sábado, 10 de março de 2012

Lord Byron, no Parlamento, em defesa dos luditas [1]


Tim Black

Os radicais de antanho versus os atuais eco-miserabilistas antidesenvolvimentistas
9/3/2012, Tim Black, The Spiked Review of Books, Londres
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

 “(And who will refuse to partake in the hope?)
That the frames of the fools may be first to be broken, 
Who, when asked for a remedy, sent down a rope.” [2]
Lord Byron, 1812,  An Ode to the Framers of the Bill   

Lord Byron
Há exatos dois séculos, que se completaram semana passada, um quase-desconhecido Lord de 24 anos ergueu-se para fazer seu primeiro discurso na Câmara dos Lords em Londres. Dez anos depois, o mesmo Lord diria que foi “discurso tipo Don Juan”. O tema? “Certa questão fabril”.

Esse à vontade, esse descaso cômico, fazia pleno sentido para Lord George Gordon Byron. Mas essa ‘questão fabril’ não era, de modo algum, uma questão fabril e com certeza não foi algo que Byron esqueceria facilmente (sobre aquela questão, ele escreveria dois poemas). Porque em seu primeiro ato declamatório frente aos Lords, Byron opôs-se à Lei Antidestruição de Máquinas, pensada para converter em crime capital a destruição de máquinas e fábricas.

Eric Hobsbawn
O alvo do mais draconiano dos atos parlamentares eram os luditas, uma federação de vários grupos de homens mascarados e ferozmente organizados, os quais, nos tumultuados meses entre fevereiro de 1811 e junho de 1812, destruíram teares de meias em East Midlands, teares de tecidos em Yorkshire e teares a vapor em vários pontos de Lancashire. A força do movimento foi tal, que o governo britânico alocou 12 mil soldados para enfrentá-lo. Mais soldados, como observa o historiador Eric Hobsbawm, do que o Duque de Wellington considerara necessários para combater Napoleão, na disputa pela Península Ibérica em 1808.

Pois quando Byron levantou-se, dia 27/2/1812 para falar aos Lords seus pares, foi para defender aqueles luditas quebradores de máquinas. Mas, visto da perspectiva do século 21, Byron fez mais do que isso. Ele criou a imagem contemporânea do ludita como alguém que se oporia implacavelmente aos desenvolvimentos tecnológicos, não por acaso, mas por princípio. Hoje, há muitos desses por aí, especialmente entre os verdes superficialistas, para os quais qualquer solução para os problemas da mudança climática que envolva produzir energia a partir de combustíveis não-fósseis é logo rotulada, pejorativamente, de “artifício techno”. Daí que, nas palavras de Mark Lynas [3], o verde-que-virou-bandido [4], muitos ambientalistas hoje padecem de “preconceito ludita”.

Mas os luditas históricos, os originais, os verdadeiros luditas, como Byron explica muito claramente, eram diferentes. Não eram movidos por qualquer tipo de “preconceito” antitecnológico ou antidesenvolvimentista. De fato, não destruíam os teares por questão de princípio, mas por decisão tática. Os teares ameaçavam a sobrevivência daqueles homens. Como Byron argumenta, “as máquinas representavam uma vantagem [a favor dos proprietários], porque tornavam desnecessário o braço humano e, por isso, milhões de operários morrem de fome”. Assim, se os luditas de hoje associam a tecnologia à ganância e à húbris, seus ancestrais históricos só condenavam as inovações tecnológicas por suas consequências anti-humanas. Nenhum ludita desejava consumir menos; eles simplesmente reivindicavam os meios para continuar a consumir, no mínimo, o que antes consumiam.

Desse ponto em diante, a oratória de Byron alça voo vertiginoso, em rasantes cheios de ironia, a cumes carregados de compaixão e solidariedade humana.

“Os operários rejeitados”, diz ele, “em sua cegueira e ignorância, em vez de comemorarem as conquistas em artes tão benéficas para a humanidade, viam-se eles mesmos como sacrificados aos progressos da Mecânica [itálicos meus]. Na loucura de seus corações, imaginaram que o sustento e o bem-estar dos pobres industriosos seriam objeto mais importante que o enriquecimento de uns poucos indivíduos favorecidos por algum progresso, pelo crescimento do comércio, os quais lançavam os trabalhadores no horror do desemprego e tornavam o operário cada dia menos valioso na hora de contratá-los”.

