Tim Black |
Os
radicais de antanho
versus
os atuais eco-miserabilistas antidesenvolvimentistas
9/3/2012, Tim Black, The Spiked Review
of Books, Londres
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
That the frames of the fools may be first to be broken,
Lord Byron |
Há
exatos dois séculos, que se completaram semana passada, um
quase-desconhecido
Lord
de 24 anos ergueu-se para fazer seu primeiro discurso na Câmara dos Lords em Londres. Dez
anos depois, o mesmo
Lord
diria que foi “discurso tipo Don Juan”. O tema? “Certa questão
fabril”.
Esse
à vontade, esse descaso cômico, fazia pleno sentido para Lord George Gordon Byron.
Mas essa ‘questão fabril’ não era, de modo algum, uma questão fabril e com
certeza não foi algo que Byron esqueceria facilmente (sobre aquela questão, ele
escreveria dois poemas). Porque em seu primeiro ato declamatório frente aos Lords, Byron
opôs-se à Lei Antidestruição de Máquinas, pensada para converter em crime
capital a destruição de máquinas e fábricas.
Eric Hobsbawn |
O
alvo do mais draconiano dos atos parlamentares eram os luditas, uma federação de
vários grupos de homens mascarados e ferozmente organizados, os quais, nos
tumultuados meses entre fevereiro de 1811 e junho de 1812, destruíram teares de
meias em East Midlands, teares de
tecidos em Yorkshire e teares a vapor
em vários pontos de Lancashire. A
força do movimento foi tal, que o governo britânico alocou 12 mil soldados para
enfrentá-lo. Mais soldados, como observa o historiador Eric Hobsbawm, do que o
Duque de Wellington considerara necessários para combater Napoleão, na disputa
pela Península Ibérica em 1808.
Pois quando Byron levantou-se, dia 27/2/1812 para falar
aos
Lords
seus pares, foi para defender aqueles luditas quebradores de máquinas.
Mas, visto da perspectiva do século 21, Byron fez mais do que isso. Ele criou a
imagem contemporânea do ludita como alguém que se oporia implacavelmente aos
desenvolvimentos tecnológicos, não por acaso, mas por princípio. Hoje, há muitos
desses por aí, especialmente entre os verdes superficialistas, para os quais
qualquer solução para os problemas da mudança climática que envolva produzir
energia a partir de combustíveis não-fósseis é logo rotulada, pejorativamente,
de “artifício
techno”. Daí que, nas palavras de Mark Lynas [3], o verde-que-virou-bandido [4], muitos
ambientalistas hoje padecem de “preconceito
ludita”.
Mas
os luditas históricos, os originais, os verdadeiros luditas, como Byron explica
muito claramente, eram diferentes. Não eram movidos por qualquer tipo de
“preconceito” antitecnológico ou antidesenvolvimentista. De fato, não destruíam
os teares por questão de princípio, mas por decisão tática. Os teares ameaçavam
a sobrevivência daqueles homens. Como Byron argumenta, “as máquinas
representavam uma vantagem [a favor dos proprietários], porque tornavam
desnecessário o braço humano e, por isso, milhões de operários morrem de fome”.
Assim, se os luditas de hoje associam a tecnologia à ganância e à húbris, seus
ancestrais históricos só condenavam as inovações tecnológicas por suas
consequências anti-humanas. Nenhum ludita desejava consumir menos; eles
simplesmente reivindicavam os meios para continuar a consumir, no mínimo, o que
antes consumiam.
Desse
ponto em diante, a oratória de Byron alça voo vertiginoso, em rasantes cheios de
ironia, a cumes carregados de compaixão e solidariedade humana.
“Os
operários rejeitados”, diz ele, “em sua cegueira e ignorância, em vez de
comemorarem as conquistas em artes tão benéficas para a humanidade, viam-se eles
mesmos como sacrificados aos progressos da Mecânica [itálicos meus]. Na loucura de seus
corações, imaginaram que o sustento e o bem-estar dos pobres industriosos seriam
objeto mais importante que o enriquecimento de uns poucos indivíduos favorecidos
por algum progresso, pelo crescimento do comércio, os quais lançavam os
trabalhadores no horror do desemprego e tornavam o operário cada dia menos
valioso na hora de contratá-los”.
