casa de Satã (“Hell House”). Franco negou o massacre em Guernica e culpou a população local – como Allawi e o Pentágono negaram as mortes de civis e insistiram que a culpa teria sido dos “insurgentes”.

Fallujah foi reduzida a ruínas, pelo menos 200 mil moradores da cidade foram convertidos em refugiados e milhares de civis foram mortos, para “salvar a cidade” (ecos do Vietnã). Ninguém na mídia empresarial ocidental teve coragem de dizer que, de fato, Fallujah foi a Halabja [3] americana.

15 anos antes de Fallujah, em Halabja, Washington era fornecedor entusiasmado de armas químicas para Saddam, que usou o gás para matar milhares de curdos. A CIA, na época, disse que não foi Saddam; que foi crime do Irã de Khomeini. Mas foi Saddam. Fez deliberadamente tudo aquilo; como os EUA, em Fallujah.

Os médicos em Fallujah identificaram cadáveres inchados e amarelados, sem ferimentos visíveis, e “corpos derretidos” – vítimas de napalm, o coquetel de poliestireno e combustível de jatos. Moradores que conseguiram escapar falavam de bombardeio com “gases venenosos” e “bombas estranhas que faziam fumaça como uma nuvem em formato de cogumelo... e depois caíam fragmentos do céu, com longas caudas de fumaça. Esses pedaços daquelas bombas estranhas explodiam em chamas grandes que continuavam queimando a pele mesmo se se jogava água nelas”.

É exatamente o que acontece com quem é atingido por napalm ou fósforo branco. A ONU proibiu o uso de napalm contra civis em 1980. Os EUA são o único país do mundo que continua a usar napalm.

Fallujah também garantiu filme compacto de pornoguerra de sucesso: a execução sumária de um iraquiano indefeso e ferido, por um Marine, dentro de uma mesquita. A execução, filmada em vídeo e vista por milhões em YouTube, mostrou, em imagens, as regras “especiais” de engajamento. Naquele momento, comandantes dos Marines norte-americanos diziam aos soldados que atirassem “em tudo que se move e em tudo que não se move”; “duas balas em cada corpo”; se vissem velhos armados nas ruas de Fallujah, “derrubem eles”; e que limpassem a tiros de metralhadora e canhões dos tanques “toda e qualquer casa, antes de entrar”.

As regras de engajamento no Iraque foram codificadas num manual de campo de 182 páginas distribuído a cada soldado e a todos os soldados, lançado pelo Pentágono em outubro de 2004. Esse manual de contraguerrilha destaca cinco regras: “proteger a população; estabelecer instituições políticas locais; reforçar governos locais; eliminar capacidades dos guerrilheiros; e explorar informação colhida de fontes locais”.

De volta ao mundo real. A população de Fallujah não foi protegida: foi expulsa a bombas para fora da cidade e virou uma massa de milhares de refugiados. Já havia lá instituições políticas em pleno funcionamento: a Shura [Assembleia] de Fallujah governava a cidade. Nenhum governo local jamais pôde ou poderá governar uma montanha de ruínas a ser reconvertida em cidade por cidadãos revoltados; de “reforçar” os governos locais, nunca ninguém cogitou. As “capacidades dos guerrilheiros” não foram eliminadas: a resistência dispersou-se pelas outras 22 cidades que os EUA não conseguiram controlar nem ocupar, e avançou rumo norte até Mosul; e os norte-americanos continuaram sem “informação de fonte local”, porque antagonizaram de todos os modos possíveis todos os corações e mentes locais.

Entrementes, nos EUA, a maioria da população já estava imune à pornoguerra. Quando eclodiu o escândalo de Abu Ghraib, na primavera de 2004, eu viajava pelo Texas, explorando a Bushlândia. Praticamente todos com quem conversei ou atribuíram a humilhação de prisioneiros iraquianos ou a “algumas poucas maçãs podres”, ou defendiam o que foi feito, com argumentos de patriotismo (“temos de dar uma lição aos terroristas”).

