quarta-feira, 7 de março de 2012

Hamás: entre a política e os princípios


Ramzy Baroud, Al-Ahram Weekly, n. 1.087, 1-7/3/2012, Cairo
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Ramzy Baroud
Apesar dos desmentidos do Hamás, trava-se luta de definição dentro do movimento islâmico palestino. O resultado dessa luta – que ainda se mantém confinada a polidas discordâncias políticas e uma ou outra disputa intelectual –, muito provavelmente mudará as feições do Hamás, se não alterar fundamentalmente também a posição do movimento numa paisagem árabe que passa por rápidas transformações.

O atual Hamás já é diferente do inicial, constituído por uma liderança local em Gaza, em dezembro de 1987, em resposta ao primeiro levante popular palestino. Uma das primeiras declarações que circularam, assinada pela ala militar do movimento, então recém constituída (homens com o rosto coberto, armados com porretes de madeira e latas de tinta spray), manifestava a natureza daqueles tempos políticos:

“O que aconteceu a vocês, oh senhores do Egito? Dormem agora, na hora em que é assinado o tratado de Camp David, tratado da vergonha e da rendição? Terá morrido o zelo nacional? Acabou-se o orgulho, enquanto os sionistas diariamente perpetram crimes tão graves contra o povo e as crianças?”

Embora a diferença de poder entre Israel e os palestinos tenha permanecido em vasta medida inalterada, o Hamás converteu-se, de um braço palestino local da Fraternidade Muçulmana do Egito, em manifestação e tour de force dentro da sociedade palestina. Tornou-se também importante ator regional, visto por EUA e Israel como membro do campo radical no Oriente Médio (os outros membros seriam o Irã, a Síria e o Hezbollah). Enquanto Irã e Síria eram demonizados por apoiar e reforçar a resistência palestina e libanesa contra Israel, o Hamás e o Hezbollah resistiram com sucesso contra as aventuras militares de Israel em Gaza e no Líbano.

Mas as revoluções árabes forçaram uma significativa transformação nas relações de poder na região. Símbolos há muito tempo da influência do ocidente na Tunísia, no Egito e no Iêmen foram violenta e decisivamente apeados do poder, embora representantes deles ainda lutem para manter a antiga posição e o antigo poder. O campo moderado foi sacudido no âmago pela derrubada de Hosni Mubarak, o qual, por três décadas, diligentemente defendeu uma fortaleza pró-EUA, em troca de salário fixo. Os eventos dramáticos que sacudiram o mundo árabe exigiram ação rápida, uma espetacular disputa por influência – fosse para reprimir, onde a mudança fosse considerável inaceitável, ou para explorar os levantes genuínos, autóctones, nos casos em que a mudança oferecesse oportunidade para acumular pontos.

A Síria é o grande exemplo desse segundo caso. Para equilibrar o jogo de ganhos e perdas de poder, a derrubada de Mubarak só se completaria com a derrubada do presidente sírio Bashar Al-Assad. Só assim o jogo voltaria a um estado de normalidade – especialmente se se considera a diminuição da influência dos EUA na região, depois que se retirarem do Iraque. Infelizmente para a Síria, o conflito rapidamente se redesenhou, nos termos da política regional. A horrível violência na Síria está sendo contextualizada dentro de perigosos paradigmas que incluem intervenção pela OTAN e a insistência, por alguns países árabes, em transformar a guerra civil em jogo de soma zero.

O Hamás, que sobreviveu com sucesso às rivalidades internas, às guerras de Israel e ao isolamento internacional, viu-se ante seu mais crucial dilema desde as eleições parlamentares de janeiro de 2006. Por um lado, a chamada Primavera Árabe levara à ascensão flagrante (e prevista) das forças políticas do islamismo – das quais o Hamás é parte constitutiva. Por outro lado, ela renovou, de modo pouco claro, o equilíbrio político de toda a região.