Os luditas não deviam ser tratados como perigosa “gangue”, continuava Byron, falando ao mais absolutamente aristocrático parlamento do mundo:

“Aquela gangue trabalha os campos de vocês. Aquela gangue os serve nas casas de vocês. Aquela gangue manobra os navios das guerras de vocês e faz os exércitos de vocês. Aquela gangue é que permite que vocês desafiem o mundo. Aquela gangue também é capaz de desafiar vocês, porque o Descaso e a Calamidade levou aqueles homens ao desespero. Chamem-nos, se quiserem, de gangue; mas não esqueçam que uma gangue, muitas vezes, dá voz aos sentimentos do povo”.

O discurso de Byron, para nem falar do seu grito de alerta, caiu em ouvidos surdos. A lei foi aprovada, e quebrar teares passou a ser crime punível com enforcamento.

Mas Byron não parou ali. Dia 2/3/1812, seu poema carregado de subtextos “An Ode to the Framers of the Bill” [aprox. “ode aos enquadradores da lei de enquadramentos”] [5], apareceu publicado, anonimamente, no jornal The Morning Chronicle. Muito mais abrasivo que o discurso aos Lords, o poema era sardônico, quando não era sarcástico. Um trecho captura bem os sentimentos do autor:

“Mais fácil fabricar homens, que máquinas
Meias alcançam melhor preço que vidas
Coletes de lã elevarão o cenário em Sherwood  
Mostrando como vicejam o Comércio!
Como viceja a Liberdade!” [6]

Mas, por valiosa que seja a intervenção de Byron, como apoio aos que buscam pôr o ludismo contemporâneo de tipo ‘suspendam-a-construção-de-usinas-nucleares’ no contexto de antiga tradição radical, há algo que não se encaixa. 

De fato, embora Byron, sim, nos ajude a separar a incipiente consciência de classe dos ludistas históricos, da consciência de classe-média dos anti-humanistas-do-último-dia, ele também, sem querer, ajuda a perpetuar o mito dos luditas como, de algum modo, inimigos da tecnologia. Em sua “Ode”, por exemplo, a humanidade é jogada conta ‘o maquinário’; no discurso, os operários são sacrificados ao substantivo quase simbólico, “Mecânica”, “mecanismos”.

Não surpreende que, quando do bicentenário dos luditas, ano passado, a ideia de que os luditas de algum modo estivessem tentando libertar-se da tirania do progresso tecnológico e do desenvolvimento ainda persistisse. O produtor de uma avaliação dos luditas, na Radio 3 da BBC, chegou ao ponto de concluir, em coluna complementar publicada no Guardian, em tom de irada tecnofobia:

“O sonho do início do século 20, de que a tecnologia nos libertaria do trabalho converteu-se em pesadelo, com a tecnologia privando o homem, não só dos meios para viver, mas de sua própria razão de ser. Para nem lembrar que o smartphone converteu nosso lazer em horário de trabalho”.  [7]

Mas há o mais interessante sobre os verdadeiros luditas, os quebradores de teares. Na indústria têxtil de Nottinghamshire, coração da rebelião ludita, não havia, de fato, qualquer nova tecnologia que estivesse roubando empregos dos operários. É o que Hobsbawm observa em ensaio de 1952 sobre os “quebradores de máquinas”:

“Os grandes movimentos de East Midland em 1811-12 não eram, de modo algum, dirigidos contra as novas máquinas”.  [8] 

De fato, o que levou os tecelões de Nottingham a embarcar numa ação concentrada de quebrar máquinas foi a tentativa, por alguns arrendatários e proprietários independentes, de reduzir custos. Para tanto, recorreram a duas práticas. A primeira era substituir a arte de tecer as estampas nos teares pela prática, muito mais simples, de recortar o tecido na forma necessária e costurar os retalhos. E a segunda, porque a nova rotina exigia habilidade praticamente zero, os donos dos teares e fábricas de tecidos podiam empregar virtualmente qualquer um, pagando salários muito mais baixos.