Eu amo um soldado [I love a man in uniform [4]]

Em tese, há um mecanismo aprovado no século 21 para proteger civis de qualquer contato com a pornoguerra. Chama-se a doutrina da “responsabilidade de proteger”, R2P. A ideia brotou em 2001 – de fato, algumas semanas antes de a “guerra ao terror” ser deflagrada – pelo governo canadense e algumas fundações; disseram então que o concerto das nações teria um “dever moral” de forçar uma intervenção humanitária em casos como o de Halabja, para nem lembrar dos Khmer Rouge no Camboja em meados dos anos 1970s nem do genocídio em Ruanda em meados dos 90s.

Em 2004, um painel na ONU codificou a ideia – de crucialmente importante, que o Conselho de Segurança passava a poder autorizar a “intervenção militar” só como “último recurso”. Depois, em 2005, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução apoiando a Responsabilidade de Proteger; e em 2006 o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução n. 1.674 sobre “a proteção a civis em conflito armado”; e tinham de ser protegidos contra “genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade”.

Rodem a fita fast-forward até o final de 2008, começo de 2009, quando Israel – usando jatos de combate norte-americanos adequados para criar um inferno – dispararam ataque de larga escala contra a população civil na Faixa de Gaza.

Observem a reação oficial dos EUA: “Israel obviamente decidiu proteger-se e proteger seu povo” – disse o então presidente Bush. O Congresso dos EUA aprovou, por vastíssima diferença a favor, 390 votos a 5, reconhecer “o direito de Israel de defender-se contra ataques vindos de Gaza”. O governo Barack Obama já eleito, mas antes de tomar posse, manteve-se ruidosamente em silêncio. Só a futura secretária de Estado Hillary Clinton disse que “Apoiamos o direito de Israel à autodefesa”.

Pelo menos 1.300 civis – legiões de mulheres e crianças – foram assassinados pelo terror de estado em Gaza. Ninguém invocou a “responsabilidade de proteger”. Ninguém denunciou o fracasso escancarado de Israel, na sua “responsabilidade de proteger” os palestinos. Ninguém clamou por “intervenção humanitária” a favor dos palestinos e contra Israel.

A simples noção de que uma superpotência – e outras potências menos super – construiriam suas decisões de política externa baseadas em princípios humanitários, que chamariam para elas algum responsabilidade ou dever de proteger povo sitiado, já é piada. Assim sendo, naquele momento aprendemos como, dali em diante, o princípio da “responsabilidade de proteger” seria instrumentalizado. Nunca se aplicaria aos EUA no Iraque ou no Afeganistão. Nunca se aplicaria a Israel na Palestina. Vez ou outra se aplicaria, para enquadrar um ou outro ditador “bandido”, desde que não fosse um dos “nossos filhos da puta”, como aconteceu no caso de Muammar Gaddafi na Líbia em 2011. Intervenção “humanitária”, sim; mas só contra “eles” (os bandidos), nunca contra “nós” (os mocinhos).

E a beleza da “responsabilidade de proteger” era que, a qualquer momento, podia ser virada ao contrário. Bush clamou pela “libertação” dos afegãos sofredores – com atenção especial às sofredoras mulheres afegãs aprisionadas nas burqas –, das garras dos Talibã “do mal”; assim, de fato, configurou o Afeganistão como caso de intervenção humanitária.

E quando os laços inventados entre a al-Qaeda e as inexistentes armas de destruição em massa foram desmascarados, Washington passou a justificar a invasão, ocupação e destruição do Iraque... pela “responsabilidade de proteger” os iraquianos, contra Saddam; e, depois, “responsabilidade de proteger” os iraquianos contra eles mesmos.

O matador acordou cedo (The killer awoke before dawn [5])

O mais recente episódio dessa pornoguerra serial foi o massacre de Kandahar onde, segundo a versão oficial (ou versão cover) do Pentágono, um sargento do exército dos EUA, atirador treinado e veterano da guerra do Iraque – assassino altamente adestrado –, matou a tiros 17 civis afegãos, entre os quais nove mulheres e quatro crianças, em duas vilas distantes 3 km uma da outra, e pôs fogo em alguns cadáveres.