Os
luditas não deviam ser tratados como perigosa “gangue”, continuava Byron,
falando ao mais absolutamente aristocrático parlamento do
mundo:
“Aquela
gangue trabalha os campos de vocês. Aquela gangue os serve nas casas de vocês.
Aquela gangue manobra os navios das guerras de vocês e faz os exércitos de
vocês. Aquela gangue é que permite que vocês desafiem o mundo. Aquela gangue
também é capaz de desafiar vocês, porque o Descaso e a Calamidade levou aqueles
homens ao desespero. Chamem-nos, se quiserem, de gangue; mas não esqueçam que
uma gangue, muitas vezes, dá voz aos sentimentos do povo”.
O
discurso de Byron, para nem falar do seu grito de alerta, caiu em ouvidos
surdos. A lei foi aprovada, e quebrar teares passou a ser crime punível com
enforcamento.
Mas Byron não parou ali. Dia 2/3/1812, seu poema
carregado de subtextos “An Ode to the
Framers of the Bill” [aprox. “ode aos enquadradores da lei de
enquadramentos”] [5],
apareceu publicado, anonimamente, no jornal The Morning Chronicle. Muito mais
abrasivo que o discurso aos Lords, o poema era sardônico, quando
não era sarcástico. Um trecho captura bem os sentimentos do autor:
“Mais
fácil fabricar homens, que máquinas
Meias
alcançam melhor preço que vidas
Coletes
de lã elevarão o cenário em Sherwood
Mostrando
como vicejam o Comércio!
Como
viceja a Liberdade!” [6]
Mas,
por valiosa que seja a intervenção de Byron, como apoio aos que buscam pôr o
ludismo contemporâneo de tipo ‘suspendam-a-construção-de- usinas-nucleares’
no contexto de antiga tradição radical, há algo que não se encaixa.
De
fato, embora Byron, sim, nos ajude a separar a incipiente consciência de classe
dos ludistas históricos, da consciência de classe-média dos
anti-humanistas-do-último-dia, ele também, sem querer, ajuda a perpetuar o mito
dos luditas como, de algum modo, inimigos da tecnologia. Em sua “Ode”, por
exemplo, a humanidade é jogada conta ‘o maquinário’; no discurso, os operários
são sacrificados ao substantivo quase simbólico, “Mecânica”,
“mecanismos”.
Não
surpreende que, quando do bicentenário dos luditas, ano passado, a ideia de que
os luditas de algum modo estivessem tentando libertar-se da tirania do progresso
tecnológico e do desenvolvimento ainda persistisse. O produtor de uma avaliação
dos luditas, na Radio 3 da BBC, chegou ao ponto de concluir, em coluna
complementar publicada no Guardian, em tom de irada tecnofobia:
“O sonho do início do século 20, de que a tecnologia nos
libertaria do trabalho converteu-se em pesadelo, com a tecnologia privando o
homem, não só dos meios para viver, mas de sua própria razão de ser. Para nem
lembrar que o smartphone converteu
nosso lazer em horário de trabalho”. [7]
Mas
há o mais interessante sobre os verdadeiros luditas, os quebradores de teares.
Na indústria têxtil de Nottinghamshire, coração da rebelião ludita, não havia,
de fato, qualquer nova tecnologia que estivesse roubando empregos dos operários.
É o que Hobsbawm observa em ensaio de 1952 sobre os “quebradores de máquinas”:
“Os grandes movimentos de East Midland em 1811-12 não eram, de
modo algum, dirigidos contra as novas máquinas”. [8]
De
fato, o que levou os tecelões de Nottingham a embarcar numa ação concentrada de
quebrar máquinas foi a tentativa, por alguns arrendatários e proprietários
independentes, de reduzir custos. Para tanto, recorreram a duas práticas. A
primeira era substituir a arte de tecer as estampas nos teares pela prática,
muito mais simples, de recortar o tecido na forma necessária e costurar os
retalhos. E a segunda, porque a nova rotina exigia habilidade praticamente zero,
os donos dos teares e fábricas de tecidos podiam empregar virtualmente qualquer
um, pagando salários muito mais baixos.
