19/3/2012, *M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Soldado dos EUA assassina civis no Afeganistão |
Apesar
de Washington repetir e repetir que a matança em Kandahar, há uma semana, foi
resultado de um “surto”, de alguém “aparentemente descompensado” ou
“provavelmente desequilibrado”, o povo afegão acredita nas provas reunidas por
seus parlamentares, segundo as quais entre 15 e 20 soldados dos EUA participaram
dos crimes. O presidente do Afeganistão Hamid Karzai também concordou: a versão
dos EUA “não é convincente”.
E
dentro do establishment
militar afegão predominará a opinião exposta publicamente pelo comandante
do Estado-Maior do Exército afegão, Sher Mohammad Karimi, que condenou os
soldados dos EUA.
O
tenente-general Karimi, que visitou a cena do crime, disse que acontecera
massacre premeditado consumado por vários soldados norte-americanos.
Com
tudo isso, torna-se altamente problemática a assinatura de um tratado
estratégico entre Washington e Kabul, prevista para acontecer antes da reunião
de cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, em Chicago, em
maio. Washington espera que Karzai assine na linha pontilhada antes de maio; e
Karzai sabe que seu futuro político depende de seu desempenho.
Bernard-Henri
Lévy
Em comentário surpreendente,
publicado semana passada, o influente criador de casos Bernard-Henri Lévy já
disse, em tom de ameaça, que a comunidade internacional jamais deveria ter-se
tornado “cegamente dependente do governo corrupto de Hamid Karzai”. [1]
Fazendo
eco às ideias de vários comandantes norte-americanos, Henri Lévy pôs-se a
criticar furiosamente a retirada planejada para 2014, como “admissão de fracasso
e impotência”. Mas disse que prolongar a presença militar além de 2014 também
seria difícil, “considerando-se o custo humano”. Assim sendo, a única via
possível seria “ficar e sair” – quer dizer: retirar as tropas de combate, “mas
deixar lá as bases militares e os instrutores”.
Lévy
tem a solução:
“Admitir
que o Afeganistão não pode ser reduzido (...) a um confronto desesperado entre
assassinos Talibã e os membros corruptos do governo Karzai (...). Em Cabul (...)
estão também os herdeiros de [o falecido comandante da Aliança do Norte, Ahmad
Shah] Massoud. E antes talvez de retirarmos a escada, talvez seja aconselhável
aproximar-se dele, numa última tentativa, numa derradeira operação”.
Barack
Obama
Karzai
mais uma vez volta a ser tratado como se seu sucessor potencial já estivesse
pronto e paramentado, à espera, na sala ao lado. O ponto é que, ao longo de uma
sequência macabra de eventos no decorrer das últimas seis, oito semanas –
soldados dos EUA que urinam sobre cadáveres dos Talibã, queimam livros do Corão,
massacram civis –, a meta sempre presente é conseguir que Karzai assine um pacto
estratégico, que garanta presença militar norte-americana de longo prazo no
Afeganistão.
Na
3ª-feira passada, o presidente Barack Obama dos EUA disse, em conferência de
imprensa ao lado do primeiro-ministro britânico David Cameron, que Karzai ouvira
claramente o que tinha de ouvir.
Mas,
depois de Panjwayi, já nada pode continuar reduzido a uma batalha de objetivos,
só entre Obama e Karzai.
Moscou
entra em cena
Em
entrevista exclusiva de 30 minutos, a um canal da televisão afegã, ontem à noite
[2],
o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, repetiu, nem duas
nem três, mas quatro vezes, que a Rússia espera um Afeganistão “neutro” –
palavra em código para dizer “sem presença militar estrangeira”.
A
política russa está andando por duas trilhas. Uma, Moscou espera trabalhar bem
próxima de Karzai.
“Diferentes
de outros [quer dizer “Washington”], nós não ordenamos ao governo [de Cabul]
como construir o processo de reconciliação nacional. Sabemos que, além de
pashtuns, há uzbeques, tadjiques, hazaras. Todos esses devem encontrar seu
caminho até o sistema político, para que se sintam incluídos, não isolados, no
processo. Esse é o princípio geral; como aplicá-lo na prática, não cabe aos
russos dizer às autoridades afegãs”.
Por
outro lado, Lavrov questionou a ideia de que o governo Obama ou a OTAN possam
decidir unilateralmente sobre questão de “transição” ou de “fim da missão de
combate”.
Exigiu
que a Força Internacional de Assistência à Segurança [orig.
International Security Assistance Force (ISAF)] demonstre ao
Conselho de Segurança da ONU que cumpriu a missão que lhe foi atribuída, antes,
evidentemente, de falar sobre retirada dos soldados de EUA e OTAN sem prestar
qualquer satisfação à ONU sobre o resultado de sua missão no Afeganistão.
Lavrov
destacou que há contradição fundamental na posição dos EUA: de um lado, (1) Washington assume que, sim, a
ISAF teria cumprido a missão que recebeu da ONU e
diz que retirará os soldados; de outro lado, (2) Washington continua a discutir com
Kabul, “muito empenhadamente, o estabelecimento de quatro ou cinco bases
militares no mesmo espaço de onde ‘retira’ os soldados, para o período
pós-2014.”