Como no caso de Abu Ghraib, houve a usual cascata de negativas do Pentágono – “não somos assim” ou “não agimos desse modo”; para nem falar do tsunami de matérias publicadas na imprensa-empresa nos EUA, que tratou de humanizar o tal herói-que-virou-assassino serial, como um “tão bom sujeito... homem de família”. E nem uma palavra sobre O Outro – as vítimas afegãs, os mortos: sem rosto; ninguém nos EUA ouviu ou leu os nomes deles. [Os mortos de Kandahar-2012 são: “Mohamed Dawood, filho de Abdullah; Khudaydad, filho de Mohamed Juma; Nazar Mohamed; Payendo; Robeena; Shatarina, filha de Sultan Mohamed; Zahra, filha de Abdul Hamid; Nazia, filha de Dost Mohamed; Masooma, filha de Mohamed Wazir; Farida, filha de Mohamed Wazir; Palwasha, filha de Mohamed Wazir; Nabia, filha de Mohamed Wazir; Esmatullah, filha de Mohamed Wazir; Faizullah, filho de Mohamed Wazir; Essa Mohamed, filho de Mohamed Hussain; Akhtar Mohamed, filho de Murrad Ali” [6].]

Investigação – séria – conduzida pelos afegãos descobriu que há indícios de que cerca de 20 soldados participaram do massacre – como em My Lai no Vietnã; e que duas mulheres foram estupradas. Faz perfeito sentido. A pornoguerra é subcultura letal, de grupo – e inclui várias modalidades: assassinatos planejados [orig. targeted assassinations], matanças de retaliação, violação de cadáveres, recolha de troféus (dedos e orelhas decepados), queima de livros do Corão e mijar sobre cadáveres. Nunca foi esporte individual: é essencialmente esporte coletivo.

Um “Esquadrão de matadores” dos EUA deliberadamente executou vítimas colhidas ao acaso, civis afegãos inocentes, muitos adolescentes, por esporte; plantaram armas nos cadáveres e fizeram-se fotografar ao lado dos cadáveres: como troféus. Não por acaso, estavam reunidos numa base de operações ali perto, bem próxima da área onde aconteceu o massacre de Kandahar.

E não se pode esquecer o ex-principal comandante norte-americano no Afeganistão, general Stanley McChrystal, o qual, dia 10/4/2010, admitiu, sem meias palavras: “Atiramos e matamos bom número de gente por aqui” – e ninguém, naquela gente assassinada representava qualquer tipo de ameaça para os EUA ou a civilização ocidental.

O Pentágono diz e vende no Afeganistão o que disse e vendeu no Iraque (e também, tempos atrás, no Vietnã: a ideia de que o que há ali seria uma “contraguerrilha centrada na população” –COIN, de Counterinsurgency, para “ganhar corações e mentes” e parte de um grande projeto de construção da nação).

Que monumental mentira! A “avançada” [orig. surge] de Obama no Afeganistão – com base na doutrina da Contraguerrilha, COIN – foi fracasso total. E foi logo substituída por guerra suja, clandestina, imunda, conduzida por “Esquadrões de matadores” das Forças Especiais. Implica superinflação de ataques aéreos e raids noturnos. E nem se comentam aqui os ataques dos aviões-robôs, os drones pilotados a distância, nas áreas tribais dos dois países, Afeganistão e Paquistão, cujos alvos preferenciais são festas de casamento dos pashtuns.
Sobre isso, a CIA diz, com orgulho, que desde março de 2010 os ultra precisos drones já teriam assassinado mais de 600 alvos humanos “cuidadosamente predeterminados” – e, milagre - nenhum civil.

Esperem até ver essa extravaganza pornoguerreira celebrada numa orgia de próximos filmes arrasa-quarteirão, com produção conjunta Pentágono-Hollywood. Na vida real, a mesma pornoguerra tem sido cantada em prosa e verso por gente como John Nagl, do staff do general David Petraeus no Iraque, e que hoje dirige o Center for New American Security, empresa privada e centro de estudos, um think-tank privado, que trabalha para o Pentágono.

Os novos macho, macho men da hora são os comandos de matadores que obedecem ordens do Comando Conjunto das Operações Especiais [Joint Special Operations Command, JSOC]. Mas a produção é do Pentágono, que criou, nas palavras de Nagl, “uma máquina de matar de dimensões industriais, a serviço do contraterrorismo”.