Nem
todos os empregadores faziam isso, motivo pelo qual, só foram quebrados os
teares dos empregadores que praticavam “recortes” e “emendas”. Nas palavras de
um jornal radical, o
Nottingham Review (6/12/1811):
“Não há qualquer nova máquina em Nottingham ou nos
arredores, contra as quais os operários dirigem sua vingança. As máquinas ou
teares não são quebrados por haver qualquer nova construção, mas, sim, porque os
bens que saem das fábricas valem pouco, enganam o comprador, desvirtuam o
comércio e, assim, saem das fábricas já grávidos das sementes da própria
destruição”. [9]
O
ludismo de Nottingham traz para o centro da discussão a essência política e
econômica do ludismo histórico. Contra o pano de fundo de um mercado de fábricas
de tecidos que era o único mercado empregador, exacerbado pelo embargo que a
França impusera ao comércio inglês, além da infindável guerra contra a França e
uma sucessão de colheitas ruins, a obcecação de alguns pequenos industriais pela
redução de custos disparou uma resposta política desesperada dos operários
afetados. Assim, impedidos de formarem grupos de ação coletiva pelas leis
chamadas “Combination Acts”, aqueles
operários optaram pela sociedade secreta, opaca, clandestina do mítico Ned Ludd.
Não atacavam as máquinas per se; atacavam aqueles
proprietários cujas ações autocentradas e autointeressadas os haviam jogado na
miséria.
Mas
o que Byron fez foi permitir-se uma forma de licença poética. Do conforto
relativo de sua Newstead Abbey em
Nottinghamshire, Byron transfigurou a revolta ludita e fez dela algo que ela não
jamais foi. Quer dizer, fez dela uma revolta quase simbólica contra o triunfo
“do mecanismo”, da “mecânica” e do desenvolvimento. Na palavra “mecânica”, que
ressoa tão estridente no discurso aos Lords, pode-se ouvir o eco da própria
tradição Romântica.
Das Conjectures on Original
Composition (1759) [Conjecturas sobre a criação
original] de Edward Young, ao Prefácio às Lyrical Ballads (1800) [Baladas
Líricas] de Wordsworth, o “mecânico”, o “artificial”, o “processado”, o
“fabricado” sempre foi consistentemente desprezado, em relação ao que o
Romantismo guardava em seu escrínio como realmente valioso, isto é, o
“espontâneo”, o “criativo” e o “natura”’. Nessas dicotomias, que se veem por
todo o Romantismo britânico e europeu [10],
é sempre preciso desencavar uma crítica social ocultada.
Blake, Wordsworth, Coleridge, Keats, Shelley e, claro,
Byron, não apenas viveram o tumulto político da Revolução Francesa e do Massacre
de Peterloo; [11]
eles
também experienciaram as mudanças muito menos abruptas da Revolução Industrial.
E o Romantismo desenvolveu resposta defensiva, quase-crítica, à cultura do
industrialismo, do “cálculo” (do planejamento), do pensamento “mecânico”
associado àquela nova cultura “industrial”.
A
tudo que era instrumental naquele “mecanicismo”, e que, naquele caso, tornara
supérflua e descartável a vida dos tecelões de meias de Nottingham, os
Românticos responderam com a esfera não instrumental da arte, da poesia. O
melhor amigo de Byron, Percy Bysshe Shelley capturou bem essa oposição em
sua Defence
of Poetry
(1821) [Defesa da Poesia]:
“A Poesia, e o Princípio do Self, do qual o Dinheiro é a
encarnação visível, são o Deus e o Mammon
[12]
do
Mundo”.
Assim
também, no terceiro canto de Childe Harold, cujos dois primeiros
cantos garantiriam a Byron a fama que tem desde que foram publicados, poucos
meses depois do discurso aos Lords, emerge retrato semelhantemente
idealizado da natureza superior da experiência estética:
“Criar,
e na vida criativa
um
ser mais intenso que nos forma
que
forma nossa fantasia
ganhando,
porque lhe damos
a
vida que imaginamos, como faço agora...”