Não é segredo que, sem o apoio financeiro do Irã, o Hamás teria dificuldades terríveis para operar na Faixa de Gaza depois do bloqueio israelense em 2007. E Damasco garantiu ao Hamás uma plataforma política, que deu ao movimento islâmico um nível indispensável de liberdade para divulgar suas ideias e aliviar boa parte da pressão que se acumulava sobre seus líderes sitiados em Gaza e na Cisjordânia. Abandonar os próprios aliados, por causa do discurso político cada vez mais polarizado (e sectário) na região de modo algum é ou poderia ser decisão fácil. E aqui está o impasse em que se encontra o Hamás.

O realismo político é inegavelmente oportunista. A reputação do Hamás entre seus apoiadores foi preservada mediante um atento e cuidadoso equilíbrio entre o oportunismo político e princípios ideológicos de motivação religiosa. Mas nenhum equilíbrio passa incólume por tempos revolucionários, por maior que seja a habilidade dos timoneiros. Uma série de acordos feitos entre o Hamás e o Fatah – entre os quais o histórico acordo de Doha, de 6 de fevereiro – foram atribuídos à reformatação das alianças regionais: Mahmoud Abbas e o Fatah sofreram grave golpe com a derrubada de Mubarak, e o futuro do Hamás na Síria pareceu cada dia mais sombrio, dada a escalada da violência.

Apesar de os palestinos clamarem pela reconciliação entre os partidos rivais, fato é que os repetidos episódios da unificação mais incriminavam os dois partidos, quanto menos urgentes se iam tornando o acordo regional e a resistência contra Israel, se confrontados às exigências da política regional. A deriva do Hamás rumo a um novo campo prosseguiu com espantosa velocidade. Os líderes do Hamás em Damasco, e também em Gaza, partiram em tours regionais, na esperança de forjarem novas alianças para o ex-marginalizado movimento de resistência. E, noutra reviravolta, os líderes exilados do Hamás emergiram repentinamente como agentes da política dos moderados. Brian Murphy e Karin Laub explicam assim a nova terminologia:

“O principal líder do movimento no exílio, Khaled Meshaal, quer que o Hamás seja parte do mais amplo crescimento político do Islã (...). Para isso, o Hamás precisa de novos amigos, como os ricos estados do Golfo que estão em guerra contra o Irã”. [1]

Escrevendo no Daily Star libanês, Michael Broning, diretor do think-tank alemão, com sede em Israel, Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung, concorda:

“Meshaal passa a representar uma força de mudança”, diz ele, enquanto o primeiro-ministro de Gaza, Ismail Haniyeh “representa a ala conservadora da liderança do Hamás em Gaza”. E uma abertura de ampla conversão apresenta-se como “desacordos internos no Hamás”, o qual “tem jogado a liderança da diáspora contra o governo do Hamás em Gaza”.

Não por acaso, o artigo de Broning leva o título de “Engajar os moderados do Hamás e testar sua nova flexibilidade”. [2]

Alguns analistas, entre os quais Broning, têm especulado amplamente sobre o futuro do movimento. A imprensa anda cheia de matérias sobre “as manobras” do Hamás ­­– seja porque compelido pela necessidade política, ou impulsionado pelo triunfo ideológico das forças islamistas na região.

É possível que o Hamás se esteja reinventando, ou talvez esteja simplesmente tentando sobreviver à tempestade. De um modo ou de outro, o contexto político das manobras do Hamás vai rapidamente abandonando seu espaço tradicional (a ocupação israelense) e entrando numa nova dimensão, que considera a região como um todo. Embora o Hamás possa argumentar, com razão, que a sobrevivência exige mudanças políticas calculadas, é mais difícil explicar que, tão rapidamente, a politicagem regional atropele as prioridades nacionais.

De fato, a linha que separa política e princípios pode, às vezes, ser muito tênue.




Notas dos tradutores
[1]  9/2/2012, Karin Laub e Brian Murphy, “Hamas drifting away from longtime patron Iran”, Associated Press
[2]  24/2/2012, "Engage Hamas' moderates and test their newfound flexibility", The Daily Star, Beirute.  

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