A realidade porém é bem mais prosaica. O sucesso das técnicas de contraguerrilha COIN, aplicadas por McChrystal, dependia completamente de três precondições: aviões-robôs (drones) de espionagem ativos 24h/dia; monitoramento de telefones celulares; e localização física, no mapa, de cada telefone celular, pelos sinais que emitissem.

O “método” implica que qualquer um, em área espionada por avião-robô, que use um telefone celular, é marcado no mapa como “terrorista” ou, no mínimo, como “simpatizante de terrorista”. Nessa época, o foco dos raids noturnos no Afeganistão mudou: a mira feita sobre “alvos de alto valor” (gente de alto nível e dos níveis intermediários da al-Qaeda e dos Talibã), passou a fechar sobre qualquer um que fosse acusado de ajudar os Talibã.

Em maio de 2009, antes da chegada de McChrystal, as Forças Especiais dos EUA estavam fazendo 20 raids noturnos por mês. Em novembro, já eram 90/mês. Na primavera de 2010, 250/mês. Quando McChrystal foi demitido – por causa de matéria publicada na revista Rolling Stone (naquela edição, McChrystal e Lady Gaga eram candidatos à capa; Lady Gaga venceu) – e Obama substituiu-o por Petraeus, no verão de 2010, os raids noturnos chegavam a 600/mês. Em abril de 2011, passavam de 1.000/mês.

E é assim que funciona. Ninguém nem pense em usar telefone celular em Kandahar e em outras províncias afegãs. Se usar, saiba que “os olhos que vigiam no céu” acharão você. O mínimo que pode acontecer é você ser mandado para a prisão, onde já estão milhares de outros civis rotulados como “simpatizante de terrorista”; e os analistas da inteligência usarão seus dados para obter outros nomes a serem acrescentados à lista deles, de “alvos a matar/prender”; e assim, vão prendendo em suas redes (e matando) número sempre crescente de civis afegãos.

Quanto aos “danos colaterais” (civis mortos) nos raids noturnos, sempre foram apresentados pelo Pentágono como “terroristas”. Por exemplo: num raid em Gardez, dia 12/2/2010, dois homens foram mortos: um procurador do governo local e um oficial da inteligência afegã, além de três mulheres (duas das quais, grávidas). Os matadores disseram ao comando da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, em Kabul, que os dois homens seriam “terroristas”; e que as duas mulheres foram encontradas amarradas e amordaçadas. Dias depois, o verdadeiro alvo do raid apresentou-se espontaneamente para ser interrogado; e foi libertado em seguida, porque nada havia contra ele.

E isso, até agora, é só o começo. Os assassinatos predefinidos – como praticados no Afeganistão – serão adotados como tática preferencial do Pentágono, em todas as futuras guerras dos EUA.

Querida, não esqueça a camisinha

Na Líbia, a exibição de perversões da pornoguerra alcançou píncaros jamais vistos, com o “bárbaro” derrotado, arrastado pelas ruas e executado, imagens que o mundo viu pelo YouTube.

Tudo aquilo foi anunciado pela secretária de Estado Hillary Clinton, em passagem-relâmpago por Trípoli, menos de 48 horas antes de as imagens aparecerem: Gaddafi seria “capturado ou morto”. Ao ver as imagens na tela de seu BlackBerry, ela deixou escapar um gritinho e terremoto semântico: “uau!”

A resolução da ONU que impôs uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia, com a “responsabilidade de proteger” como pretexto, foi como a senha para a mudança de regime. O Plano A sempre foi prender e assassinar Gaddafi – ao estilo dos assassinatos predefinidos ao estilo dos EUA no Afeganistão. E foi a política oficial do governo Obama. Nunca houve Plano B.

Obama disse que a morte de Gaddafi comprovava “a força da liderança norte-americana em todo o mundo”. Foi o equivalente obamista do “Pegamos ele!” bushista de quando Saddam foi preso.

Embora Washington esteja pagando nada menos que 80% de todos os custos operacionais dos vai-e-vens da OTAN (em números redondos, $2 bilhões), a Líbia saiu barata. Ainda assim, foi estranho os EUA terem declarado sua “vitória na Líbia”, porque a Casa Branca sempre disse e repetiu que não estava em guerra na Líbia. Que a Líbia não passava de alguma-coisa-lá “cinética”, que repetiam muito. Que os EUA não estavam na Líbia.