E
é exatamente aqui que a coisa muda. Os campeões nossos contemporâneos do ludismo
tomam Byron literalmente demais, por demais “ao pé da letra”. A transformação
que Byron opera, convertendo a rebelião ludita histórica em luta contra o
“mecanismo” e a ideia de “máquina” sempre foi figurativa. Do mesmo modo, o gozo
Romântico na natureza e na arte reificadas como degraus superiores do ser,
também sempre foi largamente simbólico. Foi o recurso encontrado por quem
procura um meio para opor-se à instrumentalização das relações sociais
capitalistas – relações que, como os luditas haviam descoberto, já não mais
seriam mediadas nem pelo paternalismo monárquico nem pelo sistema das
guildas.
Hoje,
é como se o tratamento simbólico que Byron deu aos luditas – e todo o Romantismo
em geral – estivessem sendo tomados sempre ‘ao pé da letra’, sempre muito
literalmente. Por isso, em sua oposição “às máquinas”, ao “mecanismo”, ao
desenvolvimento planejado, os luditas têm sido capturados tanto como precursores
do ambientalismo quanto como opositores, de estilo anticapitalista, também ao
desenvolvimento econômico. Reduzir os luditas seja ao ambientalismo “naturista”
seja ao antidesenvolvimentismo é não os ver e prestar àqueles pobres um grave
desserviço.
Notas
dos tradutores
[1]
Em inglês,
Luddites. Ludismo: o nome deriva de
Ned Ludd, personagem criada a fim de disseminar o ideal do movimento operário
entre os trabalhadores, no início da Revolução Industrial. Os luditas chamaram
muita atenção pelos seus atos. Invadiram fábricas e destruíram máquinas. Os
luditas ficaram conhecidos como “os quebradores de
máquinas”.
[2]
Tradução de trabalho, para ajudar a ler:
“E
quem se recusará a partilhar a esperança?)
De
que o enquadramento dos tolos seja o primeiro a ser quebrado,
dos
que, quando se lhes pediu remédio
jogaram
aos mais pobres uma corda de enforcamento”.
[3] 20/10/2011, Guardian, “How Mark Lynas riled the green movement”
[5]
Há aqui um jogo de palavras entre frame [quadro, quadrado dos teares] e
framer
[enquadrador], que a tradução acima tenta, mas não enquadra
satisfatoriamente. Todas as sugestões são bem-vindas.
[6]
Aqui traduzimos apenas superficialmente, para facilitar a leitura. Não
encontramos tradução desse poema ao português. Mas há outros poemas de Byron
traduzidos ao português, por exemplo, por Castro Alves (por exemplo
“Darkness”/“As Trevas”,
tradução publicada em
Espumas Flutuantes. Sobre esse específico poema e a “questão
ludita”, em Byron, há, interessantíssimo, em português: Alarcão, Miguel. “Byron Nosso
Contemporâneo: Uma Fantasia Ludita”. O Rebelde Aristocrata. Nos 200 Anos da
Visita de Byron a Portugal. Org. Maria Zulmira Castanheira e Miguel Alarcão.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Centre for English, Translation and
Anglo-Portuguese Studies, 2010, pp. 68-84, ver p. 68. Nesse trabalho lê-se
(em inglês), o poema aqui citado, de onde colhemos os versos em
epígrafe.
[7] 17/11/2011, Guardian, “Lessons
of the Luddites”.
[8] “The Machine-Breakers” [Os quebradores de máquinas], in Uncommon People:
Resistance, Rebellion and Jazz, Eric Hobsbawm, New Press,
1998.
[9]
THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária
Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987.
[10]
E daí, claro, também no romantismo brasileiro, gloriosamente “de segunda mão”
por apropriação “antropofágica”. Evidência disso vê-se, aqui mesmo, nas
traduções que Castro Alves publicou, de poemas de Byron.
[11]
O Massacre de
Peterloo (ou Batalha de Peterloo)
aconteceu em St Peter's Field [“Campo de São Pedro”, uma praça], em Manchester,
Inglaterra, dia 16/8/1819: a cavalaria real atacou uma multidão de 60-80 mil
manifestantes que se reuniam naquele local, exigindo reformas da representação
parlamentar. Houve centenas de mortos e milhares de feridos.
[12]
Filho de Lúcifer.
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