Nem todos os empregadores faziam isso, motivo pelo qual, só foram quebrados os teares dos empregadores que praticavam “recortes” e “emendas”. Nas palavras de um jornal radical, o Nottingham Review (6/12/1811):

“Não há qualquer nova máquina em Nottingham ou nos arredores, contra as quais os operários dirigem sua vingança. As máquinas ou teares não são quebrados por haver qualquer nova construção, mas, sim, porque os bens que saem das fábricas valem pouco, enganam o comprador, desvirtuam o comércio e, assim, saem das fábricas já grávidos das sementes da própria destruição”.  [9]

O ludismo de Nottingham traz para o centro da discussão a essência política e econômica do ludismo histórico. Contra o pano de fundo de um mercado de fábricas de tecidos que era o único mercado empregador, exacerbado pelo embargo que a França impusera ao comércio inglês, além da infindável guerra contra a França e uma sucessão de colheitas ruins, a obcecação de alguns pequenos industriais pela redução de custos disparou uma resposta política desesperada dos operários afetados. Assim, impedidos de formarem grupos de ação coletiva pelas leis chamadas “Combination Acts”, aqueles operários optaram pela sociedade secreta, opaca, clandestina do mítico Ned Ludd. Não atacavam as máquinas per se; atacavam aqueles proprietários cujas ações autocentradas e autointeressadas os haviam jogado na miséria.

Mas o que Byron fez foi permitir-se uma forma de licença poética. Do conforto relativo de sua Newstead Abbey em Nottinghamshire, Byron transfigurou a revolta ludita e fez dela algo que ela não jamais foi. Quer dizer, fez dela uma revolta quase simbólica contra o triunfo “do mecanismo”, da “mecânica” e do desenvolvimento. Na palavra “mecânica”, que ressoa tão estridente no discurso aos Lords, pode-se ouvir o eco da própria tradição Romântica.

Das Conjectures on Original Composition (1759) [Conjecturas sobre a criação original] de Edward Young, ao Prefácio às Lyrical Ballads (1800) [Baladas Líricas] de Wordsworth, o “mecânico”, o “artificial”, o “processado”, o “fabricado” sempre foi consistentemente desprezado, em relação ao que o Romantismo guardava em seu escrínio como realmente valioso, isto é, o “espontâneo”, o “criativo” e o “natura”’. Nessas dicotomias, que se veem por todo o Romantismo britânico e europeu [10], é sempre preciso desencavar uma crítica social ocultada.

Blake, Wordsworth, Coleridge, Keats, Shelley e, claro, Byron, não apenas viveram o tumulto político da Revolução Francesa e do Massacre de Peterloo; [11] eles também experienciaram as mudanças muito menos abruptas da Revolução Industrial. E o Romantismo desenvolveu resposta defensiva, quase-crítica, à cultura do industrialismo, do “cálculo” (do planejamento), do pensamento “mecânico” associado àquela nova cultura “industrial”.

A tudo que era instrumental naquele “mecanicismo”, e que, naquele caso, tornara supérflua e descartável a vida dos tecelões de meias de Nottingham, os Românticos responderam com a esfera não instrumental da arte, da poesia. O melhor amigo de Byron, Percy Bysshe Shelley capturou bem essa oposição em sua Defence of Poetry (1821) [Defesa da Poesia]:

“A Poesia, e o Princípio do Self, do qual o Dinheiro é a encarnação visível, são o Deus e o Mammon  [12] do Mundo”.

Assim também, no terceiro canto de Childe Harold, cujos dois primeiros cantos garantiriam a Byron a fama que tem desde que foram publicados, poucos meses depois do discurso aos Lords, emerge retrato semelhantemente idealizado da natureza superior da experiência estética:

“Criar, e na vida criativa
um ser mais intenso que nos forma
que forma nossa fantasia
ganhando, porque lhe damos
a vida que imaginamos, como faço agora...”