Só os mais irrecuperavelmente ingênuos engoliram a propaganda do bombardeio “humanitário” da OTAN contra a Líbia: mais de 40 mil bombas, que destruíram a infraestrutura do país e o devolveram à idade da pedra, numa versão em câmera lenta da Operação Choque e Pavor. Nada disso jamais teve alguma coisa a ver com a doutrina da “responsabilidade de proteger”.

Foi a “responsabilidade de proteger” em modalidade de sexo seguro – e a “comunidade internacional” era a camisinha. A “comunidade internacional”, como todos sabem, é composta de Washington, uns muito depauperados membros da OTAN e as muito democráticas monarquias do Golfo Persa, Qatar e Emirados Árabes Unidos, além da Casa de Saud atrás da cortina. A União Europeia, que vivia a lamber a barra das túnicas de Gaddafi, não demorou a entregar-se, ela mesma, ao ridículo, em editoriais sobre os 42 anos de reinado de “um bufão”.

Quanto a qualquer conceito de lei internacional, foi-se pelo ralo. Saddam, pelo menos, ainda recebeu uma encenação de julgamento, antes de ser enforcado (enforcamento que também chegou ao YouTube). Osama bin Laden foi sumariamente executado, ao estilo de qualquer esquadrão da morte, depois de os EUA invadirem território do Paquistão (não, não deu no YouTube, motivo pelo qual tanta gente ainda duvida que tenha acontecido). Gaddafi foi derrubado por uma mistura de guerra de vento e simples assassinato. Saddam, bin Laden e Gaddafi: eis os Três Primeiros Escalpos da Pornoguerra.

Doce emoção [Sweet emotion [7]]

A Síria é mais uma declinação, na narrativa da pornoguerra: se você não pode garantir “responsabilidade de proteger”, finja, encene.

E pensar que tudo isso está codificado há muito tempo! Já em 1997, a revista US Army War College Quarterly definia o que chamaram de “o futuro da guerra”.

Para eles, seria:

“...o conflito entre os mestres da informação e as vítimas da informação.” (...) “A informação destrói os empregos tradicionais e as culturas tradicionais; ela seduz, trai e, mesmo assim, permanece invulnerável.” (...)
“Nossa sofisticação no uso da máquina de guerra da informação nos capacitará a deslocar e superar todas as culturas hierárquicas (...)”. “Nós já somos os senhores da guerra de informação (...).” Nossa criatividade é devastadora. Hollywood está “preparando o campo de batalha” (...).
“Sociedades que temem ou não conseguem administrar o fluxo de informação não podem, simplesmente, ser competitivas.” (...) Conseguirão dominar as tecnologias para assistir aos vídeos, mas nós estaremos escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os royalties.
“A guerra de informação pós-tudo nada tem a ver com geopolítica (...)”. Ela será “disseminada” – como qualquer drama de Hollywood – mediante emoções nuas.” “Ódio, ciúme e ganância – emoções, mais que estratégias – definirão os termos das lutas na guerra de informação. [8]

Exatamente assim, a mídia-empresa ocidental concebeu e construiu o roteiro do filme “Síria”: pode-se dizer que são as táticas para a “guerra de informação” concebidas pelo War College em 1997, postas em prática. O governo sírio jamais teve nem sombra de chance contra os que lá estão “escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os royalties”.

Por exemplo: a oposição armada, o chamado Exército Sírio Livre (repulsivo coquetel de desertores, oportunistas, jihadis e mercenários de várias nacionalidades) arrastou jornalistas ocidentais para Homs e em seguida passou a insistir em retirá-los, em condições extremamente perigosas, por uma via onde havia guerra, pelo Líbano, em vez de aceitar a ajuda do Crescente Vermelho. Estavam, pura e simplesmente, escrevendo o roteiro do novelão do “corredor humanitário” que seria muito necessário ali, e a ser aberto por exércitos ocidentais, até Homs. Foi puro teatro. Pornoguerra em embalagem de dramalhão hollywoodiano.