Falando
firme, Lavrov demarcou o quadro geral:
“Não
se entende por que isso deva ser encaminhado desse modo, porque, se você precisa
de presença militar, é sinal de que o mandado do Conselho de Segurança ainda não
foi satisfatoriamente cumprido. Se você não quer cumprir o mandado do Conselho
de Segurança, ou se supõe que o mandato já foi cumprido... para que seriam
necessárias as bases militares? Não me parece que haja aí qualquer lógica. Acho
também que o território afegão não deve ser usado para implantar espaços
militarizados, que evidentemente preocuparão outros povos.
“Não
vejo que lógica haveria em supor que, em 2014, o mandado do Conselho de
Segurança possa ser dado por cumprido... se ainda for necessário haver lá muitos
soldados, dentro das bases militares. Não se entende que finalidade teriam as
tais bases militares e, além disso, os EUA estão em contato com países da Ásia
Central, pedindo que autorizem presença militar de longo prazo. NÓS [a Rússia]
queremos entender o motivo disso tudo, por que as tais bases seriam necessárias.
Não acreditamos que esse grande número de bases militares contribua para a
estabilidade da região.”
Para
Lavrov:
(1)
O terrorismo não foi derrotado, no Afeganistão;
(2)
Os terroristas estão sendo “empurrados” para regiões mais ao norte em relação
aos pontos onde estão sendo infiltrados, “na direção de países vizinhos da
Federação Russa na Ásia Central; e não se pode dizer que contribuam para
aumentar a estabilidade nessa região”;
(3)
As Forças Internacionais de Assistência, ISAF, estão usando para isso a
chamada “Rede Norte de Distribuição”. E “nós [a Rússia] acreditamos que essa é
nossa contribuição para que seja cumprido o mandado que as ISAF receberam do Conselho de Segurança da ONU.
Assim sendo, “temos o direito de exigir” que as ISAF cumpram realmente a missão para a qual foram
mandadas para lá, antes de as ISAF declararem, unilateralmente, que alguma
“missão de combate” estaria cumprida.
O
que Moscou está fazendo é declarar que o governo Obama já não pode ditar a
trajetória dessa guerra. A entrevista de Lavrov foi cuidadosamente agendada:
essa semana, o Conselho de Segurança da ONU examinará o mandado que deu às
ISAF, para avaliar os resultados.
Moscou
está acrescentando o Afeganistão à litania de questões em relação às quais
adotará abordagem “muscular” – além do sistema de mísseis de defesa que os EUA
planejam, da Síria e do Irã. Semana passada, Moscou anunciou que poderia
oferecer à OTAN uma base militar em Ulyanovsk, no Volga, para ser usada como
armazém temporário de trânsito ferroviário de suprimentos para os exércitos da
OTAN-EUA.
Dempsey,
comandante do Estado-Maior das Forças Armadas dos EUA
O
oferecimento dos russos mete o Pentágono e a OTAN num dilema. Do ponto de vista
logístico, seria assegurar uma linha vital de suprimentos; mas do ponto de vista
geopolítico, Washington ainda tentou considerar a única alternativa que restava.
A alternativa era voltar a discutir com o Paquistão, tentando conseguir a
reabertura de duas estradas cujo trânsito está fechado. Isso, exatamente, é o
que o Comandante do Estado-maior dos EUA, Martin Dempsey acaba de fazer.
Dempsey disse, em entrevista ao
“Charlie Rose Show” dia 16/3, [3]
que
Washington está em contato “diretamente” e “privadamente” com Rawalpindi e que
“estou pessoalmente otimista, que podemos
reset as relações, de modo que atenda às
necessidades dos dois lados.” Mencionou o general Ashfaq Kayani, comandante do
exército paquistanês, com o qual teria tido “conversas absolutamente francas,
sinceras”. Kayani disse que “fará o que puder”.
Dempsey
chegou a jogar até “a carta da Índia”. Disse que o principal desafio para os EUA
seria conseguir que os militares paquistaneses cedessem na certeza, enraizada
entre eles, de que a Índia é “grande ameaça existencial contra o Paquistão”. (O
general nada disse sobre o que Washington planeja fazer para espantar os medos
paquistaneses.)
Bem
visivelmente, vários modelos sobrepõem-se essa semana. A Rússia planeja jogar a
luva e desafiar a estratégia de Washington para o Afeganistão, no momento da
avaliação/renovação, essa semana, do mandado que as
ISAF-EUA obtiveram do Conselho de Segurança. Os EUA, por sua vez,
esperam ansiosamente algum resultado positivo das eleições parlamentares em
Islamabad, que leve o Paquistão a reassumir a parceria de sempre com os EUA. E
enquanto isso, um terceiro vetor gira, pendurado no ar: a fúria dos afegãos
contra o massacre de Panjwayi.
O
melhor que pode acontecer é que os afegãos engulam a versão “Sargento Bales”.
Bales permanece preso, confinado em cela solitária, no Fort Leavenworth, no Kansas. Por curiosa
ironia, exatamente ali, naquele forte, os dois generais, Dempsey e Kayani, foram
colegas de classe, na Escola de Estudos Militares Avançados – onde estudaram
Teatro de Operações.
Notas dos tradutores
[1] 13/3/2012, Huffington Post, Bernard-Henri Lévy, em: “In
Afghanistan , Between Plague and
Cholera, There's Dr. Abdullah”.
[2] 8/3/2012, TOLOnews, em: “Exclusive Interview with Russia's Foreign
Minister Sergi Lavrov” (com
transcrição da entrevista em inglês). A seguir:
[3] 16/3/2012, Charlie Rose View
& Interview, em: “General
Martin Dempsey, Chairman of the Joint Chiefs of Staff”
(em inglês).
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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