E é exatamente aqui que a coisa muda. Os campeões nossos contemporâneos do ludismo tomam Byron literalmente demais, por demais “ao pé da letra”. A transformação que Byron opera, convertendo a rebelião ludita histórica em luta contra o “mecanismo” e a ideia de “máquina” sempre foi figurativa. Do mesmo modo, o gozo Romântico na natureza e na arte reificadas como degraus superiores do ser, também sempre foi largamente simbólico. Foi o recurso encontrado por quem procura um meio para opor-se à instrumentalização das relações sociais capitalistas – relações que, como os luditas haviam descoberto, já não mais seriam mediadas nem pelo paternalismo monárquico nem pelo sistema das guildas. 

Hoje, é como se o tratamento simbólico que Byron deu aos luditas – e todo o Romantismo em geral – estivessem sendo tomados sempre ‘ao pé da letra’, sempre muito literalmente. Por isso, em sua oposição “às máquinas”, ao “mecanismo”, ao desenvolvimento planejado, os luditas têm sido capturados tanto como precursores do ambientalismo quanto como opositores, de estilo anticapitalista, também ao desenvolvimento econômico. Reduzir os luditas seja ao ambientalismo “naturista” seja ao antidesenvolvimentismo é não os ver e prestar àqueles pobres um grave desserviço.



Notas dos tradutores

[1] Em inglês, Luddites. Ludismo: o nome deriva de Ned Ludd, personagem criada a fim de disseminar o ideal do movimento operário entre os trabalhadores, no início da Revolução Industrial. Os luditas chamaram muita atenção pelos seus atos. Invadiram fábricas e destruíram máquinas. Os luditas ficaram conhecidos como “os quebradores de máquinas”.

[2] Tradução de trabalho, para ajudar a ler:

“E quem se recusará a partilhar a esperança?)
De que o enquadramento dos tolos seja o primeiro a ser quebrado,
dos que, quando se lhes pediu remédio
jogaram aos mais pobres uma corda de enforcamento”.

[3] 20/10/2011, Guardian,How Mark Lynas riled the green movement


[4] Mark Lynas ficou conhecido por pregar as vantagens da energia nuclear e de grãos geneticamente modificados. 

[5] Há aqui um jogo de palavras entre frame [quadro, quadrado dos teares] e framer [enquadrador], que a tradução acima tenta, mas não enquadra satisfatoriamente. Todas as sugestões são bem-vindas.

[6] Aqui traduzimos apenas superficialmente, para facilitar a leitura. Não encontramos tradução desse poema ao português. Mas há outros poemas de Byron traduzidos ao português, por exemplo, por Castro Alves (por exemplo “Darkness”/“As Trevas”, tradução publicada em Espumas Flutuantes. Sobre esse específico poema e a “questão ludita”, em Byron, há, interessantíssimo, em português: Alarcão, Miguel. “Byron Nosso Contemporâneo: Uma Fantasia Ludita”. O Rebelde Aristocrata. Nos 200 Anos da Visita de Byron a Portugal. Org. Maria Zulmira Castanheira e Miguel Alarcão. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies, 2010, pp. 68-84, ver p. 68. Nesse trabalho lê-se (em inglês), o poema aqui citado, de onde colhemos os versos  em epígrafe.

[7] 17/11/2011, Guardian, Lessons of the Luddites”.

 

[8] “The Machine-Breakers” [Os quebradores de máquinas], in Uncommon People: Resistance, Rebellion and Jazz, Eric Hobsbawm, New Press, 1998.

[9] THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987.

[10] E daí, claro, também no romantismo brasileiro, gloriosamente “de segunda mão” por apropriação “antropofágica”. Evidência disso vê-se, aqui mesmo, nas traduções que Castro Alves publicou, de poemas de Byron.

[11] O Massacre de Peterloo (ou Batalha de Peterloo) aconteceu em St Peter's Field [“Campo de São Pedro”, uma praça], em Manchester, Inglaterra, dia 16/8/1819: a cavalaria real atacou uma multidão de 60-80 mil manifestantes que se reuniam naquele local, exigindo reformas da representação parlamentar. Houve centenas de mortos e milhares de feridos. 

[12] Filho de Lúcifer.

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