O problema é que a opinião pública ocidental é hoje refém dessa modalidade de guerra de informação. Esqueçam para sempre até a possibilidade de que haja negociações de paz na Síria, entre grupos adultos, com interesses adultos. Só resta ali uma trama infantilizada e infantilizante, de mocinhos contra bandidos, segundo a qual o Super Bandidão tem de se destruído a qualquer custo (e a esposa dele também tem de ser castigada, proibida de entrar na Europa, doidivanas, “mulher-rica” snob, que vive em lojas, viciada em compras!).
Só ingênuos ou tolos terminais acreditariam que aqueles jihadis – incluídos aí os “rebeldes” líbios da OTAN, mantidos com dinheiro do Clube Contrarrevolucionário do Golfo, também conhecido como Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) seriam educado grupo de reformistas democráticos, ardentes de boas intenções. Até os militantes da ONG Human Rights Watch tiveram de reconhecer, afinal, que aqueles “ativistas” armados são responsáveis por “sequestros, detenções e tortura”, depois de receber relatos de “execuções, pelos grupos de oposição, de membros das forças de segurança e civis”.

O que essa narrativa da pornoguerra (soft e hard) não conta, no final, é a verdadeira tragédia síria: a impossibilidade do muito “defendido” e “protegido” “povo sírio” livrar-se de todos esses escroques – o sistema Assad, o Conselho Nacional Sírio controlado pela Fraternidade Muçulmana e o Exército Sírio Livre, infestado de mercenários.

Ouçam o som do caos (Listen to the sound of chaos)

Esse catálogo – muito incompleto – de sofrimentos nos leva inevitavelmente ao supremo filme-arrasa-quarteirão do neogênero “pornoguerra”: o psicodrama do Irã.

2012 é o neo-2002; o Irã é o neo-Iraque; e, seja por qual caminho for, sempre para evocar hoje o motto dos neoconservadores norte-americano: “homens de verdade vão para Teerã via Damasco”. Ou, como hoje: homens que são homens vão para Teerã, sem escalas.

Talvez no Ártico, submerso, alguém consiga escapar do cortejo de cacofonia dos direitistas norte-americanos – e seus correspondentes poodles europeus – que salivam à vista de sangue, e vivem de repetir o festival de falácias de sempre (“Irã quer varrer Israel do mapa”, “a diplomacia já fez o que podia fazer”, “as sanções chegaram tarde demais” ou “o Irã está a um ano, seis meses, uma semana, um dia ou um minuto de ter a bomba pronta”). Claro que esses cães de guerra jamais se darão o cuidado de acompanhar o que a Agência Internacional de Energia Atômica está realmente fazendo, para nem falar sobre o que dizem os documentos oficiais divulgados pelas 17 agências norte-americanas oficiais.

Porque, em vasta medida, são eles que “estão escrevendo os roteiros, produzindo os filmes e recolhendo os royalties”, em termos de imprensa-empresa, eles continuam a conseguir safar-se, com uma atitude que é fusão tóxica de arrogância e ignorância – sobre o Oriente Médio, a cultura persa, a integração da Ásia, a questão nuclear, a indústria do petróleo, a economia global, sobre “o resto”, em comparação com “o Ocidente”.

Exatamente como se viu no Iraque 2002, o Irã é sempre desumanizado. A “narrativa” incansável, totalmente histérica, para meter medo, do “bombardeamos já, ou bombardeamos mais tarde?” é sempre sobre “ah! aquelas bombas tão inteligentes, que penetram em rochedos!” Ou aqueles “oh! mísseis de precisão que fazem limpeza e destruição ampla, geral e irrestrita em grande escala, servicinho ultra limpo, com garantia de que nunca haverá qualquer dano colateral”. É como sexo seguro.

E mesmo depois de até a voz do próprio establishment – o New York Times – ter admitido que nem a inteligência de Israel nem a inteligência dos EUA acreditam que o Irã tenha decidido construir uma bomba (conclusão à qual facilmente chega qualquer criança de jardim de infância), mesmo assim a histeria continua, em quantidades intergalácticas.

Entrementes, enquanto se apronta – o próprio Obama continua a repetir que “todas as opções estão sobre a mesa – para ainda mais outra guerra no que costumava chamar de “arco de instabilidade”, até o Pentágono encontrou tempo para produzir mais pornoguerra do futuro.

O resultado são vídeos de 60 segundos, distribuídos por Internet e que já estão no YouTube: um vídeo feito de minivídeos de 60 segundos, um seriado, intitulado (o seriado) Toward the Sound of Chaos [Rumo ao Som do Caos].

Foi lançado poucos dias depois do massacre de Kandahar. Público-alvo? O vasto mercado dos norte-americanos jovens, pobres, desempregados e politicamente muito ingênuos [9].
Ouçam o que diz o locutor, voz off, na abertura do vídeo feito de minivídeos:

“Onde reina o caos, aí emergem os Raros. Os Marines movem-se rumo ao som do caos da tirania, da injustiça, do desespero – com muita coragem e determinação, até silenciá-lo. Pondo fim aos conflitos, implantando a ordem, ajudando os incapazes de se autoajudarem, os Marines enfrentam todas as ameaças do nosso tempo”.

Talvez, nesse universo orwelliano, devamos encomendar aos afegãos mortos sobre os quais os Marines dos EUA mijaram, ou aos milhares de mortos em Fallujah, que escrevam a crítica do tal vídeo. OK. Mortos não escrevem críticas.

Talvez devamos pensar sobre o dia em que veremos a OTAN implantar uma zona aérea de exclusão sobre a Arábia Saudita, para proteger os xiitas sauditas da província oriental, enquanto os drones-robôs do Pentágono disparam um tapete de mísseis Hellfire sobre aqueles milhares de príncipes arrogantes, medievais, corruptos da Casa de Saud. Não, não, nunca acontecerá.

Decorrida já uma década desde o início da guerra ao terror, eis o mundo ao qual nos levou: do telespectador virtualmente global abúlico, imbecilizado, chapado, tonto, que salta de distração em distração, dependente, movido a vício, irremediavelmente rebocado pela sempre mesma incansável exibição de atrocidades da pornoguerra.

Notas dos tradutores

*Versão muito abreviada de “La era de la señora de la muerte” [A era da senhora da morte], Conferência no XII Seminar de Solidaridad Política, Universidad de Zaragoza, Espanha, 27/3/2012.


[2]From Guernica to Fallujah, Pepe Escobar, 2/12/2004, Asia Times Online.

[3] O ataque com gás venenoso em Halabja (em curdo: Kîmyabarana Helebce), também conhecido como O massacre de Halabja ou “a 6ª-feira sangrenta” aconteceu dia 16/3/1988, ao final da Guerra Irã-Iraque, quando o governo do Iraque usou armas químicas na cidade curda de Halabja, no Curdistão iraquiano. O ataque foi oficialmente definido como um ato de genocídio contra o povo curdo no Iraque; foi e continua sendo o maior ataque de armas químicas contra uma área com população civil na história.

[4] É título de rock gravado pela banda “Gang of Four” [Camarilha dos Quatro], do pós-punk de Leeds, Inglaterra, muita ativa entre 1977 e 1984. I love a man in uniform, foi lançada em disco single em 1971 e relançada em álbum em 1982, durante a guerra das Malvinas; a segunda versão, considerada ‘dançável demais’, foi banida pela BBC . A primeira versão, que os especialistas consideram a melhor, pode ser ouvida a seguir:

[5] Verso de The End [O fim], Jim Morrison & The Doors, de 1967. Blue rock. Letra e tradução em: “The Doors – The End”. 

[6] 21/3/2012, Kandahar: os nomes das vítimas sem nome, Qais Azimy, Al-Jazeera, redecastorphoto (traduzido).

[7] Sweet Emotion foi o quinto single da banda norte-americana Aerosmith, em 1975 - Letra, tradução . Melhor versão em vídeo a seguir:

[8] Constant Conflict, “Parameters”, Summer 1997, pp. 4-14. Sobre o mesmo artigo, ver tambémSíria: até onde o mundo se deixará enganar?8/3/2012, Alastair Crooke, redecastorphoto.

[9] São filmes de propaganda dos Marines, em campanha de recrutamento. Podem ser vistos em: Toward the Sounds of Chaos. Como se lê ali: “Clique num dos títulos acima, para assistir aos Marines em luta contra o caos, em todo o mundo”.

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